quinta-feira, 9 de agosto de 2012

GEORGE ELIOT: MIDDLEMARCH



Middlemarch foi recentemente reeditado em português - porventura pela Relógio d'Àgua, mas não estou certo.
Pensava há muito ler este romance; vê-lo exposto nas livrarias, volumoso, apetecível, convidativo, pôs-me em estado de caça, como um vampiro captando o odor de uma jovem de bom sangue.
Um pormenor: a novel edição custa 30 Euros.

Não discuto se é caro, se as editoras são empresas geridas por glutões, se é justo para o leitor, se, pelo contrário, não há preço que pague um livro. Ou se ou se. A minha questão é de natureza diversa: pessoalmente, não posso dar-me ao luxo de desembolsar 30 Euros por nenhum livro, mesmo sabendo que para mim não se trata realmente de um luxo mas de um bem de primeiríssima necessidade. Assim, se este blogue de um leitor voraz mas esmagado pela crise, pode contribuir para que os seus seguidores sejam postos perante algumas pistas que os conduzam aonde e a como ler o que queiram gastando menos, então eis o que fiz. Nada de transcendente, aliás: dirigi-me à Biblioteca Municipal de Oeiras. Middlemarch não está à vista, mas no depósito encontra-se a tradução extraordinária, dos anos 50 ou 60, que me introduz na força deste romance escrito por uma mulher que assinava com um pseudónimo masculino.
Nos grandes escritores britânicos do século XIX, como James [porque, para os efeitos que importam, considero Henry James um escritor culturalmente britânico; e por alguma razão acabou por se naturalizar inglês] ou Hardy, notamos um vínculo vivíssimo, um ar de família, que dificilmente se analisaria, mas tem que ver com a inteligência irónica dos diálogos, um certo gosto pela boutade, a perfeição no descrever de lugares ou caracteres, a exposição do ridículo em que se revelam as inflexíveis hierarquias sociais britânicas ou o trágico de sentimentos que explodem, contrariando e desafiando, romanticamente, essas hierarquias. Lendo Middlemarch, descobrimos, encantados, onde reside um dos fundadores, uma das raízes próximas  desse "tom" subtil, que vai descrevendo, vai narrando e, simultaneamente, reflectindo acerca das pessoas e dos actos.

"Middlemarch" é o nome de uma pequena cidade de província. Em torno das personagens centrais de Middlemarch Town, as famílias de prestígio, com os seus renhidos e em geral inconsequentes conflitos por influência política ou social, as suas filhas ou filhos casadoiros, os eclesiastas de religiões rivais, o grupo de médicos antigos, agastados pela presença de um doutor jovem, recém-vindo, as reuniões de salão nas casas importantes, George Eliot cria uma história em que se conjugam, necessariamente, diversas histórias e sub-histórias, nenhuma das quais é menor em interesse. Fá-lo com aquela noção do "todo" complexo, tão cara à literatura do século XIX: como se erguesse uma monadologia em que cada mónada é uma obra completa e fechada em si mesma, mas de um ajustamento rigoroso à estrutura em que se completa.

É um romance sobre o eterno equívoco entre gerações, e sobre o eterno equívoco a que se chamou amor. É, como em Karenina ou Bovary, ou na Luisinha do Primo Basílio, um romance acerca das virtudes nefastas dos casamentos: e, naturalmente, sobre esses fogos fátuos que são as paixões interditas, aparecendo inopinadamente para atiçar o lado inconformado de todos [quase sempre: todas] os que se confrontam com a realidade quotidiana, medíocre e sem chama, do que, um dia, parecera o casamento ideal.

Há uma preocupação com o estilo que nunca é fatigante (como ocorre, por vezes, em Henry James); uma impressionante sageza de como suspender uma personagem, ou uma situação ou uma trama, para retomar outras, e como, mais adiante, regressar às que nos tinham deixado saudades ou em cuidado; e há, sobretudo, a voz do narrador, que nos encanta e de quem nos tornamos imediatamente cúmplices: esse narrador assexuado, mas que tão bem conhece os homens e as mulheres, omnisciente, de certa forma, mas não divino, porque se engana e retrocede - como quando, num delicioso capítulo, principia a falar de Doroteia e, de súbito, se interrompe para se interrogar: Mas por que estamos constantemente a falar sobre Doroteia, como se não houvesse nada a dizer sobre o senhor seu marido? E toma-o, então, como centro da sua narração ao longo do capítulo.

Middlemarch é um romance imprescindível. Faz parte de um clube restrito. Poderíamos nunca descobri-lo, e talvez nem todos o amem como eu o amo já. Mas faz parte de um clube restrito e altamente selectivo: é uma dessas obras que, mais tarde ou mais cedo, terão de ser lidas.

2 comentários:

pedro disse...

tanta vontade, e tantos livros.. e sempre o problema de tão pouco tempo.

Talvez este texto tenha sido o empurrão para ler o Middlemarch

josépacheco disse...

Pedro, nem imagina o bem que me faz o seu "feedback", mostrando-me que não ando a escrever na água e há mesmo quem me leia de atenção muito desperta. Obrigado.