terça-feira, 24 de maio de 2016

JOHN BANVILLE: O LIVRO DA CONFISSÃO



Se não por outra razão, Banville mereceria ser lido por causa de uma sagrada sageza na escolha das palavras. «O motorista era um homem muito alto e definhado com um boné na cabeça e um fato de flanela azul de corte antigo», por exemplo: «Examinou-me conscienciosamente pelo espelho retrovisor, sem se preocupar com a estrada à nossa frente. Tentei retribuir-lhe o olhar de modo lúgubre, mas ele não se deixou intimidar e apenas fez um sorriso de esguelha com um ar amável de conhecedor.» Estou certo de que percebem o que tento dizer; parece fácil, mas é de um domínio perfeito: o "conscienciosamente", o "lúgubre", o "sorriso de esguelha" ou o "ar amável de conhecedor", já para não falar da inesperada descrição física ou do hábito (olhar insistentemente pelo espelho retrovisor) combinam-se para que vejamos toda a cena - e é uma cena simples, sem a menor relevância no desenvolvimento narrativo.

É certamente este segredo do uso da linguagem que José Rodrigues dos Santos ignora, quando dá a entender que certos escritores se preocupam excessivamente com as palavras - nanja ele, que seria um "mero" contador de histórias. Notável humildade, sob que se mascara o auto-elogio. E, já agora, a incompreensão: a arte da linguagem não é necessariamente uma coisa que nada tenha que ver com a arte de contar histórias, como se pudéssemos escolher alternativamente. Em Banville, precisamente, a riqueza e o cuidado com a linguagem coincidem com a riqueza e o cuidado na maneira de melhor nos contar. Mas enfim.

Há, neste narrador que se incumbe de escrever a confissão do seu crime, dirigido-a ao juiz, uma espécie de irresponsabilidade radical. Como se nunca reconhecesse intenção ou premeditação nos actos que recorda, como se tivesse tudo sucedido um pouco por acaso, ou ele não estivesse propriamente a escolher mas a tropeçar em situações, ou como se realmente existisse em si um ser viscoso e maligno, conduzindo-o em momentos de raiva ou desespero.

A contenção narrativa é de uma eficácia prodigiosa; a ambiguidade na descrição permite a contínua surpresa do leitor - poderia dar um exemplo, mas estragaria o efeito. Deixem-me ser, também, o quanto baste de contido: num momento, é-nos descrita certa personagem na presença de quem o narrador se encontraria, e quando, por fim, percebemos de quem - ou de que - se trata realmente, escapa-nos um «ora essa!» de admiração, nos dois sentidos da palavra. Todo o romance está carregado dessas pequenas maravilhas, desses equívocos que nos surpreendem: dirigem-nos o olhar para o alvo errado e, de repente, puxam-nos o tapete sob os pés.
Agradecemos e prosseguimos, deliciados.


2 comentários:

josépacheco disse...

Banville está cá, em Portugal. Acabo de assistir a uma apresentação da sua obra, na Feira do Livro - feita por uma senhora de inglês macarrónico, que o entrevistava falando sempre mais do que ele próprio...

josépacheco disse...

Ah! E que queria que ele concordasse com a ideia de que é um escritor com uma forma feminina de escrever.