sexta-feira, 24 de maio de 2013
MIGUEL ESTEVES CARDOSO: O AMOR É FODIDO
Apesar do seu óbvio espartilho ideológico [chamavam-lhe, com graça, o Sectário-Geral do PCP, repito: o Sectário-Geral] Mário Castrim era um crítico culto, sensível, certeiro e, já agora, com imenso sentido de humor.
Lembro-me da sua indignação quando se apercebeu de que as livrarias escondiam o título do único romance de Miguel Esteves Cardoso, O Amor é Fodido. Porque, mais do que diante de um palavrão, estamos perante uma expressão popular, que captura com toda a intensidade a frustração e o sofrimento, mas também o conformismo relativo, daqueles que têm de se haver com as questões do amor. Que o título fosse O Amor é um Sentimento Terrivelmente Frustrante e Provocador de Grande Sofrimento, mas Enfim, há que Suportá-lo dificilmente diria tanto, e com tanta força, como o simples e eficaz O Amor é Fodido. Muito menos O Amor é Lixado, ou O Amor é Tramado.
Posto isto, e se não estamos em face de uma obra maior da literatura portuguesa, estamos sem dúvida nenhuma a falar de um romance cuja peculiaridade torna imperdível. Aquela estória é, toda ela, Miguel Esteves Cardoso. É, como diriam os brasileiros, a sua cara. Observem o humor aparentemente cínico. [Há páginas absolutamente impagáveis. Recordo-me do equívoco suscitado pela expectativa do primeiro período, prontamente desmontado nos seguintes: «Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te matar.» Ou da narração de certa experiência erótica, com uma mulher que lhe pedia que a insultasse, lhe chamasse nomes durante o acto.] Mas o cinismo, e no cultivar desse engano MEC é do melhor,o cinismo não é senão uma capa dura, de machão lidando com as mulheres, sob a qual se oculta um desamparo de menino que nunca cresceu completamente. E portanto, sob o sarcasmo encontro, curiosa e paradoxalmente, a ternura e a necessidade de amor e de cuidado. Ou seja: o verdadeiro registo deste texto enganador e provocador não é o do escárnio e maldizer, não é seguramente o da misoginia, mas o de um lirismo discreto e com vergonha de si.
Parte do interesse do romance reside em que nada é o que parece. Os equívocos e os enganos sucedem-de, de modo que o leitor vai sendo constantemente induzido em erro. O início é taxativo - hilariante -, mas serve para que Miguel Esteves Cardoso comece imediatamente a desmontá-lo, frase a frase. Não quero insistir, que não me interessa estragar surpresas. No mesmo sentido, a visão que o narrador explicita acerca das mulheres - e acerca de Teresa em particular - é um aspecto da arte de enganar o leitor. As mulheres são más e pérfidas. Teresa é terrível. «Como eras má. Ingrata, caprichosa, cruel e má.» Mas isto não é verdade, e a cada momento, subrepticiamente, se desmente tal ideia, esgotando-se toda no que afinal é: expressões da raiva e dores de mal-amado; gritos d'Alma. Nada mais.
Não que Teresa seja, vamos lá a ver, propriamente boa peça. Mas, como em As Travessuras da Menina Má, o narrador ama-a. Não gosta dela, ou não gosta do que ela lhe faz, mas ama-a como a ninguém mais, insubstituivelmente. Por muito que lhe chame odiosa, se ofenda, se revolte, jure não perdoar-lhe, e deixá-la, a verdade é que não consegue não vê-la como a mulher da sua vida. Todas as imperfeições dela são aspectos de uma espécie de perfeição divina, de deusa pagã, amoral, a quem tudo se consente.
A linguagem é ousada: imagino alguns leitores corando ao ler as frases com que, num Lar, um homem e uma mulher, idosos, incapazes de «mobilidade ou de vida sexual», se incentivam mutuamente, inventando, imaginando o que lhes apetecia fazer, com as palavras mais explícitas e ordinárias do léxico popular lusitano. Compreendendo o que está em causa para os dois desgraçados, diria que os seus diálogos são mais comoventes do que «porcos».
Castrim poderia considerar que se trata de uma forma ideologicamente ambígua de um homem falar sobre as mulheres.
Aceito. Este livro é de uma autenticidade que só existe porque se escreve num patamar onde a ideologia - e a moral - ainda estão por ser erigidas. Como quer que o analise a posteriori, numa perspectiva moral, a verdade é que esta autenticidade desarmante me desarma.
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