segunda-feira, 24 de abril de 2017

BRUNO VIEIRA AMARAL: AS PRIMEIRAS COISAS



É mais forte do que eu. Confesso. Mistura de inveja e ressentimento. Confesso. Mas de cada vez que tenho nas mãos um romance premiado em algum concurso literário português, folheio-o sob o impulso de um cepticismo mesquinho, qualquer coisa que soaria, digamos assim, como: Ora então vamos lá ver o que tem este livro de singular e, afinal, de tão bom que o tornou premiável.

Das vezes que me lembro, havia efectivamente algo interessante e suficiente para desfazer a hipótese de uma vitória movida a cunhas, ou superar a ideia do mero gosto subjectivo dos jurados: posso, de repente, recordar os prémios de João Ricardo Pedro, Afonso Reis Cabral e, claro, Afonso Cruz.

Quanto a Bruno Vieira Amaral (Prémio José Saramago 2015): ainda numa livraria, desconfiei do que a sinopse prometia, não me deixando igualmente convencer pela primeira página. Mas ao lê-lo, já em casa, fui aceitando que me cativasse — vagarosamente, nunca se tratou de uma sedução urgente: nada de uma rapidinha —, e reconheço que o romance principia a capturar-nos por causa da sua atraente flexibilidade, como o exercício de um flâneur, ou seja, uma divagação em que não sobressai qualquer estrutura, que no entanto está lá, invisível porém sólida - a qual, se, por um lado, orienta coerentemente a história, que, de resto, mais do que uma narrativa em sentido estrito, funciona como um dicionário de situações, por outro lado (daí a sua invisibilidade), não condiciona esse modo de contar, ilusoriamente espontâneo e distraído, imerso em sinuosos, contínuos e maravilhosos associações e pormenores. A estrutura é, afinal, o Bairro Amélia. E esta maneira de o expor é a forma justa para descrever o estado de espírito do narrador. O carácter errático dos seus dias. E a visita que um Virgílio contemporâneo, à imagem do Virgílio que guia Dante pelos círculos do inferno, lhe permitirá fazer às histórias antigas do bairro. Algumas delas são singelas e breves, meia página, uma página. Outras, mais extensas, desenham personagens extraordinárias. Os fios são, repito, o bairro e, sobretudo, um narrador que se refaz em cada dia:

«Era como se, a cada dia, a minha vida se reiniciasse, como se não houvesse qualquer sequência entre um dia e outro. Como se o único ponto de união fosse eu, mas eu fosse outro todos os dias, guiado por intenções inconsequentes, quando não contraditórias.»

Não é certamente uma obra que retenhamos pela qualidade poética da linguagem. Refiro-o apenas porque, para mim, como leitor, a riqueza da escrita não é um aspecto despiciendo, e sim preponderante na fruição de um romance. Mas retemo-lo pela atenção a detalhes tão simples e fortes como o facto de o Correio da Manhã e jornais desportivos serem os únicos que podemos ler em qualquer café; ou observações tão verosímeis e palpitantes como a de um indiano que, numa biblioteca,  consumia, habitualmente, um jornal, com a minúcia (e demora) de uma Testemunha de Jeová devorando a Bíblia; ou a de uma mulher que furtava rosas de um jardim, cortando-as com um corta-unhas; ou ainda a referência à inscrição estampada na t-shirt vestida por um velho (I Semana Multicultural do Bairro Amélia). Estas "cenas", simples e reconhecíveis, muitas delas associadas a pormenores típicos do Portugal dos anos 80, constituem o que nos conduz a testemunhar, quase em estado de assombro, a criação dessa magnífica, inesquecível, personagem-colectiva que é o Bairro Amélia — e a sua evolução, ou, em parte, estagnação, desde a infância do narrador, que julgou haver-se libertado dele para sempre, até ao seu regresso, anos volvidos, deprimido e sem alternativas, após tremendos tombos na sua vida "lá fora".

É um romance muito belo, muito irónico, muito culto e pungente; lemo-lo como se estivéssemos passeando e observando o próprio bairro, e o Teixeira, o Abel, a Carla, a Vera, o Virgílio - ou, obviamente, o Fion - e de todos eles, ou das vidas de todos, fizéssemos também parte (e ao mesmo tempo não fizéssemos, meros estrangeiros atentos que ali somos), essas vidas decantadas pelo narrador, entre o mundo da memória e o do presente. Tudo isto a obra é:  e portanto, é também, claro, um prémio justíssimo.

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