domingo, 17 de novembro de 2024

CORPO VEGETAL E A DELICADEZA DA MATÉRIA HUMANA


 Vindo de ler, há menos de uma semana, Corpo Vegetal, de Julieta Monginho, e ainda na esfera de reverberação de uma angústia que poderia assumir a forma da "orquídea Juana", com um papel fundamental no romance, o termo que, paradoxalmente, me ocorre, e tende a permanecer, é "delicadeza". Não "tristeza", não "angústia" nem "ansiedade", ou "raiva", e também não, no outro extremo, "felicidade", palavras que me devolvem emoções por mim experimentadas ao longo da leitura, reconstituindo personagens e situações (e, em particular, Acontecimento, a que não poderei deixar de tornar adiante): a luta interna da narradora autodiegética para tomar uma decisão; a omnipresença da orquídea, vigilante, ocupando espaço e impedindo o esquecimento (mas que fazer com ela?); os sonhos e as frustrações do pai e da mãe, ele cegando e não já podendo deslocar-se, ela perante o inexorável desfazer de fronteiras entre sonho e realidade; as duras trocas de mensagens com o escritor e, mais chocantes, com o seu advogado; o cuidado comovente da empregada brasileira; os amores redentores, mas nada simples, quer o da filha, em que se mesclam o afecto, a preocupação, os acendimentos típicos do processo de amadurecimento e emancipação de uma jovem desafiadora, desejando descobrir o pai de quem vem a reaproximar-se; quer o do 'anjo', como o designou Paula Morão no lançamento deste livro (que apresentava na Livraria da Travessa): esse anjo, o pai da filha da narradora, comprometido com o teatro, a encenar A Tempestade, numa pequena aldeia alentejana - homem capaz da escuta atenta, atenciosa, amorosa, até, mas demasiado marcado psicologicamente para um compromisso duradouro. Ou os corredores infindos e as burocracias que adiam a possibilidade do atendimento, pela procuradora, de uma mulher insegura e prestes a desistir (corredores e burocracias que merecem o adjectivo kafkianos como o palavrão justo) ou a ambiguidade da atitude e da linguagem dessa procuradora. Por que motivo, então, entre tantas emoções conflituosamente despertadas, retenho, após a leitura, a sensação de "delicadeza"?


Antes de mais, por causa da escrita. Da linguagem de que Julieta Monginho faz a sua matéria, evitando a menor cedência, dando-nos a ver a intimidade das personagens. Um trabalho de busca da formulação diferente da imediata, da habitual, da catalogada, e leva a uma apreensão e a uma compreensão pelo leitor da subjectividade dos caracteres, sempre surpreendente. Nada, nem ninguém, é como nos acostumámos a presumir da forma mais fácil. E se, por um lado, o que assim advém destas pessoas se torna de uma complexidade que resiste ao traço grosso, por outro lado, só pode dar-se na sua ambiguidade e na sua delicadeza, na sua humanidade. Com excepção dos que nunca conheceremos senão através das recordações da protagonista e/ou de mails com ela trocados, ou da procuradora, que apenas nos será mostrada na sua amável e infame tentativa de desencorajamento, as demais personagens expõem-se por uma espécie de bondade natural e de fragilidades intrínsecas. Mas estão sempre para além de qualquer julgamento. Denunciar como tais os pecados e as falhas pareceria mesquinho. Isto é delicadeza. É compaixão. É verdadeiramente a compreensão do outro.

O episódio da narrativa, a que antes chamei O Acontecimento, é muito duro. Violenta-nos, incomoda-nos. Vamos entendendo vagarosamente, como lembra Paula Morão, através de indícios e linhas incompletos, mas desde o princípio, que ocorreu uma violação. Um escritor norte-americano famoso, cujo livro a narradora e protagonista de Corpo Vegetal traduz, e que a visita em Lisboa, teria sido o perpetrador. Mas não é, em si, da violação, que Julieta Monginho nos quer falar. É, para começar, do que a vítima sente e percepciona. De interpretações, dúvidas e receios. De limites: o que muda, não ter existido um "não" - a expressão inequívoca do não consentimento? Poderia o silêncio da vítima durante o acto brutal ser tomado como aceitação? Poderiam, antes, um vago interesse inicial pelo escritor e ter-lhe permitido franquear as portas de sua casa ser interpretados (aliás, também por ela mesma e para ela própria) como convites, como disposição e disponibilidade que a obrigariam a conformar-se com a consumação agressiva? Ora estas hesitações, que indignariam alguns leitores, são também expressão - em torno de um acto terrível - da mesma delicadeza de Julieta Monginho, a quem importa sempre compreender os sentimentos, a confusão de ideias, as dúvidas da vítima, fazendo-os sentir ao mesmo tempo ao leitor, muito longe de qualquer crítica moral.
Só depois de nos afundarmos, juntamente com a mulher que (se) narra, nas suas constantes mudanças íntimas, se lhe põe e se nos põe a pergunta sobre o próximo passo. Que fazer?
E também aí, contra as certezas, contra as invectivas e os conselhos de todos os seus próximos, tanto os que desconfiam como os que sabem o que ocorreu, a tradutora não sabe se deve, o que deve fazer. A noção da desigualdade da luta, uma culpabilidade difusa, um "para quê?" e, sobretudo, uma depressiva inércia convidam a não tratar de apresentar queixa. Em nenhum momento deixamos de a sentir, de a receber em nós, de a compreender. Uma afinidade, mesmo tratando-se de um leitor homem, tece a identificação total. Em todo o romance, só o escritor, na arrogância e no desprezo pelo outro, só o seu acto hediondo, e só o advogado, de que, aliás, nada se conhece a não ser o que lemos na série de mails - o sadismo sarcástico e misógino - permanecem estranhos, externos, opacos, irredutíveis, incompreensíveis. O mal puro, simbolizado na orquídea: de uma beleza que seduz, hipnotiza, de uma frieza e de uma perversidade cuja presença nos assombra e domina.

Tudo o que vim escrevendo poderia fazer pensar num romance em que, a cada página, somos intimados a penetrar num denso exercício de hermenêutica e meditação, o que não deixa de ser verdade; mas, até por isso, não poderia deixar de sublinhar como é construída a narrativa, hábil, simultânea e admiravelmente, sempre sob um efeito de vertigem - e creio que a palavra 'suspense' não seria deslocada. No meio do que é dado a adivinhar e a pressentir ao leitor, de prenúncios, de sinais, no desejo de estimular a mulher, como se pudéssemos aconselhar uma amiga a ter coragem, a lutar, ou na irritação provocada pelos mails do escritor e do seu advogado, 'Corpo Vegetal' é um livro que se devora de respiração suspensa.