Alguma coisa na escrita de Duras começa por participar, para o leitor, da ideia de milagre (embora eu venha abusando da palavra "milagre" e esta palavra seja a última a poder ser banalizada). Mas há nessa escrita uma simplicidade tal, e de tal forma no limiar da oralidade, que se torna difícil compreendermos de onde pode aí nascer uma profundidade, uma riqueza, um dom de nos surpreender, que é constante e, nessa medida, parece advir sem esforço. O dom da linguagem de MD não resulta de uma busca, nem de algum artifício.
O que nos prende na Autora é que tudo se move em torno de um modo específico de tornar fluidas as oposições: é ficção, mas o carácter real e confessional dos seus romances, se assim lhes posso chamar, tem um peso que sentimos bem; é duro, mas a dureza não cai no cinismo, oculta e revela uma sensibilidade fina: sabemos sempre que lemos a exposição de uma vida marcada.
Por fim, uma espécie de despudor, que nos perturba um pouco. A presença e a respiração de uma sexualidade na sua infância, ou na adolescência, e dos abusos a que elas conduziriam. Da mesma forma que o seu rosto, que já era na juventude um rosto de velha - também, nela, a sexualidade é vista como uma doença prematura. De que se trata, precisamente? Não é a beleza, nem o encanto. "O lugar do desejo" ou "o rosto do prazer", designa-os ela: "Tal como tinha em mim o lugar do desejo. Tinha aos quinze anos o rosto do prazer e não conhecia o prazer. Esse rosto via-se muito. Mesmo a minha mãe devia vê-lo. Os meus irmãos viam-no."
Mas ninguém como Duras para, sobre isso, sobre esse desejo e esse prazer pressentidos, prematuros, impudicos, provocadores, recordar e capturar a vida frustrada de todos, adultos e jovens, a tristeza de sua mãe, mesmo nos momentos de alegria, aquele "'desespero tão puro", aquele "desencorajamento de viver."
Em tudo identifica os sinais: no modo de vestir, por exemplo - o desleixo no modo de vestir da mãe, como um abandono, ou (no caso da menina de quinze anos e meio que era ela própria) a incongruência de um chapéu e de uns sapatos de lamé como um acto de sedução ainda não inteiramente consciente de si; os sinais são a revelação de sentimentos, atitudes, expressões da vida. Os planos concebidos para os filhos reduzem-se a sinais. Ou simplesmente as poses para a fotografia. (Admirável descrição).
Ou ainda os sinais da pobreza envergonhada, talvez a mais terrível das pobrezas. Os sinais de uma relação familiar fracturada, perpassada pela má-fé, por fim destruída e nunca refeita, nunca recomposta.
Este livro é também uma investigação dolorosa à memória, uma pesquisa metódica da parte do amor e da parte do ódio que sempre coexistiram; um mergulho na escuridão da adolescência. Mas sem salvação, nem resgate. Sem perdão. Um mergulho desencantado.
Sou leitora apaixonada dos livros dela, talvez os primeiros que li sem conseguir parar, muitas vezes pela noite dentro.
ResponderEliminar~CC~