sexta-feira, 20 de abril de 2018

ALEXANDRA LUCAS COELHO: O MEU AMANTE DE DOMINGO



Alexandra Lucas Coelho tem o dom de contar uma história usando capítulos eficazmente curtos, de uma originalidade, na escrita, que encanta (ou choca, mas, de facto, nunca nos deixa indiferentes) e de uma intensidade que nos agarra desde o início. A narradora e protagonista deste romance, uma mulher na casa dos cinquenta, não tem pejo em falar de sexo nem de recorrer a palavras «fortes». Vem sendo apanágio da escrita feminina portuguesa de uma certa geração. Se pensarmos em Alexandra Coelho e Isabela Figueiredo, por exemplo, e as compararmos com autores portugueses do género masculino (os João Tordo ou os Valter Hugo Mãe), haveremos de convir que, salvo uma ou outra excepções em passagens cirurgicamente assinaláveis, os homens são bem mais comedidos na linguagem, evitam sujar as mãos no vernáculo e não fazem do sexo uma espécie de obsessão. Se bem que Gonçalo M. Tavares possa ser muito cru e muito duro. Não se trata de juízos de valor. O romance de Alexandra Lucas Coelho abre uma clareira de liberdade no uso da linguagem, que, por um lado, a pode levar sem pudores por onde queira na expressão das raivas ou das frustrações e, por outro lado, lhe permite dar conta, realisticamente, de um certo tipo de personalidade que a personagem desta narrativa replica, mulher, intelectual, culta, de meia idade, desiludida do amor, vibrante de desejo, disposta a encarar a vida como uma viagem alucinante, sem tabus, sempre na vertigem da irresponsabilidade e do desenraizamento (embora uma parte significativa da trama se alimente do reconhecimento de que um abismo separa o "ser" do "parecer").

Existe, subjacente a O Meu Amante de Domingo, um combate surdo, que nos remete para o conhecimento e para o amor da autora pela literatura brasileira. É o combate entre Clarice Lispector e Nelson Rodrigues, tão bem compreensível na referência da narradora  a uma entrevista que Lispector fez a Rodrigues. Por estranho que nos soe, ele, tido comummente por machista, reaccionário, desbragado, "pornógrafo", como lhe chama um dos seus biógrafos, seria, uma vez travestido, o inegável modelo da protagonista de ALC, muito mais do que Lispector, demasiado ansiosa, excessivamente preocupada com as aparências, elitista, conquistando a sua sofisticação a troco de desistir da autenticidade.

Entre vários amores descartáveis (um mecânico que lhe escreve sms com arrepiantes erros de ortografia, reticências e smiles, um velho amigo, poeta, provável futuro Nobel, ou um episódico e atlético nadador), a narradora depara-se, um dia, com o sonho, diria eu, de qualquer mulher madura e intelectualmente exigente. Imaginando a partir da descrição daquele que ela designará sempre pelo "caubói" (não há nomes), e se fizerem o favor de esquecer o bigode, que a faz aproximá-lo, fisicamente, de um Tom Selleck, eu diria que a comparação que me ocorre é com Sam Shepard. Um Shepard português, mas de bigode, 16 anos mais novo do que ela, dramaturgo, guionista, auto-consciente, seguro de si, do seu cabelo, do seu perfil, fascinando-a com um discurso sedutor, carregado de irresistíveis referências e piscares-de-olho cinéfilos e literários. Este recém-amante revela, porém, o pecado do desprendimento - tê-la-ia esquecido no momento em que, contra todas as previsões, ela, afinal, se apaixonou?, pergunta-se o leitor. (Na verdade, é muito pior do que isso, como verificarão).

É um romance, fundamentalmente, acerca da liberdade e da dor de corno; da surpresa perante as paixões não programadas, que irrompem, e a dolorosa verificação da não-correspondência; do hiato entre o descomprometimento que se prega e, porventura, uma clandestina carência de laços duradouros. E sobre uma forma muito particular, de que não posso falar sem me tornar um spoiler, de traição e roubo. É uma história sobre entrega, frustração e vingança. É um fado.

1 comentário:

sonia disse...

Cada dia mais agradeço ao Supremo por ter me livrado da ansiedade por ter alguém. Hoje, olhando para trás e vendo o quanto sofri por necessitar de um parceiro, vejo que a liberdade chega sem a gente ao menos suspeitar que possa existir. Estou plena, mas claro, sem a sensação de andar em montanha russa.