quinta-feira, 11 de agosto de 2016
HARUKI MURAKAMI: KAFKA À BEIRA-MAR
Várias tentativas minhas de entrar em sintonia com a escrita de Murakami foram empreendimentos completamente falhados. Alguns exemplos: desisti de Auto-retrato do Escritor enquanto Corredor de Fundo enquanto o diabo esfrega um olho. Ao fim de umas meras dezenas de páginas, já tinha dado a empresa por falida. Sucede, porém, que o meu leitor José Santos viria a fazer uma referência ao Autor, chamando-me a atenção para os elogios que Manuel Cardoso - o qual apreciamos, ambos, muito - tecera à sua obra, de modo que me preparei para nova experiência. Assim, trouxe de uma biblioteca Dança, Dança, Dança. Percorri uma trintena de páginas. Odiei!
«Estou a bater às portas erradas», concluí. «Vou antes ler 1Q84, que é um dos seus romances mais aplaudidos.»
Volume I. Mais leve do que os anteriores, a espaços até mais interessante, mas pontuado por passagens intragáveis e diálogos tão maus como não encontrava há já muito. Deixei-o sensivelmente a meio - retornarei, talvez, mas não para já.
Até que um dia, numa livraria, decidi comprar o romance seu que mais ruidosamente se incensa. Kafka à Beira-Mar.
No interior do livro, frases promocionais sublinham tratar-se de um «forte candidato ao Prémio Nobel da Literatura», que The Guardian considera um dos «grandes romancistas vivos» e, o Los Angeles Times, «a mais peculiar e sedutora voz da moderna ficção». Diabo. O problema há-de ser meu. Ou não é um problema; sucede apenas que, no infinito universo de magníficos escritores que deixaram obra, alguns terão escrito para mim, e faço meus, outros escreveram para outros leitores que não eu.
Mas, de súbito, deu-se o chamamento. Uma luz minúscula acendeu-se. E logo de início, perante um prólogo enigmático e contido, sombrio e dramático. Uma conversa entre um adolescente que se prepara para fugir de casa e «um rapaz chamado Corvo», que não sabíamos ainda quem fosse, ou o que fosse, ou sequer se realmente existiria a não ser na imaginação do adolescente. A partir desta tensa amarra, tudo se vai tornando fascinante. Capítulos curtos, embora a concisão não se mantenha de forma regular, cada um dos quais apresenta um quadro, isto é, uma situação e um conjunto de personagens que não pedem autorização para entrar, mas nos encantam, e que não percebemos o que une às que já conhecíamos, projectando um fio que, durante muito tempo, não adivinhamos como se entrelaçará com os outros fios numa malha coerente.
De facto, aqui, o elemento fantástico não é esmagador. Existe, ou melhor, vai irrompendo. Nakata, o homem que fala com os gatos, e cada um dos diálogos entre aquele e um certo gato possuem a carga de estranheza suficiente para que nos interroguemos; sentimo-nos perplexos, mas não defraudados, e, portanto, vamos devorando atenta e esfomeadamente. [Note-se, contudo, que esse plano fantástico, sempre paralelo a uma narrativa credivelmente realista, se vai tornando mais presente, à medida que o mesmo Nakata devém uma personagem importante].
Como é evidente, para um leitor que ama a forma requintada de Agustina Bessa-Luís, como José Santos, este romance soará como insípido nesse aspecto crucial. Falta-lhe uma linguagem rica, subtil, plástica. Ao procurar uma escrita simples e bem-humorada, recorrendo deliberadamente a frases feitas, que a tradução para português poderão ter tornada ainda mais básicas, Murakami [ou a tradutora, não sei bem] opta por uma forma eficaz de narrar, sim, todavia sem a menor espessura.
Em todo o caso, há, em Kafka à Beira-Mar, uma evidente marca japonesa, a ligação a uma certa visão mitológica da realidade, em que as sombras têm um carácter próprio, os demónios cultivam uma perfídia grotesca e a dimensão metafísica não só se anuncia em tudo, e se teme, e venera, como, em grande medida, dirige todas as figuras e todos os acontecimentos. Esse carácter japonês é misterioso e apelativo; já as referências a Kafka propriamente dito, ou a Natsume Soseki, ou a Schubert, parecem sempre um pouco deslocadas, como se se quisesse, por força, pincelar um romance interessante, mas apenas isso, com o tom justo de erudição: candidatura a Prémio Nobel oblige.
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