[...] tinham percebido que Lisboa era uma escadaria que não ia dar a parte alguma.
Gosto de Djaimilia Pereira de Almeida. Muito, e por boas razões: porque escreve bem, num português em que o elemento africano, uma musicalidade de Angola, é autêntico, intrínseco e sem, por isso mesmo, necessidade de se exibir como em Mia Couto. Porque tem um olhar perscrutante e porque pensa ponderada e profundamente, o que percebemos quando nos tornamos leitores habituais das suas crónicas. A autonomia da reflexão e dos argumentos de DPA, nessas crónicas, resiste a que os reduzamos a linhas orientadoras de partidos, ou a categorias dicotómicas politicamente correctas, de uma forma rara e refrescante.
Luanda, Lisboa, Paraíso principia por se fazer notar precisamente pela linguagem. Voluptuosa, poética, seduz-nos logo pela beleza: lemos o romance, em certa medida, como se estivéssemos a ler um poema e, portanto, para além das descrições e da narração dos acontecimentos, ou oculta neles, pressentimos sempre uma verdade mais intensa, que não é da ordem dos factos representados, ou da história que se nos conta, mas da forma, da expressão, das palavras. Para entenderem do que falo: Na cama, às escuras, eram um mostrengo. Os cabelos dela cobriam as maçãs do rosto dele. As pernas dele acrescentavam-se às pernas finas dela. Respiravam debaixo do lençol como se um único coração os animasse. Na escuridão, inspirando o mesmo ar, ela rangia os dentes nos intervalos do ressonar dele, num crescendo furioso que, ao rebentar, desmaiava num fôlego apaziguado em que o ritmo de ambos se encontrava por segundos para logo divergir como duas classes da mesma orquestra.
Em si mesma, a narrativa é de uma grande simplicidade. Não assistimos ao debruçar sobre situações, com as personagens pensando ou dialogando, ou interagindo, em suma, como parte de um quadro minuciosamente descrito. Ao invés, capítulos breves vão-nos dando conta de um grupo de protagonistas envolvido por um rápido desenrolar de acontecimentos no tempo: a criança nascida com um defeito no calcanhar, que lhe comprometerá a marcha (para sempre, a não ser que a submetam a uma operação, antes dos seus 15 anos); a mãe que cai numa paralisia pós-parto, e num estado quase vegetativo, de que regressará incerta e periodicamente; o pai, para quem a vida se transformaria em sofrimento e mistério, matéria de incompreensão e de indagações, mentor da viagem, com o filho, de Luanda a Lisboa [é pungente a chegada a Lisboa e o momento em que, um dia, à chuva, tristes e desnorteados, se perdem pelas ruas] e, por fim, fixando-se nas imediações da cidade, até ao paraíso, esse a que o maravilhoso título alude, quando encontram abrigo e um amigo.
Será, pergunta a sinopse, "esta amizade capaz de os salvar?"
É-nos indispensável ler este romance.
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