terça-feira, 18 de julho de 2017

FRANZ KAFKA: O CASTELO



«O senhor interpreta tudo mal, mesmo o silêncio.»
Franz Kafka, O Castelo



Kafka é um autor imprescindível. O Processo e A Metamorfose são romances que não podemos deixar de ler, que teremos necessariamente de reler, porque se nos revelam diferentemente em diferentes idades da vida, e que penetram em nós - perdão pelo jogo fácil e óbvio - metamorfoseando-nos, de facto, emocional e intelectualmente.

O Castelo foi lido, por mim, numa antiga edição da Livros do Brasil, era eu, então, um jovem angustiado e inquieto. Devo dizer que, dramaticamente impressionado por O Processo, e em segundo lugar por A Metamorfose, tomei O Castelo, de certa forma, por mais do mesmo. Duro e complexo, ainda desassossegador, é claro, mas sem o poder da surpresa terrível e fatal que encontrara nos anteriores e, evidentemente, já não encontramos quando estamos preparados.

Releio-o agora, e percebo que certos autores não devem ser devorados numa única fase, porque existe um efeito de contaminação de uma sua obra sobre outra, que faz com que vamos lendo as seguintes como réplicas ligeiramente modificadas das anteriores. Ao mesmo tempo, dizê-lo não pode deixar de ser uma inutilidade: certas descobertas contêm, como imperativo categórico, o esgotamento do autor que viemos de descobrir, a busca insaciável de tudo o que possamos ler dele. Não faz mal. Haverá sempre tempo para uma releitura tardia deste ou daquele texto específicos.

As personagens de O Castelo estão imbuídas daquele perverso tom onírico que aprendemos a designar por kafkiano: os aldeões confundem-se, como uma espécie de massa que segue o agrimensor, observando as suas reacções e tentativas, com um misto de curiosidade e troça. Mas, para além deste interesse dedicado ao forasteiro, como a um cómico num lugar com poucos meios de entretenimento, nada verdadeiramente lhes parece espantoso na sua situação - uma das características da obra kafkiana é o estranho erigido em normal. Em última análise, o próprio agrimensor não se questiona metafisicamente: é um profissional contratado, que tem, por objectivo, chegar ao castelo cujos proprietários requereram os seus serviços, e que, como em certos pesadelos, não consegue lá chegar; irrita-se, procura quem o guie, usa de astúcia, mas sempre em vão. Porém, em nenhum momento vê, no que lhe sucede (ou não sucede), uma ilustração da condição humana, ou do absurdo da existência.

Há, contudo, uma dimensão metafísica neste impedimento contínuo e absurdo. Sartre referia-se-lhe, certeiramente, no prefácio que redigiu para O Estrangeiro, de Albert Camus. Considera Sartre, nisso se demarcando dos críticos que viam, em Camus, «Kafka a escrever como Hemingway», primeiramente: que a escrita de Camus nada tem, na sua essência, que ver com a hemingwayana: a brevidade dos períodos daquele seria totalmente artificial; uma deliberada contenção para provocar um certo efeito, de que, no entanto, às vezes pareceria esquecer-se, resvalando para o excesso de palavras. Em segundo lugar, quanto a Kafka: outro equívoco, porque de Albert Camus estaria ausente, precisamente, o absurdo metafísico. Em Kafka, dir-se-ia que o universo está carregado de misteriosos sinais, que nem sempre entendemos, como se o negar da realização e do contentamento dos seus protagonistas dependesse de alguma entidade (entidades, na verdade), que transcende(m) a sua e a nossa inteligência. Que acentua(m)  a sua e a nossa insignificância. Não se trata só de se ser o joguete de forças ocultas: mas de se ser o joguete de forças desconhecidas, num jogo incompreensível, e cujas regras nos serão para sempre inacessíveis. 

1 comentário:

sonia disse...

Meu escritor predileto. Identifico-me com ele, semelhante uma alma gêmea. Sofro do sentimento de não-pertencimento, a sensação de não adaptabilidade ao mundo. Sinto os dramas de Kafka como se tivesse vivido uma vida inteira a seu lado, como uma irmã que entende sua alma angustiada.