sexta-feira, 3 de agosto de 2012
ANDRÉ GIDE: JOURNAL
Meu avô lia livros em francês.
Eram uns volumes da Gallimard, que ora lhe via entre as mãos, ora pousados em mesinhas de cabeceira, do formato e da espessura certos, com as capas que, quando não forradas, deixavam ver os títulos e os nomes de autores que, naturalmente, me fisgavam o interesse desde então: Pascal, Proust, Alain.
Sobre Proust, estamos conversados: quando, muito mais tarde, principiei a lê-lo com intenção e possibilidade de chegar ao fim, percebi que nunca mais lhe preferiria nenhuma outra obra na vida; acerca de Alain, não estamos minimamente conversados: continuo à procura dos volumes dos seus Propos; tento, periodicamente, encomendar o primeiro, ou o segundo ou qualquer um, ansioso por compreender o fascínio que a filosofia leve, mas não superficial, fragmentária e perspicaz, de um professor de província [ou estarei totalmente equivocado?] poderia ter exercido sobre o meu cosmopolita avô.
Comprei e venho lendo, por estes tempos, o Journal, de André Gide: não o diário na íntegra, que terá milhares de páginas, mas páginas sabiamente escolhidas, e convenientemente apresentadas, de forma a penetrarmos no espírito de Gide, como se entrássemos em sua casa. Porque Gide é particularmente acolhedor: e, falando do seu árduo treino de piano, da sua escrita, da sua inquietação perante a dificuldade, em certas fases, que essa escrita lhe custa, ou da sua fé e das suas crises ou das suas leituras [interessantíssima a referência a uma "constelação" de afinidades, de que fariam parte Nietzsche, Dostoievski e Blake] e, sobretudo, das suas conversas, senta-nos à sua mesa, viaja connosco na carruagem que nos faz ver, aproxima-se no seu génio e na sua fragilidade. Às vezes, com o pequeno livro nas mãos, sinto-me regressado à infância: tornei-me, de certa forma, o meu avô: este livro, que sublinho, que cheiro e temo estar lendo demasiado depressa, arriscando-me a concluí-lo de um momento para o outro, faz parte daquela "constelação" de livros a que a imagem do avô me estará para sempre associada.
Relativamente a Gide, mantinha, até agora, uma reserva tensa. Custava-me que fosse um dos responsáveis - aliás, parece que o principal - por que a obra de Proust não tivesse sido inicialmente publicada; custava-me a leitura que fez de "À la Recherche", tratando-a como a série interminável de descrições de bailes, nos salões aristocráticos de Paris. Lendo o seu diário, entendo-o um pouco melhor. Percebe-se que Gide é penetrante, e que tem sempre razão nas suas reflexões - isto é, pelo menos uma certa razão, mesmo nos casos em que o tempo viria mostrar que, no essencial, a sua visão estava errada. Há sempre qualquer coisa de subtil e profundo que ele "capta"; saber se essa "captação subtil e profunda" é o importante, o que há-de contar, isso depende mais do porvir, do sentido do porvir, ou do que a História, na sua parte de acaso, acabar por distinguir...
Tudo o que Gide diz a respeito de Proust, nomeadamente da sua relação enganadora com a homossexualidade, é absolutamente correcto. Que o acuse de, na sua obra, tratar falsamente a homossexualidade, expondo-a num retrato que guarda dela unicamente o cómico e o sórdido, transferindo toda a beleza e inocência para as relações heterossexuais, é indiscutível. Que Proust tem de ser lido para além disso, porém, no sentido em que a sua obra é inesgotável e infinitamente superior a esse aspecto, é uma evidência que André Gide recusou. Eu diria que a sua homossexualidade, assim confrontada, não lhe possibilitou ser um leitor total...
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