domingo, 25 de março de 2018

SARAH BAKEWELL: AT THE EXISTENCIALIST CAFÉ




     A despeito de uma incessante busca do "universal", a filosofia é sempre, em cada momento e pela mão de cada filósofo, um empreendimento situado no concreto da história, da cultura, da biografia do pensador. Talvez porque não está temporalmente muito distante de nós, nenhuma corrente filosófica nos parece, tanto  como o "existencialismo moderno" - tipicamente francês na forma como se popularizou nos anos 30/60
 - um subproduto do tempo, marcado pela Guerra, pela ânsia juvenil de liberdade e contestação dos mais velhos, pela radical revisão dos valores e das hierarquias, pelo peso do marxismo, do maoismo, do feminismo, das lutas pela descolonização acendendo-se um pouco por toda a parte. E pela Paris da Rive Gauche, de Saint-Germain-des-Prés, dos cafés e dos clubes de Jazz.

O existencialismo de Sartre e de Simone de Beauvoir - sei bem por que o digo: estudei filosofia na Universidade de Lisboa - sempre foi olhado, nos meios académicos, com alguma condescendência. Era precisamente o "engajamento" nas lutas encenadas pelo espírito do tempo, que o tornava suspeito: uma espécie de doença infantil da filosofia. Demasiado idealismo e rebeldia, um excesso de atenção ao particular em detrimento da Ideia (com maiúscula), já para não falar das suas origens intelectuais infectadas pelo nazismo (se quisermos traçar-lhe a genealogia não ignorando Heidegger), impediram sistematicamente os professores de filosofia de tratar o existencialismo moderno com o respeito e a dignidade que lhes merecem Kant ou Hegel.

E, todavia, este movimento exerceu sempre um indesmentível fascínio. Aliás - já o terei confessado algures -, foi Sartre, e nenhum outro, o responsável pelo meu interesse desde cedo pela filosofia e por que deviesse um seu cativo.

De Jean-Paul Sartre, é verdade, tudo o que proveio contém o condão de nos fazer vibrar e de nos estimular. As extensas dissertações, os romances, o teatro. Mas também as polémicas, as aproximações e os cortes de relação, os amores, a vida boémia. As suas teses são ágeis, dinâmicas, certeiras como a cafeína ou o álcool. Para além de tudo, existem as imagens. As imagens - que não temos, com a mesma profusão, do habitat da filosofia e dos filósofos de tempos anteriores - falam-nos à imaginação de um modo especial, quase conseguindo que nos sintamos parte integrante do mesmo mundo, do mesmo tempo, dos mesmos ambientes e situações. As imagens (re)constituem em nós uma memória que julgamos comum.    

Daí que o livro de Sarah Bakewell, cujo subtítulo é Freedom, Being and Apricot Cocktails, possibilite a revivência de uma história que nós, os de uma certa geração, ou pelo menos eu e uns quantos que, como eu, nos entusiasmámos na adolescência com o radicalismo exuberante dos existencialistas, sentimos nossa, como se estivéssemos a recordar a própria juventude ou os primeiros passos na autonomia do pensar, entre Sartre, Beauvoir, Raymond Aron, que não sendo existencialista lhes abriu os olhos, Camus, Merleau-Ponty, mas fazendo o percurso inverso até às raízes:  Kierkegaard, Nietzsche, Husserl, Heidegger e Arendt. Sarah Bakewell consegue-o brilhantemente: o deslumbramento da autora que, aos 16 anos, lia La Nausée, de Sartre, é similar ao que descrevi como sendo o meu. De algum modo, fomos todos existencialistas. E a viagem é, como sublinham os críticos, "Fascinating" (Observer) e "Sparkling" (Spectator).

terça-feira, 13 de março de 2018

RAÚL BRANDÃO: HÚMUS


É um texto absolutamente inesperado num autor português dos fins do século XIX (o seu História dum Palhaço é publicado em 1896) e início do XX. Húmus (1917) é uma reflexão filosófica sob a forma de uma perturbadora alegoria em que, mais propriamente do que uma história - de facto, não existe história alguma - desfilam, ante os nossos olhos, personagens: as velhas de nomes incredíveis, a D. Leocádia, a D. Procópia ou a D. Penarícia, os casais tratados pelo apelido, o sr. prior, o padre Ananias e os demais padres, o Gabiru,  doido que nunca percebemos se tem existência real ou é apenas um lado delirante do narrador, em suma uma vila, que simboliza um certo modo de existir, uma dada má-fé do espírito, que (com excepção de Gabiru, aceso e perpétuo arauto da surpresa do existir), tenta evitar por todos os meios descobrir-se no espanto perante a vida e a morte, preferindo-lhe a alienação e a rotina.

Gabiru é, pois, com as suas frases iluminadas e exaltadas, um Sócrates contemporâneo, um corruptor da massa em que a vila se deixa quotidianamente afundar, suportada por invejas, ressentimentos e melancolias de séculos, fechada num cíclico jogo de gamão, em que nunca se olha, não se quer olhar, pela janela, para o desassossegador infinito, para o espantoso mistério de se estar aqui, para o outro lado dos limites que escolhemos, e a que nos atrelamos, pagando com essa prisão o preço de uma pseudo-tranquilidade.

Húmus é fortíssimo. Reconheço na linguagem desta obra, na escrita que lhe é própria, e parece criar a sua lógica intrínseca, densa e labiríntica, imune a uma tentativa de apropriação segundo as regras tradicionais de descodificação, um filho do Dostoievski de Os Cadernos do Subterrâneo, e um pai literário do Carlos de Oliveira do extraordinário Finisterra. E como esses dois, é também um texto, Húmus, que temos de ler vagarosamente, numa particular ansiedade e alegria de descoberta e de susto. E de que devemos repousar a cada momento, por algum tempo, antes de retomarmos a leitura.