sábado, 4 de agosto de 2018

ROLAND BARTHES: FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO


Li, não consigo lembrar-me em que crónica ou crítica literária, de Pedro Mexia, a referência a  Fragmentos de um Discurso Amoroso como constituindo o texto de Roland Barthes que mais o tocava.

Eu conhecia alguma coisa de Barthes, concretamente O Grau Zero da Escrita e o absolutamente brilhante Mitologias. Sendo de Filosofia, mantinha, em relação a alguns autores da linguística e da semiótica, sobretudo franceses, aquele deslumbramento com que os que navegam em águas filosóficas reagem às ciências da linguagem, bem como às do psíquico, ou do económico ou do social. Barthes ou Kristeva eram, nessa medida, conhecidos por nós, lidos e discutidos.

Quando vamos em busca de um livro que nos recomendaram, criamos uma expectativa que contém o seu imaginário próprio: há uma ansiedade que aspira ao mergulho na obra de que já formámos uma ideia subtil, vaporosa, muito leve, exaltante. É difícil, porém, que essa expectativa não seja frustrada pelo livro propriamente dito. Sucede, mas raramente.

Principiei Fragmentos de um Discurso Amoroso pela introdução, e a decepção surgiu e foi-se alastrando depressa. Soava-me demasiado teórico. Mesmo a explicação das razões por que não poderia construir-se um discurso sobre o discurso amoroso, ou um meta-discurso amoroso ou, precisamente, uma teoria do discurso amoroso,  parecia paradoxalmente teórica. Mas, entretanto, deu-se um acaso: esperando, de pé, com o livro na mão, que outra pessoa chegasse, comecei a folheá-lo. E caí num capítulo (numa das "figuras", como lhes chama Barthes); bruscamente, deparava com a chave de leitura. Tudo, naquela passagem, reflectia a minha própria experiência amorosa. Era, sem dúvida, um estado que reconhecia de um momento de paixão, e que reconhecia naqueles precisos termos.

Figura após figura, o reconhecimento renovava-se. Todos aqueles quadros da experiência amorosa me eram familiares. Nada há de teórico, de facto: o único discurso amoroso é o do próprio sujeito, do interior do seu sentimento e da sua entrega ao outro. É um discurso sem exterior: qualquer tentativa de o analisar, ou de o psicanalisar; qualquer interpretação, em resumo, segundo uma grelha, arrisca-se a deixar escapar entre as malhas o essencial. É ainda um discurso fragmentário; as diversas figuras em que se exprime não têm relação sequencial entre si. Para evitar, aliás, o impulso e o equívoco de as agregar numa história, como se fossem os momentos de dada narrativa, Barthes decidiu dispô-las alfabeticamente. O que significa que não precisamos de nos ater a uma leitura metódica, seguindo qualquer ordem. É indiferente que comecemos pela «espera», pela «dependência», pela «languidez» ou pelo «ciúme».

Tratar-se de experiências singulares, subjectivas, não implica que não sejam, num certo sentido, afins, comuns, isto é, comunicáveis, na acepção em que vos falava de «comunicação»: revejo-me naquela emoção, no mesmo estado, na situação idêntica. Lendo-a, leio-me, ou releio-me. Essa afinidade está, de resto, presente em todos os autênticos romances de amor, e do Werther de Goethe ao Marcel de Proust, passando pela palavra dos filósofos (Kierkegaard, Nietzsche) ou pela música (Schubert), Barthes vai indicando, ao longo do seu texto, à margem, os nomes dos sujeitos da experiência amorosa com quem está em diálogo ou a revisitar. Por vezes, apresenta uma citação. Maioritariamente, limita-se a apontar, e é quanto basta.

É uma leitura que me atinge. Ou seja: mergulho na ideia desejada e esperada do livro. Não estou aquém do ideal que projectara a partir da recomendação. A beleza deste texto e a redescoberta de mim próprio através dele preenchem-me como leitor e como sujeito da experiência amorosa..

   

1 comentário:

Unknown disse...

Adorei esta obra em 1980. Cito-a no meu primeiro livro de poesia porque o influenciou. de resto terá continuado a influenciar todos...