domingo, 22 de agosto de 2021
JULIAN BARNES: O HOMEM DO CASACO VERMELHO
Tudo nesta extraordinária biografia tem a mão do romancista. Aqui, de um modo tão claro e tão assumido, não poderia ser considerado uma falha no que respeita à seriedade biográfica da investigação ou da sua apresentação: é uma opção fascinante.
Está na origem deste livro uma pintura: "Dr. Pozzi at Home", de John Singer Sargent. Julian Barnes descobriu-a, como se ela inesperadamente esperasse por si, numa parede do National Portrait Gallery, em 2015. Calculo que o impacto que ela teve sobre si, seria muito semelhante ao que poderia ter sobre qualquer um de nós, se lhe prestássemos a devida atenção. Reparem naquela impressionante mão direita, segurando uma fita, em que cada um dos dedos parece autónomo, num movimento próprio e distinto do dos outros. Reparem no casaco, que não é, afinal, um "casaco" no sentido mais adequado do termo, mas, provavelmente, um roupão. Observem o intenso vermelho (ou escarlate) do tecido, que sobressai sobre o fundo em que se pressente um vago cortinado, de um vermelho mais escuro, matizado de castanho, talvez aquilo que designamos por "bordeaux".
Quem é este Pozzi, que posou para Singer Sargent em 1881,e cujo nome parece italiano? Que se sabe dele? Que importância ou interesse teve a sua vida?
No início desta obra, ele surge-nos como um dos três franceses que em 1885 visitaram Londres.
Mas Barnes hesita precisamente no início, e essa hesitação entre vários possíveis começos da história, em diferentes tempos e lugares diversos, revela que, mais do que encontrar a "essência " de Pozzi (que seria isso, de resto?), o autor o procura como um complexo de momentos, de encontros, de relações, sobre o fundo de acontecimentos políticos, culturais, históricos. Ou seja, de quem ficamos, talvez, a saber o que é possível saber sobre qualquer figura não excessivamente conhecida, a esta distância. Deste modo, a biografia do Dr. Pozzi torna-se um pretexto para uma biografia de uma época. Saber que um dos amigos com que se deslocara a Londres é nada menos que uma das pessoas em que Proust se inspirou para construir o seu imortal Barão de Charlus, é um indicador infalível de que esta biografia é um complemento de À la Recherche du Temps Perdu, uma compreensão das guerras entre intelectuais, o abismo e o fascínio entre Paris e Londres, as expressões mais ou menos difusas do anti-semitismo, o Caso Dreyfus, Zola e o seu tonitruante "j'accuse", o lugar das mulheres, quer as Bovary, quer as Guermantes ou as Françoise (ou a extraordinária Sarah Bernhardt que constitui, ela própria, a única catergoria em que poderíamos inseri-la), o peso dos homens, como o bem-sucedido Pozzi ou o invejoso Jean Lorrain, e o requinte da vida de alguns por oposição à da maior parte.
É um livro profusamente ilustrado, o que faz dele, por essa razão mais, um objecto que gostamos de sentir e folhear. É muito belo. Reproduções das pinturas de uma época, fotografias dos seus protagonistas em todas as áreas, e a excelente colecção de cromos "collection Félix Potin", com os retratos das figuras mais proeminentes, que, directa ou indirectamente, todas se terão encontrado com o Dr. Samuel Pozzi.
quinta-feira, 12 de agosto de 2021
ILJA LEONARD PFEIJFFER: GRAND HOTEL EUROPA
É verdade que não conhecemos - eu, pelo menos, que me lembre - a literatura dos
Países Baixos, e que o nome de Ilja Pfeijffer me dizia pouco. Eufemismo para
"nada". Folheio, confesso que com tanta curiosidade como cepticismo, este
monumental, fisicamente falando (563 páginas), Grand Hotel
Europa, e sou sugado pelos inúmeros vértices de um ambicioso e impossível
projecto. O recurso a, ou mesmo a guerra entre, diversos géneros e formas, no
interior de um mesmo romance, nada tem de novo. Já que falei de "guerra", posso
estacionar um instante para lembrar que, não tão longe no tempo como isso,
Guerra e Paz permanece um excelente
exemplo de uma miscelânia de formas. No romance de ILP, vamos sendo guiados entre dois momentos que parecem
paralelos, embora estejam relacionados e o segundo seja a consequência directa
do primeiro. Num "outrora" relativamente recente, o narrador viveu, em Itália
(em Veneza, sobretudo) uma paixão sublime por uma italiana chamada Clio, e o nome não é, evidentemente, mera coincidência,
estudiosa de Arte, professora, apaixonada por Caravaggio, efabuladora,
temperamental. É a dramática separação do casal que leva o homem até,
precisamente, o Grand Hotel Europa, um, em outros tempos, magnífico e
resplandecente hotel, vivendo hoje numa deprimente decadência (a que o novo
proprietário chinês fará tudo para o arrancar, dando-lhe um aspecto mais
"autêntico" do que nos nossos sonhos: para cúmulo da ironia, a antiga sala chinesa transformou-se numa imitação de
pub inglês que há-de parecer, aos olhos dos turistas chineses que aí virão, a essência
do pub inglês; também a fonte do jardim foi consertada para, de novo, jorrar água;
obras várias por todo o lado marcam o vetusto e labiríntico edifício).
Nesse hotel, lambendo as feridas, o narrador conhece os hóspedes mais bizarros,
ansiosos por atenção, carentes de que os oiçam. Assentemos desde já na parte
mais simples e óbvia, nunca, aliás escondida. O Grand Hotel Europa é uma
metáfora da própria Europa. Com uma longa cauda atrás de si, uma História de que
se orgulha e não existe nos outros continentes, ou então, em mais nenhum
continente, nem mesmo na Ásia, é exibida com tanto deslumbramento, a Europa
encontra-se, contudo, envelhecida, e o seu futuro implicará, em grande parte,
que se venda a alma ao diabo, passe a expressão: ou seja, que se abra a um
turismo desenfreado, à procura de um "autêntico ", que, precisamente, não sabe
como ou onde encontrar e, quando encontra, destrata e destrói, não por mal, mas
porque essa é a condição inocente de todo o turista. Esta exposição da
"mensagem", digamos, faz-se de múltiplas formas (daí haver-me referido à
multiplicidade de géneros em que o "romance" se exprime). a) É a narrativa
ficcional (mas até que ponto?), b) é a reportagem, sendo que, para afinar a verosimilhança, o
narrador será afinal o autor, o próprio Ilja Leonard Pfeijffer - e mesmo quando
algumas referências que faz nos parecem duvidosas, a mais rápida pesquisa nos
mostra que são absolutamente fiáveis: os romances referidos, da sua suposta
autoria, são aqueles que realmente escreveu e publicou; o realizador holandês de
um filme bizarro dos anos 60, de que nos fala, existiu (ou existe)
efectivamente, e realizou mesmo esse filme, passado numa estranha cidade
aquática holandesa que, com efeito, também é um facto; mesmo a mais improvável e
cruel das descrições, a de uma visita a Scopia (Escópia?), capital de um país
recente, a Macedónia, com as suas imponentes estátuas falsas, o seu gigantesco e
ridículo Alexandre equestre, sentado num cavalo da altura de um prédio de quatro
andares, como se estivesse numa sanita, é indiscutivelmente real. Ou seja, a
cada momento nos interrogamos sobre a probabilidade da narrativa ou das
descrições, no limite, por vezes, do ridículo e do surreal, e percebemos que,
por exageradas que possam ser, têm sempre o fundo resistente, duro e
indesmentível da realidade. Pesquisei Scopia, vi fotografias, com um soluço de
piedade por um povo que escolheu (ou a quem foi imposta) uma exuberância de
fachada, para enaltecer uma História, também, ao que parece, falsa ou deturpada. Ou discutível (ou ardentemente discutida pelos vizinhos Gregos); c) ou os ensaios, porque, que mais chamaríamos àqueles longos monólogos, às
interpretações da pintura de Caravaggio, ou - e sobretudo - às prédicas acerca
do turismo, dos turistas holandeses em primeiro lugar (de que nos é oferecida
uma inesquecível tipologia), mas não só? A grande questão à volta da qual se
entretece este romance é, pois, o que é realmente a Europa.
Há uma identidade europeia? Algum conjunto de traços que distingue todos os habitantes deste
continente feito de nações com povos tão diversificados e diferentes uns dos
outros? Em dado momento, ILP cita George Stein, numa tentativa de resposta que
não resisto a reproduzir. A Europa caracteriza-se por cinco pontos: 1. Os cafés.
E estes são os lugares onde as pessoas (desde o século XIX) se reúnem para
discutir ideias ou urdir conspirações. 2. A existência de uma
natureza domesticada e transitável (ao contrário do que encontraríamos na
América, mesmo na Ásia, certamente na África). 3. Como já disse, estar
tão imbuída da sua História. Em toda a parte nos confrontamos com pedras da
Antiguidade, pinturas medievais ou renascentistas (por contraposição, por
exemplo, aos americanos, que nem sempre entendem que não se trata apenas de
trastes velhos). 4. A genial relação entre a racionalidade e a revelação.
Enquanto outros povos fundaram a sua sabedoria principalmente na revelação, a
tradição europeia é a da mistura entre o judaísmo, o cristianismo e a filosofia.
5. Finalmente, a ideia da decadência: em nenhum outro povo encontraríamos tão
nitidamente formada esta ideia de que a própria História é, de certa forma, a
evolução a que se seguirá fatalmente a queda. Numa discussão sobre o assunto com
o meu primo, que aqui já não mencionava há muito (a pandemia, infelizmente,
impediu os seus triunfais e breves regressos a Portugal, pelo que nos fomos
adaptando a regulares reuniões on-line) acordámos nestes cinco pontos, aos
quais, contudo, acrescentaríamos alguns mais: certamente uma literatura, uma
música e uma pintura que a definem, entre outros. Mas entendo que Steiner queira
falar mais de "condições de possibilidade" de uma identidade europeia do que
propriamente do seu "conteúdo".
Que todas as personagens do hotel possam ser
vistas como símbolos, sem que por isso percam a espessura, é uma verdadeira
lição, nesta obra, de como ligar o colectivo e o individual. Tome-se, para já, a
relação entre o "maitre d'hotel", que tudo sabe e a tudo acorre, que todos os
desejos dos hóspedes antecipa, culto e bem-falante, e o "piccolo", um jovem
refugiado que encontra, para contar a história terrível da sua vida, as palavras
de Vergílio, no único livro (no caso, vertido em prosa), que possui no seu
quarto. A dor é universal. É uma relação de mestre-aprendiz, de hospitalidade e
transmissão (a que se opõe, porém, o exemplo de Louise, a camareira capaz de
trair o jovem, porque um seu sobrinho quer ocupar o seu lugar, e "estes
estrangeiros vêm para roubar os nossos empregos").
E leiamos cada uma destas
personagens na sua singularidade. Não conheço um outro romance que aborde tão
explicitamente esta pergunta: a Europa como identidade existe? E sobretudo, que
o aprofunde segundo a complexidade de tantos ângulos ao mesmo tempo.
Etiquetas:
Identidade europeia,
romance holandês
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