domingo, 19 de agosto de 2018

MARGARET ATWOOD: O CORAÇÃO É O ÚLTIMO A MORRER



    "É certo  que a rotina se tornou ligeiramente previsível, mas seria de mau-gosto queixar-se. Seria o mesmo que queixar-se de a comida estar deliciosa. Que tipo de queixa seria isso?"
Margaret Atwood 



Ponhamos de parte o facto deprimente de praticamente tudo, na edição portuguesa (da Bertrand) ser de segunda ordem, desde o design, a letra e o papel de fraca qualidade, à tradução, num português de AO que cai nos deslizes mais enervantes ("contato" ao invés de "contacto", por exemplo). Ponhamos de parte, portanto, a percentagem de prazer que esta versão às três pancadas exclui ao acto de ler. Concentremo-nos apenas no conteúdo do romance.

Margaret Atwood situa-nos num futuro muito próximo. Nas distopias de MA, como no extraordinário Crónica de uma Serva, estamos perante a perturbadora indistinção entre o bem e o mal, ou seja, a forma como uma intenção nobre, tornada urgente por circunstâncias dramáticas, se traduz no princípio perverso que dirigirá a sociedade. É a história, no fundo, do "politicamente correcto": começa sempre com sentimentos generosos, e transforma-se numa regra absurda e perniciosa, nada subtil, incapaz de medir consequências. Também em O Coração é o Último a Morrer se vê como uma organização que, em período de crise, propõe alternar, todos os meses, os prisioneiros e os cidadãos livres, entre si, de forma a que os primeiros aprendam a reintegrar-se e os segundos, voluntários para esta "experiência social", tenham um emprego assegurado, depressa se revela pasto para a manipulação, a prepotência e o alastrar de sórdidos e sinistros negócios paralelos.

Os protagonistas do romance de MA são apresentados na profundidade e riqueza de personalidades submetidas à extrema degradação: Stan e Charmaine vivem no carro, e vão sobrevivendo de expedientes. A experiência do Positrão aparece-lhes, naturalmente, como uma possibilidade única de acederem a empregos e casa própria (cedendo, em troca, a sua liberdade, mês sim, mês não), pelo que não hesitam em inscrever-se. O problema introduzir-se-á sob a forma das obsessões que, um e outro, vão desenvolvendo pelos desconhecidos que com eles alternam, ou seja, o casal que ocupa a casa durante o tempo em que eles estão na prisão: desconhecidos dos quais encontram, ou julgam encontrar, indícios, sinais, que os fascinam, de cada vez que regressam.

A história está narrada com um perfeito domínio do suspense. Em segmentos curtos, de cortar a respiração, cada vez mais à medida que se avança no entrecho, O Coração é o Último a Morrer é também um romance em que se reconstitui a grande questão moral de A Laranja Mecânica, ou seja, se bem se lembram: a capacidade de escolha (que permite escolher o mal) é preferível a uma bondade sem escolha?

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