Rui Zink tem sido continuamente entrevistado, a propósito do seu último romance, A Instalação do Medo.
Gosto de Zink como artista que não recua diante de quaisquer riscos. Gosto da sua faceta de provocador. Apresentar uma dissertação [mestrado? doutoramento?] tomando como tema a obra de José Vilhena, requer, inegavelmente, uma coragem, uma ironia e uma liberdade de espírito que são invulgares no nosso país de gente respeitosa e de coluna vertebral em arco.
Isto avançado, tenho de acrescentar que nunca considerei Rui Zink um escritor maior.
O que dele tenho lido enferma, em geral, daquilo que Pedro Mexia designava (a propósito de um outro autor) de um défice de "investimento na linguagem e no estilo"; bem como de uma notória dificuldade na economia do conjunto, com passagens que se arrastam pelo tédio abaixo, e outras que não chegam a desenvolver-se.
Nas entrevistas, contudo, a despeito de alguma arrogância, Zink é quase sempre interessante. E as comparações e metáforas que parecem abundar-lhe, como suor, tendem a ser engraçadas e eficazes.
Uma delas é a de que o autêntico escritor «escreve com o ouvido»; e, depois, reformulava: «escreve de ouvido, no mesmo sentido em que dizemos que um músico toca de ouvido.» É um bom achado: escrever de ouvido significa que se está atento ao mundo, às vozes em nosso redor, ao que se diz, e à forma como se diz por aí. Não podia estar mais de acordo.
Acrescentaria que saber ouvir é um talento. Nem todos os escritores são bons escritores, porque nem todos são dotados deste talento para escutar o que interessa, o que merece ser ouvido, o que é bonito, o que é bom, ou precisamente o que é mau.
Por outro lado, concluía Zink: «Há quem pense que o escritor é capaz de criar uma linguagem própria. Isso é treta!»
Era a leve tinta de arrogância a que me referia. «Saber escutar», ou ter desenvolvido em si esta arte da escuta, não significa que os melhores e maiores não saibam depois, a partir do que ouviram, «criar a sua própria linguagem». Shakespeare ouvia, e como, e com que precisão, mas o poder de usar tudo quanto ouviu numa obra que ninguém mais escreveu, implicou a criação de uma linguagem única, e absolutamente sua. Proust ouvia, e ouvia perfeitamente. Ouvia os porteiros, a sua empregada, a sua mãe, os vizinhos - ouvia-se a si mesmo, e à criança neurasténica e carente que sempre foi, mas o rio em que todas estas vozes se acertam numa espécie de esmagadora polifonia é a invenção de uma linguagem própria.
Escutar é o ponto de partida. Mas a escuta, só, sozinha, não faz a grande obra. Fá-la aquilo que Zink desmerece como «treta»: a construção de uma linguagem.
1 comentário:
Há menção a este escrever de ouvido em Clarice Lispector, particularmente num romance publicado em 1977, A hora da estrela. O silêncio, aliás, era um tema para essa escritora.
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