quinta-feira, 5 de outubro de 2017
ALBERTO MORAVIA: A CIOCIARA
José Santos, que faz o favor de me ler e me apresenta perguntas estimulantes (como se o meu gosto por livros pudesse conter alguma sabedoria, e como se do prazer que fruo, ou das impressões que retenho, fosse possível segregar conhecimento), tem-me falado de Alberto Moravia, uma paixão a que regressa.
De Moravia, lembro-me de ter lido O Desprezo, de que mais tarde vi o filme, de Godard, com Brigitte Bardot e Michel Picolli. O livro não me marcou. Nem porventura o filme. Como no caso da grande maioria dos livros que li ou dos filmes que vi, sem a idade ou a maturidade requeridas, acabei sendo ultrapassado por questões de que nem tomei consciência.
Muito mais recentemente, li Os Indiferentes, de que, no entanto, nem me recordava. O que me parece pouco promissor. Foi em conversa com José Santos, que me descrevia a reacção da sua companheira à obra, que se me acendeu uma luz: Mas... ora que esta... eu já li isso!
José Santos recomenda-me A Ciociara, e não descansei enquanto a não fui pescar.
O romance prende-me, de imediato, pelo aspecto psicológico, a que, aliás, o meu amigo se referira. A narradora é uma filha de camponeses, casada, sobretudo para se libertar da pobreza, com um merceeiro muito mais velho, bruto e feio, com o qual vai viver para Roma.
O mergulho de Moravia na respiração de uma personagem feminina é muitíssimo bem conseguido. E não apenas de uma mulher, mas uma mulher de origens camponesas; uma mulher de certa época, definida pela Guerra; com os seus preconceitos e a dureza de uma visão peculiar do mundo, marcada pelos interesses materiais. Ou seja: não poderia ser - e não é - a linguagem do feminismo que aqui se reconstitui, mas a de uma ética da submissão, e das suas bizarras contradições: casar por interesse, não lhe soa mal; teria, até, algo de virtuoso. Que o homem a engane, soa-lhe como normal e, portanto, aceitável; em contrapartida, ser infiel ao marido já lhe parece um gesto tremendo, pecaminoso, imperdoável.
Cesira não é má. Apenas ignorante: nada sabe, por exemplo, acerca da guerra e das razões ideológicas que movem os italianos, os alemães, ou os «ingleses», como o povo italiano designava então os países aliados. Não se interessa. Só o dinheiro merece dedicação. Desconfiada, gananciosa, mesquinha, agressiva, com a única vulnerabilidade que constitui o amor incondicional pela sua filha, Rosetta, Cesira representa a mentalidade das gentes das montanhas aonde retorna após a morte do marido, fugindo, com a filha, de uma Roma bombardeada e perigosa.
Apesar dos 20 anos que viveu em Roma, Cesira é, no fundo, e tal como vêem e lhe chamam os citadinos, uma "labrega". No seu retorno ao campo brilha a esperança de reencontrar a essência da vida camponesa dos velhos tempos. Sobretudo, a comida, que escasseava na cidade: promete à filha as batatas, o azeite, os nacos de salame ou bom presunto, o queijo salgado. É o retrato físico e psicológico dos homens e das mulheres do campo, em tempo de crise e sobrevivência, duros até à ferocidade, que Cesira vai conhecendo ao longo da sua fuga, o elemento mais forte do romance. Num universo que nunca se constitui como comunidade, porque todas as relações são de interesse e de abuso, as pessoas dividem-se, como lembra uma personagem, "em espertos e parvos." Cesira é esperta. Astuciosa. Rosetta, um pouco parva: mesmo fisicamente, a sua descrição é a que faríamos de uma ovelha sacrificial.
A personagem positiva, Michele, parece, aos olhos dos outros camponeses, incluindo seu pai, Filippo (que, no entanto, não consegue ocultar um íntimo orgulho), pertencer à categoria dos parvos. É um intelectual. Um jovem que estudou e lê. Conhece Dante, por exemplo: sabe que, no contexto da Guerra, só porque os aliados não conhecem a cultura italiana (nunca leram Dante) é que não os perturba bombardear cidades italianas, com o intuito de desalojar as forças alemãs. Falta-lhes a noção da história e da cultura que respira por todos os poros das pedras dos lugares.
O romance de Moravia constitui uma obra magnífica e indispensável no conhecimento daquilo a que chamaríamos uma história da cultura e das mentalidades na Itália do fascismo e da Guerra. E uma abordagem objectiva, longe do "politicamente correcto": o povo não é heróico, os camponeses são obtusos, os invasores alemães mostram-se, na sua maioria, pelo menos os soldados, uns crédulos pobres de Cristo, com quem os aldeões negoceiam e trocam bens.
Infelizmente, a partir de um certo ponto, começamos a sentir que carece de intensidade. A não ser, de novo, na parte final. Até aí, falta-lhe um efectivo motor narrativo, um ímpeto amoroso, uma traição, uma vilania. Tudo acaba por se esgotar numa série de episódios: a fuga, a sobrevivência, as famílias camponesas e os comerciantes obcecados por dinheiro, os furtos, as esperanças, que são sempre de abundância, o medo, as mortes. Até a morte por medo, que uma personagem tão terrivelmente ilustrará.
Desejamos, capítulo após capítulo, ou que um dos jovens morra tragicamente, ou que se desenhe uma paixão arrebatadora e impossível, ou uma traição desesperada, ou um mistério indecifrável. Elenco estas hipóteses, porque nelas identifico os grandes motores de uma história. (O fim é aterrador, na verdade, e talvez pior do que tudo o que enunciei como hipótese. Mas é o fim, pelo que não funciona como um impulso narrativo). Mas Moravia não quer, durante a travessia do romance, fazer da Guerra o teatro de actos ou emoções excepcionais. Apenas o do sentir e do comportar-se de gente comum em situações de excepção.
Adoro seu blog. Seus comentários sobre os livros são bem elucidativos. Mando um site onde poderá ouvir boa música enquanto estiver nos seus afazeres.
ResponderEliminarhttp://radio.garden/live/sao-paulo-sp/radio-scalla-omaggio/
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Abraço,
Sônia