sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

MILAN KUNDERA: A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER


Era jovem quando pela primeira vez li esta obra. Admito que me pareceu demasiado incongruente e intelectual, com capítulos que eram autênticos ensaios filosóficos ou de História da política, e emperravam imperdoavelmente a trama, diminuindo a intensidade dramática e romântica da narrativa. Enviei-a para o limbo da memória. Não voltei a pensar no que classifiquei como o insustentável pedantismo de Kundera; e o Autor tornou-se-me um daqueles a evitar cautelosamente. Estava portanto advertido.

Séculos decorridos, sou surpreendido com a proposta de um aluno, cúmplice no amor aos livros, de apresentarmos, em parceria, A Insustentável Leveza do Ser. Incapaz de o desiludir, comprei uma edição de bolso (traduzida por Inês Pedrosa, actualizada, perdão, "atualizada" para o nefando AO, a 9, 95 €), dei por mim a relê-la e, quem diria? a não poder parar, como se agarrado a um romance de suspense.

Tudo faz sentido: a começar pelo conteúdo do primeiro capítulo, onde Nietzsche e o mito do eterno retorno são expostos como a chave para a razão de ser do título. Se o que sucede é evanescente, então nada marca, e isto que acontece (o que quer que aconteça, por sublime ou terrível que no momento nos soe) devém indiferente. É uma questão de tempo. Como se sabe, contra essa angústia perante o perecimento inevitável das coisas, a ideia do eterno retorno, ou de que todas as coisas se repetirão indefinidamente, e para sempre, representa, em Nietzche, a consciência da gravidade até da menor das decisões e dos actos. O imperativo categórico seria: Age sempre como se cada acto teu tivesse de se realizar de novo, uma, e outra e outra vez, eternamente. Ou seja, que essa ideia marque com todo o seu peso cada uma das tuas escolhas, cada uma das tuas acções.

É este fardo bom? É a gravidade positiva? Ou pelo contrário, no par peso-leveza, caberia antes à leveza o polo positivo, o ideal, o desejável? Devemos procurar, na existência, no ser, o peso do que permanece, a lei interna de cada momento, inadiável como um destino, o es muss sein! de tudo, ou a leveza do fortuito, do perecível, do que não se enraíza?

Por outro lado, as personagens de Kundera são assumidamente fictícias. Aparentemente, leves. O autor enfraquece-as até quase à transparência, ao confessar abruptamente, a meio do romance, que nunca existiram e que as criou a partir de uma frase ou de um ruído. Contudo, enraizam-se em nós. Estranhamente, elas existem mesmo, autónomas, com uma identidade inegável, vivendo a sua intranquila história de amor dentro da História de um país invadido, traído e dividido (até se haver transformado em dois diferentes países, a República Checa e a Eslováquia). Os protagonistas, portanto, existem por si, entre a leveza e o peso específicos do seu ser e, em certa medida, para além da voz de Kundera, talvez até contra essa tonitruante voz à procura de absorver o texto inteiro, invadindo-o, por sua vez, num exercício de virtuosismo admirável, totalitário, pomposo e omnisciente.

E não ignoremos, é claro, a existência igualmente inegável do cão Karénine, com o seu amor e as suas rotinas, sobretudo ao longo daquela última parte, de que me esquecera de todo, pungente e comovente - uma rara e bela apologia de todos os animais de que o homem se serve e uma crítica terrível ao modo como o ser humano, esse "parasita das vacas", os trata em toda a parte, em todos os tempos.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

YUVAL NOAH HARARI: SAPIENS

"Mas o frágil edifício do amor deles ficaria completamente destruído, porque esse edifício repousava sobre o pilar único da sua fidelidade, e os amores são como os impérios: assim que desaparece a ideia sobre o qual estão construídos, também eles desaparecem."

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

Leio, por estes dias, dois livros, cativos meus "que me trazem cativo". Um é Homens Bons, de Arturo Pérez-Reverte. Outro, Sapiens, de Yuval Noah Harari. Menciono ambos apenas porque me não foi fácil decidir sobre qual dos dois escreveria no blogue.

Sapiens é, como indica o subtítulo, uma breve história da humanidade. E, creiam-me, a história em causa é narrada desassombrada, inteligente e fascinantemente, ainda que em alguns momentos se torne excessivo o peso da interpretação do autor, a qual, não sendo menos plausível ou menos interessante, não deixa todavia de evidenciar o seu carácter de explicação meramente verosímil, entre outras que poderíamos inventar, com a mesma força e o mesmo grau de razoabilidade.

Seja como for, a história dos sapiens, tal como contada por Harari, é muito diferente daquela a que nos habituáramos. E assume o risco do politicamente incorrecto, contextualizando e pesando as consequências teóricas das afirmações apresentadas, e mostrando por que razão certas conclusões foram sempre evitadas, se não ocultadas, pelos cientistas, assustados com a utilização que se poderia haver feito - e que, ao longo do tempo, efectivamente se fez.

Desde a ideia de que coexistiram vários géneros da espécie "homo", para além do "sapiens", e que, portanto, diferentes raças poderão não ter provindo de uma fonte única, até à de que a capacidade humana para o boato foi fundamental na revolução da inteligência e do conhecimento; desde a ideia de que a revolução agrícola foi o maior embuste, no sentido em que, ao invés de uma libertação e melhoria da vida do homem, o tornou um escravo da terra (e o trigo o domesticou, muito mais do que foi por ele domesticado), até à de que o próprio de todas as culturas é a crença religiosa, considerando Harari o liberalismo, o comunismo ou o nazismo como religiões que substituíram a adoração a Deus pela adoração ao Homem; ou ainda quando refere a importância do casamento entre a ciência e o imperialismo para a constituição e a singularidade do Ocidente, tal como o concebemos hoje - em todas as suas abordagens e intuições, Harari é arrojado e provocador. Concordemos ou discordemos, não deixamos o livro sem ter reflectido, duvidado, discutido, aprendido.

A tese central, que subjaz a toda a obra e retorna explícita e continuamente, é a de que os sapiens foram os únicos animais que se tornaram capazes de erigir ordens imateriais. Uma república é uma ideia, a que se adere e pela qual se luta. A liberdade é uma ideia em nome da qual creio que o meu acto é uma escolha. O que são o progresso e o retrocesso, a honra e a propriedade, a inteligência e a sensatez, ou a literatura e o humanismo senão ideias, ordens ideais, pelas quais pautamos as nossas vidas, tomamos decisões, construímos habitações e cidades? O que é o dinheiro, mais do que a moeda ou a nota, que valem pela ideia que os os sustenta? Ou o crédito? O que é uma Pátria? Ou, segundo Harari, Deus - senão ideias?

Consistirá nesse dom da crença a grandeza humana? Ou a sua fragilidade?