sábado, 18 de junho de 2011
HOWARD JACOBSON: A QUESTÃO FINKLER
Ninguém como um judeu para usar o humor da forma que mais me toca, no limiar de um cinismo cáustico, como se nenhum princípio ético fosse suficientemente forte para se erguer contra o que quer que tenha de ser dito de modo a conseguir arrancar umas boas gargalhadas. De Groucho Marx e Leni Bruce a Woody Allen ou Jerry Seinfeld, os humoristas judeus sempre foram aqueles capazes de estilhaçar as virtuosas hipocrisias.
Abordo esta questão pela segunda vez no meu blogue. Fiz a referência à irreverência do humor judaico, a propósito de O Complexo de Portnoy, torno a fazê-la enquanto leio A Questão Finkler. Mas os títulos de ambos os romances bastam para que entendamos até que ponto essa referência é verdadeiramente inevitável. Porque Portnoy e Finkler são nomes judaicos, e «a questão finkler» é, de algum modo, a questão do judaísmo, o problema de ser ou não ser judeu, com tudo quanto isso implica em termos culturais, políticos - ou meramente existenciais.
Há, porventura, uma inveja relativamente ao judeu, que todos os gentios carregam. Não uma culpabilidade, que também existe, naturalmente, mas, para além dessa, uma secreta inveja: precisamente porque, lá está!, o humor judaico é magnífico e as mulheres não lhe resistem, porque a inteligência de um judeu é sempre mais aguda - ou genial - do que a de um não-judeu, ou porque os judeus constroem muito facilmente uma unidade (familiar, religiosa) a partir da qual compreendem o mundo de uma forma particularmente rica e interessante. Não há aqui, como poderia parecer, qualquer tipo invertido de racismo, mas uma espécie de confiança que convive paredes meias com uma terrível falta de estima própria. Estas questões perpassam, latente ou manifestamente, pelas páginas de todos os livros de autores judeus, ou sobre o judaísmo: inclusivamente pelas deste, que define o conceito do judeu portanto, como o de grande edificador do sentido da existência, bem como, paradoxalmente, o de cultivador do não-sentido e do absurdo.
A «questão finkler» tem que ver, muito simplesmente, com a maneira como um não-judeu, Treslove (amigo de judeus e, nomeadamente, de um filósofo judeu chamado Finkler) é assaltado, em plena luz do dia, por uma mulher que lhe chama algo: mas que lhe chamou exactamente a mulher? Jules (o seu nome é esse)? Conhecê-lo-ia ela, então? Ou Jewels ("jóias")? Mas porquê «jóias»? Ou Jew ("judeu")? E por que razão, se Treslove não tem ascendência judaica? A partir deste equívoco, ou desta incompreensão, desta estranheza que irrompe inexplicavelmente no seu quotidiano, Treslove vai reflectindo e discutindo (com os seus amigos e consigo mesmo) sobre o que significa "ser" ou "não ser" judeu...
Este livro, de Howard Jacobson, foi vencedor do Man Booker Prize 2010, e um dos assuntos de conversa residia precisamente na originalidade de este prémio ser atribuído, pela primeira vez, a um "livro cómico". Não lhe chamaria um livro de humor, mas, à maneira precisamente de O Complexo de Portnoy, A Questão Finkler é, de facto, um romance hilariante.
É também, num certo sentido, um romance de uma grande simplicidade, com algo de minimalista, segundo a forma como todas as narrativas contemporâneas tendem a ser feitas em torno de temas quase insignificantes - uma pergunta, uma ideia, uma obsessão -, ao invés de paixões impossíveis ou decisões trágicas; e tudo se passa mais subjectiva do que objectivamente, seguindo os minúsculos passos das sensações ou dos pensamentos, do que as acções em que se cumprem gloriosamente vidas de personagens imortais. Neste romance todas as personagens são demasiado mortais. Aliás, o luto pelas viúvas é um elemento fundamental. Trata-se de uma opção: o fragmentário e o risível, as pequenas quebras da rotina, acabam sendo mais reveladores do sentido - ou do não-sentido - do universo, do que as heroicidades extremas.
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3 comentários:
"Há, porventura, uma inveja relativamente ao judeu, que todos os gentios carregam" ...tem dó!!!
Eu percebo que não tenha sido muito claro: não é a minha posição, mas uma ideia subjacente ao livro em causa. E todo o romance se compreende à luz dessa espécie de inveja, que faz um não-judeu, como Treslove, o protagonista, por causa de um engano, viver a sua vida inteira perguntar-se o que é ser judeu, a querer sentir-se judeu, a ir para a cama com a mulher de Finkler, quando esta era viva, por pensar que ela era judia, etc etc etc. Neste contexto, faz sentido. Ou melhor: no interior do livro, que foi escrito a partir deste ponto, faz todo o sentido.
Olá, José. Conheci esse seu blog recentemente; não mais que algumas horas. Lendo esse post, ocorreu-me fazer-lhe uma - modesta - recomendação; porém, ao mesmo tempo acreditando que você já a conhece. "Moacyr Scliar", conhece-o? É um dos meus autores prediletos brasileiros. De quem sou leitor constante e entusiasmado. As implicações do "ser judeu" têm muito espaço na sua obra e, felizmente, ele não se furtou jamais ao humor; esse humor próprio a que o senhor se refere. Uma vez que ela era duma família de judeus-russos, que emigraram aqui pro Brasil. Um dos livros dele que mais me fascina e perturba, que sempre o releio com certa angústia (acho que aí entra realmente o humor e a visão das coisas intrínsecas ao judeu) é "A orelha de Van Gogh". Um livro de contos, algumas narratvas mais longas outras mais curtas; não é muito volumoso, mas ele deixou uma vasta obra (sim, deixou - morreu esse ano). Escreveu romances também; que recomendo tanto quanto os livros de contos; há alguns que julgo notáveis; entre os melhores de nossa literatura. Última coisa - a intenção era uma recomendação rápida - é um pedido: se o senhor chegar a ler efetivamente alguma coisa dele, adoraria poder ler aqui uma sua resenha a respeito.
Felicidades, do Brasil!
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