quinta-feira, 24 de março de 2016

HENRI BARBUSSE: L'ENFER


«Todos os roubos são passionais, mesmo este, que é cobarde e vulgar. (O seu olhar de inextinguível amor pelo tesouro de repente descoberto!) Todos os delitos, todos os crimes, são atentados praticados à imagem do imenso desejo de roubo que é a nossa própria essência e a forma da nossa alma nua: ter o que se não tem.»
             
Henri Barbusse, L'Enfer  




Primeira referência pessoal: este é um dos livros que comecei a perseguir quando li um comentário sobre ele em The Outsider, de Colin Wilson.

Descubro um romance que escava planícies para tocar no subterrâneo interdito; como Lolita ou Lua de Mel, Lua de Fel, o seu território é o de um comportamento social e moralmente inadmissível, o do vício asqueroso, porém tocado de tal forma pelo talento do autor, pela sua linguagem, que se torna sublime. Não me entendam mal. Não se trata de desculpá-lo. Não muda o modo como o olhamos eticamente; não que passemos a admirá-lo, sequer a aceitá-lo. Mas, por um lado, a verdade posta a nu no seu concreto é diferente da que esperávamos. Em vez da maldade ou do desrespeito por outrem, apenas encontramos, como móbil, a solidão, a melancolia, a ausência de laços autênticos. Em vez da curiosidade abusadora, apenas um insaciável e pervertido interesse pelas pessoas. Porque a história - se há propriamente uma história - é a de um narrador que confessa o seu voyeurismo, isto é, narra a maneira como, num quarto de hotel, por um buraco, observa minuciosamente o que sucede no quarto ao lado. A mulher que se desnuda. Os infiéis que se amam e conversam sobre o que desejariam encontrar no seu amor proibido. Um parto. Um dos quadros mais perturbadores é o do sacrifício de uma mulher por razões materiais: casa-se com um homem no limiar da morte para ter direito à sua herança (ela que ama um outro) e oferece, essa noite, o espectáculo da sua nudez àquele que a desposou por piedade e amor.

Percebe-se, portanto, que o registo é o do dilema. É o de reconstituir o pecado na sua debilidade e palpitação humanas, naquilo que resiste às classificações demasiado definitivas. É o da perplexidade,afinal.

     «E quando ela se vestiu  e obscureceu para sempre, e eles se deixaram nada mais ousando dizer, fui agitado por uma grande dúvida. Ela tinha razão? Errou?»

Não é só na estética da linguagem que tudo se esgota, como se a beleza redimisse qualquer mal. Trata-se propriamente da inquietação, do desconforto para que este romance nos arrasta (ele é, na sua forma peculiar, um Livro do Desassossego) e de como essa angústia intocável, difusa, informe mas
penetrante, nos faz perceber que o lugar mais delicado e complexo do humano não é o das grandes certezas morais, mas o da sua génese e fundação: o ponto onde o bem e o mal ainda se não estabeleceram e, portanto, por terrível que seja dizê-lo, conseguimos compreender aquilo que depois - i.e., quando as certezas entretanto se calcificaram - já não seremos capazes de compreender. Apenas desaprovar. Apenas condenar, na nossa indiscutível razão. Daí a importância que adquire, nesta história, o doloroso conflito entre o moribundo e o padre-abutre: «Eu pensava que este padre, na sua violência e na sua grosseria, tinha horrivelmente razão.»

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