sábado, 5 de maio de 2018

MOACYR SCLIAR: O CENTAURO NO JARDIM



"É sempre agradável ver-se um destruidor de fábulas ser vítima de uma fábula."
Gaston Bachelard (citado por Moacyr Scliar)


O centauro é, no romance, um centauro literal. Há um tom, fica sempre bem dizê-lo, "kafkiano" nesta história sobre como, para surpresa e consternação de todos os presentes, nasceu, no seio de uma família judia, refugiada da Rússia no Brasil, um menino humano da cintura para cima, mitologicamente equino da cintura para baixo.
O jovem ser em causa seria marcado por três vivências, que o narrador, o próprio centauro, vai evocando (na escrita simples e perturbadoramente luminosa, que eu recordava muito bem dos contos, que já havia lido, da autoria de Scliar): tendo aprendido a tocar violino, deitou, um dia, o intrumento ao rio, irritado porque se partira uma corda, procurou a seguir suicidar-se, e conheceu (e perdeu de vista) um indiozinho. Refiro estes momentos, apenas para poder transcrever-vos a seguinte passagem:

"Jogando ou não violinos no rio, tentando ou não me matar, encontrando e perdendo um amigo, vou vivendo."

Oh, sim, pode parecer pequena coisa, mas não se deixem enganar: esta é, na sua discreta concisão, um modo genial de sintetizar a passagem do tempo. Observem: ao enunciar o primeiro episódio no plural ("jogando ou não violinos"), como exemplo de possíveis acontecimentos do mesmo género, Scliar multiplica-os. Ao introduzir a negativa (jogando ou não, tentando ou não), amplia-os até ao infinito: não só sucedeu isto, aquilo e outra coisa, mas "istos", "aquilos" e "outras coisas", e ainda o contrário deles: "istos" e "não-istos", "aquilos" e experiências diferentes de "aquilos", "outras coisas" e coisas que não se assemelham a essas. Entre o concreto das situações indicadas e a sugestão de pluralidade introduzida, o autor consegue, numa frase, assinalar que o tempo foi passando. É muito mais difícil do que se diria, e escritores cotados perdem-se nesse tipo de transições.

Também o ter-me detido nesta passagem em particular, e tão insignificante, deve ser interpretado como símbolo do que quereria dizer acerca de toda uma escrita. O romance de Moacyr Sclia explode em subtis achados afins, quase invisíveis. O leitor sente-se impressionado e não percebe imediatamente porquê.

Como na Metamorfose, trata-se aqui de uma história sobre, primeiramente, a maneira de uma família aceitar, ou não, e lidar com a diferença que emerge abrupta e radicalmente no interior do grupo. Mas sobretudo, acerca de outro tema, que exporia sob estas perguntas: podemos esconder a nossa natureza, curá-la, extirpá-la de nós? Suportaríamos viver com o segredo de não sermos quem somos?
Em O Centauro no Jardim, algo de um quasi-policial se estrutura, então, em torno desse segredo - que é, a seu modo, um crime, atraindo ameaças e inimigos do passado, e o receio da vingança e da chantagem.

3 comentários:

Bárbara Ferreira disse...

Tenho muita curiosidade acerca deste autor - por um lado, tenho visto muito boas opiniões sobre este livro, por outro, há a polémica com Yann Martel.

josépacheco disse...

Mas não é verdade que, em face dessa polémica, Scliar reagiu com grande generosidade e desprendimento - claro, aproveitando para chamar a atenção de Martel para que, no mínimo, teria sido elegante enviar-lhe o livro?

Bárbara Ferreira disse...

Sem dúvida, José! Aliás, é a despreocupação do autor, a forma como reagiu, que me dá maior curiosidade ainda sobre a sua obra.