domingo, 9 de agosto de 2009

LAURENCE STERNE E ROBERT MUSIL: A RECOMPENSA DA LEITURA «DIFÍCIL»

Na minha qualidade de leitor, faço uma demarcação entre livros «fáceis», que se lêem de uma assentada (e, contudo, não são necessariamente maus) e livros «difíceis», nos quais demoramos a entrar, quanto mais a conseguir habitar.

Não excluo à partida um livro por uma ou por outra destas razões. Há momentos em que não tolero os que exigem demasiado de mim: socorro-me então dos outros; não os enjeito; divertem-me, refrescam-me, estimulam-me.

Mas é verdade - e digo-o com toda a convicção - que nenhum livro fácil poderá alguma vez oferecer a intensidade e a variedade das experiências de um romance que tenhamos de rasgar e desvendar; que precisemos de muito tempo para com ele ficarmos em sintonia; em que não possamos, por exemplo, saltar descrições porque, aí, as descrições são parte da fruição; em que não seja possível conformarmo-nos sem sobressalto com a linguagem, ou, pelo contrário, fazer de conta que esta não está lá, porque a própria linguagem é, neles, uma música sinalizada por promessas que se vão cumprindo em espanto e prazer.

Deste ponto de vista, encaro A la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust (que é um texto longo e dificílimo), como o maior e o mais belo de todos os romances que conheço, sejam eles fáceis ou difíceis. Alguma vez terei coragem para partilhar, com os leitores deste blogue, a euforia de mergulhar na memória de Marcel, narrador e personagem de Marcel Proust.

Hoje, venho falar de duas obras - e de dois autores - que julgo «difíceis»: não os recomendaria a quem não goste muito de ler, nem as recomendaria a quem aprecie ler unicamente por uma «certa» razão e não por todas as razões que fazem da leitura em si mesma um enorme e renovado encanto.

Um dos livros é Vida e Opiniões de Tristram Shandy, da autoria de Laurence Sterne.

O outro é O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.















Em Sterne, começa por me maravilhar que um homem do século XVIII possuísse já, tão antecipadamente, tão avant-la-lettre, essa capacidade de inovar na escrita, de reinventar a linguagem e a criação em moldes que, aos menos advertidos, pode parecer que só viriam a ser ousados no século XX. Impressionam-me a sua ausência de respeito pelos paradigmas canónicos da literatura da época, que revira do avesso - logo desde a dedicatória, a bem dizer -, a sua criação de um anti-herói, numa saga em que tudo é frustração e ridículo e, sobretudo, o seu divertido e singularíssimo exercício da digressão na narrativa, com consequências tão extraordinárias para o todo da obra em causa, a que, aliás, tornaremos.

Por outro lado, em Musil, tudo é precioso: a escrita rigorosa e cruel, em que Gonçalo M. Tavares tanto - obviamente - bebeu, de uma precisão matemática mas, simultaneamente, tocado de uma imaginativa vivacidade no seu tom quase aforístico; o vago sabor a pecado que emana daquelas páginas percorridas por um erotismo e uma sensualidade dramáticos (a que, já agora, também me não parece que Gonçalo M. Tavares tenha permanecido indiferente); mas, principalmente, as personagens e, entre elas, o próprio homem sem qualidades, esse Ulrich com o qual tantas vezes me identifiquei - e identifico - no seu grau zero de qualidades, que significa, ao mesmo tempo, uma falta de traços de personalidade demasiado fortes, vincados, vinculativos, que o caracterizem, uma abertura e uma disponibilidade para usar de todos os traços, para assumir os mais incompatíveis aspectos, para ir escolhendo ser, ao sabor da vida e do desejo, livre e gratuitamente, alto e baixo, bom e mau e assim-assim, cientista e anti-científico, indiferente e ciumento, revolucionário e conservador, tímido, exibicionista, numa perpétua aventura em que «nada do que é humano» lhe seja vedado.

Se hoje aqui junto estes dois livros «difíceis» é porque, em ambos, a dificuldade resulta de uma ideia genial dos seus autores. E esse par de ideias torna-se, em cada um dos casos, o centro do texto - ou, se preferirmos ser mais exactos, a impossibilidade de um qualquer centro a que nos atenhamos. Seja, em Sterne, a magnífica digressão onde, a propósito do que quer que nos conte, se sente compelido a contar qualquer outra coisa, ou onde, a propósito de um episódio, terá de nos apresentar os seus antecedentes, e os antecedentes dos antecedentes, e assim ad infinitum, de tal modo que em vez de progredir, a narrativa vai regredindo sempre, impedida de avançar e onde, portanto, nunca chegamos ao termo...(a simples descrição do seu nascimento vai sendo sucessivamente suspensa, à medida que novos episódios anteriores se vão multiplicando e ligando entre si; e lembro-me que a lenta descida de uma escadaria, feita pelo seu pai e pelo seu tio, enquanto conversam, leva talvez um capítulo inteiro a ser narrada ); seja, no romance de Musil, a concepção da fantástica «Acção Paralela»: organização com uma função tão simples como a de planear uma certa comemoração patriótica - a qual reúne a nata das Artes e da Religião, da Ciência e das Finanças; mas, ao longo do tempo, de reunião em reunião, na divagação e na conversa, disparando novas e infinitas possibilidades, nada consegue decidir ou escolher, num exemplo extraordinário de uma «dialéctica do retardamento» e do adiamento, que nunca poderá realizar nem passar à prática coisa alguma! Uma organização de acção, que nunca age, que nunca pratica, que não dá passos, eis o que está no fundo e no fundamento de todo um gigantesco romance...

São obras que, frequentemente, cansam? Sem dúvida. E têm de ser intercaladas? É claro. Que podemos passar semanas sem provar? Eu sei. Mas o bem que nos sabem, o riso que nos sacode no seu convívio, a delícia com que as mastigamos e remoemos demoradamente, o interesse e a reflexão que, ao abri-las, sentimos que aquelas páginas estimulam, elevando-nos a um patamar superior do espírito, são razões que compensam o trabalho que requerem.

1 comentário:

Luzia de Maria disse...

Gostei muito do seu texto! Cheguei ao seu blog investigando "leitura" e chamou-me a atenção as leituras de que você fala: Sterne e Musil.
Também me incluo nessa sua profissão: leitor.
Vou visitar mais vezes o seu blog.
Um abraço, daqui do Brasil,
Luzia de Maria
luziademaria@uol.com.br