«Todos os roubos são passionais, mesmo este, que é cobarde e vulgar. (O seu olhar de inextinguível amor pelo tesouro de repente descoberto!) Todos os delitos, todos os crimes, são atentados praticados à imagem do imenso desejo de roubo que é a nossa própria essência e a forma da nossa alma nua: ter o que se não tem.»
Henri Barbusse, L'Enfer
Primeira referência pessoal: este é um dos livros que comecei a perseguir quando li um comentário sobre ele em The Outsider, de Colin Wilson.


Percebe-se, portanto, que o registo é o do dilema. É o de reconstituir o pecado na sua debilidade e palpitação humanas, naquilo que resiste às classificações demasiado definitivas. É o da perplexidade,afinal.
«E quando ela se vestiu e obscureceu para sempre, e eles se deixaram nada mais ousando dizer, fui agitado por uma grande dúvida. Ela tinha razão? Errou?»
Não é só na estética da linguagem que tudo se esgota, como se a beleza redimisse qualquer mal. Trata-se propriamente da inquietação, do desconforto para que este romance nos arrasta (ele é, na sua forma peculiar, um Livro do Desassossego) e de como essa angústia intocável, difusa, informe mas
penetrante, nos faz perceber que o lugar mais delicado e complexo do humano não é o das grandes certezas morais, mas o da sua génese e fundação: o ponto onde o bem e o mal ainda se não estabeleceram e, portanto, por terrível que seja dizê-lo, conseguimos compreender aquilo que depois - i.e., quando as certezas entretanto se calcificaram - já não seremos capazes de compreender. Apenas desaprovar. Apenas condenar, na nossa indiscutível razão. Daí a importância que adquire, nesta história, o doloroso conflito entre o moribundo e o padre-abutre: «Eu pensava que este padre, na sua violência e na sua grosseria, tinha horrivelmente razão.»