Porque vem um livro ao nosso encontro?
Pode até suceder que venha. Mas não é necessariamente essa vinda esperada, bem-vinda, que justifica as leituras felizes. Existem livros ao encontro dos quais nós é que vamos, por uma nuvem de minúsculas
e imprevisíveis razões.

antecipadamente consciente; não respondeu a nenhuma questão com que andasse a debater-me; para além do facto de um título sugestivo, que uma escritora minha desconhecida apontava, há algum tempo, no suplemento do jornal i, como porventura o melhor título de sempre, este romance não me procurava.
Na livraria, folheei-o durante o tempo suficiente para me aperceber de um pormenor, aliás, que me fez quase virar-lhe de uma vez as costas. O odioso género epistolar.
A data, o endereço,
De Juliet para Sidney:
Querido Sidney etc,
A data, o endereço,
De Sidney para Juliet:
Querida Juliet, etc.
O que me permite uma segunda conclusão: não há géneros nem estilos maçadores, ou datados ou inconvenientes. Consegue-se - ou não - o género justo para se contar uma certa história, criando o tom e a atmosfera que abrem - ou não - as portas ao leitor. O que mo revelou? Tendo trazido o livro, li-o em 2 dias: li-o sob um encantamento sem rugas, numa perplexidade doce, completamente absorvido, pela noite fora, sem sono ou cansaço, sem, durante esse tempo, outro mundo que não o que se me reconstituía no espírito.
As cartas valem por si próprias. Cada uma delas é fundamental. Pela simplicidade e clareza com que apresenta, como respectiva autora, cada uma das personagens, os motivos por que se escrevem, as perguntas que fazem à memória umas das outras, ou os factos que narram para responder a essas perguntas. Nenhuma das cartas está a mais como se se tratasse tão-só de usar esse expediente para acrescentar, artificialmente, uma informação de que o leitor carecesse a fim de não se perder. Cada uma delas tem o seu tempo, o seu ritmo, a sua razão. Cada uma nos cativa por si. Mas simultaneamente, como é evidente, na sua interligação elas constroem uma maravilhosa composição polifónica, de um sentido de humor e de um optimismo que nos tocam e convertem.

Confesso a minha ignorância: não fazia a menor ideia de que uma parte de Inglaterra tinha sido ocupada por tropas nazis. Mas as Ilhas do Canal da Mancha, nomeadamente a ilha de Guernsey, foram efectivamente invadidas pelos alemães, que as isolaram procurando quebrar todo o fluxo de informação dos seus habitantes com Londres e o mundo. Mas nesta ilha ocorrera a reunião em torno do porco assado, que, para enganar os vigilantes soldados, se transformará em anódina tertúlia literária.
O que muda esta abundância de acasos em destino é a curiosidade, genuína, que a narração dos mesmos vai provocando na destinatária das cartas, algum tempo depois da guerra. É esse interesse pela revisitação do passado, que unirá pessoas que nada deixava prever que devessem vir a conhecer-se. É esse interesse levemente aturdido, a que se seguem as perguntas de quem está em face de um mistério muito cândido e muito belo, que obceca e já se não será capaz de perder de vista. Portanto, nada há de inverosímil em que o espanto aqui funcione como o motor secreto desta ligação entre gente distante, pessoas heterogéneas, que se aproximarão e unirão de diversos modos.
Poderia dizer que é um romance sobre a importância dos livros, mas isso é tão óbvio que mais vale nem referir. A não ser que se acrescente este pormenor: o papel que os livros, ou certos livros, ou certos autores em particular, adquirem, em certas circunstâncias, mesmo entre os menos instruídos, os não eruditos, os pobres e os simples. E isto sem sombra de didactismo ou lições morais, num optimismo contagiante mas não politicamente correcto? É obra.