terça-feira, 28 de junho de 2011

MOACYR SCLIAR: A ORELHA DE VAN GOGH


J. Paulo, simpático recente leitor deste blogue, referiu, num comentário, Moacyr Scliar; e vários livros da sua autoria, entre os quais um, de contos, chamado A Orelha de Van Gogh.
E sucedeu isto: não conhecendo Scliar, não tendo, portanto lido qualquer um de seus textos, sabia que estava, algures na minha estante, A Orelha de Van Gogh. Não é extraordinário? A explicação é mais simples do que pareceria: foi-me oferecido, talvez num aniversário, certamente há muitos anos. Nunca me motivou o suficiente para iniciar a sua leitura, mas, entretanto, o nome, bizarro, enigmático, instalara-se.

Comecei imediatamente a lê-lo. Bem! O meu leitor tem absoluta razão acerca da grandeza de Scliar. Alguns contos são muito breves, quase como haikkus: aquele que dá título à obra, por exemplo, tem três páginas. Mas nessas três páginas, deambula deliciosamente em torno de um problema; de uma solução extremamente engenhosa - e estranha e, bem vistas as coisas, absurda - para o problema e, por fim, do erro prático dessa solução: uma certa falha de pormenor.

Diria que esse é o modelo dos contos de Scliar: a solução para o que as suas personagens têm de enfrentar é sempre um primor de fantasia, um delírio de imaginação; mas, em última análise, nessa possibilidade subsiste um pormenor desacertado em relação à realidade. O meu leitor falava-me de um núcleo judaico na obra de Scliar e tem uma vez mais razão. Por um lado, é claro, porque essa desadequação entre o sonho e a realidade, ou entre a teoria e a prática, é um dos elementos fortes do humor típico dos judeus. Por outro lado, porque os temas bíblicos, as parábolas, nomeadamente, são, como Deus, omnipresentes na sua escrita.

A forma, contudo, como pega nos episódios do Antigo Testamento é surpreendente. Veja-se o conto com que o livro tem início, «As Pragas»: fala-se, obviamente, das pragas que o faraó e seu povo sofreram; mas o ponto de vista não é, por uma vez, o dos judeus, e sim o de uma família egípcia - que nunca oprimiu ninguém; que sempre trabalhou; que é pobre (ou, pelo menos, não rica) e, não obstante, passa pelos mesmos tormentos, infligidos por Deus, e que seriam dirigidos (em teoria) à casta opressora. Que Deus injusto é este, que tamanha ferocidade é essa, inexplicável e tremenda, que pune tanto culpados como inocentes, no afã de libertar o povo escolhido? Também no impagável «Diário de um Comedor de Lentilhas» se parte de um ponto de vista marginal, e de que nos não lembraríamos, o do derrotado: no caso, Esaú, que por causa de um prato de lentilhas perdeu a progenitura.

Ainda somente a meio do livro, prefiro não me pronunciar muito mais: a não ser para sublinhar a escrita, enxuta, como se para evitar um excesso de artifício e de acrobacias; porém, porosa, cheia de vida, adaptável, particularmente bela. «Adaptável», escrevi: é isso mesmo, porque em cada conto a linguagem de Scliar busca sempre o modo certo, podendo chegar àquele desnudamento quase total, como numa espécie de rascunho, todo feito de tópicos curtos, com que descreve a saga de Marta, à procura de um marido para seu filho, em «Marcha do Sol nas Regiões Temperadas», que é tão-só o mais comovente dos contos que me lembro de ter lido na minha vida.

J. Paulo pedia-me que deixasse, aqui registadas, algumas notas sobre a minha descoberta deste autor: ei-las, pois, grata e gostosamente, com a promessa de que, agora que me chegou, nunca mais deixarei Scliar ir embora.

2 comentários:

alexandre costa disse...

Sou grande fã de Scliar também...e tive a oportunidade de conversar com ele numa entrevista na bienal do livro de 2008!!
Gostei do seu blog.

Abs

J.Paulo disse...

Realmente fico bastante satisfeito por ter podido apontar daqui o Scliar esquecido nalguma prateleira sua. Você disse que o não conhecia – eis o mais triste: de certa forma o Brasil não o conhece. E isso se explica de forma simples: não se pode dizer que o povo brasileiro seja “leitor”. O prazer da leitura ainda é algo alheio à gente daqui, e mesmo entre quem lê, é pouco quem lê ou procura bons autores. E acho que Scliar também reparava nesse triste fato; daí ele se dedicar também à literatura infanto-juvenil. Olha, eu imaginava que você fosse responder em sucintas duas linhas – se o respondesse – foi, pois, muita gentileza ter dedicado um post inteiro. “Marcha do Sol nas Regiões Temperadas, que é tão-só o mais comovente dos contos que me lembro de ter lido na minha vida.” Teria o senhor ideia de como essa declaração me impressionou? Porque uma opinião assim, vinda de um homem com tanta leitura, (coisa que fica evidente pelo blog), não pode ser tomada como leviana ou banal.

Felicidades!