quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

ANITA BROOKNER: UMA AMIGA DE INGLATERRA



«Ele irradiava uma espécie de hilaridade que condizia com o seu cabelo loiro e a sua figura elegante: era da mesma altura de Heather, que se conservava calada e recatada na sua companhia, como para lhe permitir ocupar o centro da cena que ela sentia dever inevitavelmente pertencer-lhe. Quando entrei na sala de visitas de Wimbledon, na semana seguinte, encontrei-o no meio de um grupo de mulheres embevecidas, porque as tias sucumbiram imediatamente e Dorrie [a mãe de Heather] tinha uma expressão de adoração no rosto. Tendo tido oportunidade de examiná-lo por um momento antes de ser apresentada, pensei que ele estava a desempenhar bem o seu papel, mas com um ligeiro exagero. Estava a explicar-se a si próprio como suponho que se sentia obrigado a fazer, e conseguia adiantar-se a todas as questões respondendo-lhes antes que fossem perguntadas. [...] O que senti, penso, naquele breve momento antes de ser atraída para dentro do círculo, foi que talvez estivesse a ser exibido demasiado encanto e que as expressões de arrebatamento que perpassavam pelas suas feições extremamente animadas eram talvez um pouco prematuras, um pouco deslocadas, e um pouco excessivas, comparadas com a calma sobriedade emitida pela própria Heather

Lendo este livro, e já a rascunhar mentalmente o post que não poderia deixar de lhe dedicar, antevi de imediato esta citação, que vêm de descobrir, como sendo a abertura do pano. Adoro a passagem: a apresentação, por Heather, de um noivo, como um rito de passagem; a descrição sumária do acontecimento como se de uma peça de teatro se tratasse; o à-vontade da personagem principal; o arrebatamento de um público ansioso, mas, simultaneamente, para um bom entendedor, digamos para um crítico céptico e cínico, a noção de um certo excesso, de um [quase imperceptível, ou mesmo imperceptível para o público vulgar] "overacting".

Quem é que, salvaguardadas as distâncias intransponíveis, nos lembra este modo de escrever? Ou descrever? Esta consciência de uma realidade que quase nos não é mostrada através de características físicas ou espaciais, mas de subtis movimentos, gestos, inclinações em que só certos observadores atentam, e que só os intérpretes de uma qualidade especial conseguem interpretar? Proust, é claro.

Com a diferença de que Proust é um clássico, e todos podemos referi-lo mesmo que nunca o tenhamos lido. Em contrapartida, uma mulher com semelhante tipo de inteligência e intuição neurasténicas, escrevendo este livro em 1987, dificilmente teria oportunidade de ser aceite pelo «grande público». Daí que o romance tenha praticamente desaparecido, e só por um inexplicável acaso eu tenha encontrado a tradução portuguesa, suponho que de 93, numa prateleira de uma Biblioteca.

Em si mesma, a história parece de uma grande simplicidade. É antes o aprofundamento dos caracteres, e a sua elevação a tipos inolvidáveis, o que possibilita um texto que se lê com invulgar prazer: isso e, naturalmente, o facto de nos equivocarmos: confiarmos tanto na versão que a narradora nos vai apresentando, que nos esquecemos de que ela interpretou o que agora rememora, e o fez à luz dos seus próprios sentimentos, nem sempre claros para ela mesma: a inevitável arrogância e superioridade em relação a Heather, de quem é amiga, mas sente, ao mesmo tempo, dever orientar e proteger, terão de esbarrar, em dado momento, na descoberta de uma Heather oculta sob a habitual e sóbria Heather. Que mistérios de autonomia e força se desvendam por baixo das figuras que fechámos, definitivamente, no que já decidíramos que são os seus limites e insuficiências?

Se posso aproveitar para explicar por que razão me vi tão aflito para escolher dez romances portugueses de 2012, eis, neste livro de que ora vos falo, um símbolo dos motivos do meu desajustamento.

Quando leio e escrevo sobre os que andam actualmente escrevendo  [Dulce Cardoso, João Ricardo Pedro] vejo-me seguido por centenas de leitores. A sério. Alguns dos posts que faço acerca dos "actuais" chegam rapidamente às trezentas ou quatrocentas visitas. E, no entanto, que fazer? O que me move aqui continua a ser comentar livros invisíveis, textos a que chego por coincidências improváveis, ou por faro, ou por recomendação de amigos que muito prezo.

E, bem sei, este post, por exemplo, vai ter três leitores. Literalmente. Os fiéis. Não deve andar ninguém a pesquisar blogues em busca de Anita Brookner.

Mas era precisamente com ele que me apetecia principiar o ano de 2013.

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