sábado, 2 de janeiro de 2010
COMO SE FORMOU UM PROFISSIONAL DA LEITURA
Não me lembro, numa primeira infância, senão dos livros muito coloridos de Noddy e de uma excitante edição de O Sítio do Pica-pau amarelo. Estava em Moçambique, na casa do meu tio e, lá em baixo, para onde eu gostava de me escapar sozinho, penetrava na gruta mágica de Ali-Baba, que era a salinha de brinquedos que o tio António mandara fazer às netas, a partir de um antigo galinheiro: perdia-me entre brinquedos e livros.
Mais tarde, com oito ou nove anos, já em Lisboa, recordo um volume magnífico - talvez no português do Brasil -, que reunia Robin Hood, Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, do qual retenho perfeitamente o poema da Morsa e do Carpinteiro, que devo ter relido vezes sem conta, surpreendido, divertido, fascinado.
A seguir, de volta a Moçambique, para além das leituras proibidas que pescava secretamente entre as estantes do meu irmão - O Homem, sobre um primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que agora faria sentido reler, e A 25ª Hora -, o que marcou decisivamente o meu gosto pela leitura foi a descoberta da senhora dona Enid Blyton: Os Cinco, é claro, mas, mais do que esses, Os Sete: o clube que formavam, as excursões em bicicleta e os deliciosos «lanches ajantarados» que as mães lhes preparavam, ou as merendas, descritas com todo o detalhe, que levavam nas viagens. Devorei Os Sete. (Hoje, nem me lembro senão de um ou dois deles, um tal Pedro e uma tal Bárbara. E um cão, que era o Toy!)
Com alguma curiosidade, pergunto-me qual foi o primeiro livro literariamente excelente que li, aquele que terá marcado o despertar do meu gosto, o meu prazer, o meu vício, a minha paixão pela leitura. Estou em crer que pudesse ser O Idiota. (Sempre era Dostoievski!). Estava na mítica estante do meu irmão, e este detestava-o, com aquela sua arrogante necessidade de pôr em causa tudo quanto fosse consagrado e respeitado. «Génios tão indiscutíveis», reclamava ele, sarcástico, «e repara como logo da primeira para a segunda página entram em contradição». Era verdade. Não me lembro de que contradição se tratava, algum pormenor na descrição do vestuário, mas lá estava, aliás assinalado pelo tradutor.
Mas talvez não tivesse sido esse o meu clique. Talvez uma peça de teatro do Arthur Miller, talvez um livro de contos de O. Henry, talvez o Gorki. Talvez mesmo Nietzsche, de que não percebia uma palavra e que no entanto me mantinha cativo, absorvendo parágrafos completos. (Assim Falava Zaratustra, já perceberam...).
Em todo o caso, foi assim que a minha formação se foi tecendo. Darwinisticamente. Entre tropeções bem-sucedidos, acidentes e erros que pegaram, descobertas imprevisíveis, lixo que ficou pelo caminho, deslumbramentos precoces e revelações tardias.
Atrevo-me a achar que o resultado é interessante.
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2 comentários:
Os primeiros que devorei com vontade terão sido os da colecção Anita, a que ia somando um volume em cada aniversário e Natal - retratavam a rapariguinha ideal, de comportamento irrepreensível, que cresce no mundo perfeito da dona de casa e mãe de família. Adorava os desenhos e as letras gigantes.
Seguiu-se o Tó e o Noddy. Mais tarde, inevitavelmente, Enyd Blyton em três doses: Os Sete, Os Cinco (que li e reli sempre nas edições do meu irmão - repelia os meus, que tinham capas demasiado coloridas) e as Gémeas.
Vieram os policiais da estante do meu pai e as aventuras do meu irmão, que lia sem grande entusiasmo.
Não consigo lembrar de nenhum Dostoievsky no meu percurso inicial. Deve ser por isso que não sou profissional da leitura.
O Dostoievski interessou-me porque não queriam que o lesse. Não percebi a trama, embora a estranheza do protagonista me tivesse fascinado. Aquela inocência e aquela candura que era mais cómodo confundir com «idiotice». Não és uma profissional da leitura? Só podes contar essa a quem não te conheça. Ou seja: vai contar essa a outro!
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