segunda-feira, 30 de julho de 2018

TCHEKOV: A GAIVOTA


Se me é permitida uma predilecção tão arriscada e peremptória, Tchekov é o melhor de todos os autores de contos. E se há por onde escolher! Vejam os americanos, tão bons em matéria de "short story", ou alguns franceses do século XIX; e porque não um par de portugueses contemporâneos? Nada a fazer. Anton Tchekov não é apenas o mestre de todos eles, foi o mestre que afinou o conto, na sua engrenagem, na sua intensidade, na sua eficácia, com uma intuição e um talento de que ninguém mais se aproximou.

No teatro, como se sabe, ele é também perfeito. A Gaivota ilustra o meu argumento. Trata de um grupo de pessoas que se reúne, na propriedade de uma delas, com o objectivo de - entre outras actividades - assistir ao monólogo que um jovem (aspirante a escritor) criara, para ser dito pela sua amada (aspirante a actriz); o monólogo não chega a ser dito na totalidade, submerso por súbitas reacções e acontecimentos, mas constitui-se, a partir desse momento, uma rede de relações que se vai precisando, na sua malha de amores não correspondidos, desejos frustrados, escolhas erradas, grandeza e pequenez, loucura, inveja, ciúme.

A gaivota, que é, na verdade, uma gaivota matada sem razão, representa a liberdade desperdiçada. O futuro promissor de dois jovens posto irreversivelmente em causa pelas suas escolhas erradas.

Mas, mais do que símbolo das possibilidades comprometidas por paixões funestas, a gaivota matada revela o esmagamento da renovação da Arte: o asfixiar da ideia e da forma novas, a incompreensão da autenticidade nascente contra as fórmulas e os truques da tradição. Testemunhamos a luta entre o passado e o futuro, e nada é mais russo do que esse embate filosófico, esse impulso para a reflexão, essa dialéctica das ideias. Só um grande dramaturgo consegue, de uma tragédia, que ela seja, simultaneamente, o choque de pessoas e o choque de teorias; do concreto de personalidades riquíssimas,  vivíssimas, e do abstracto de posições do pensamento, profundas, estimulantes.

Mas não deixa de ser enervante que, e como em todos os textos russos, também nesta peça os nomes das personagens se tornem um factor de distracção e distúrbio, porque se revela difícil e fatigante percebermos que dado indivíduo, apresentando sob um nome, venha a ser o mesmo que é tratado, adiante, por outro, ou mesmo por dois nomes diferentes. É perturbador em Gogol, em Tolstoi, em Dostoievski, em todos eles! Nada como o leitor ir-se precavendo. Nada como tomar nota dos nomes e suas variações, num esquema  que o vá guiando ao longo da leitura.

domingo, 29 de julho de 2018

RUI CARDOSO MARTINS: LEVANTE-SE O RÉU



Em certa crónica de Lobo Antunes, aliás uma das suas mais irritantes na Visão, reproduzia ele um diálogo que teria mantido com José Cardoso Pires acerca de um terceiro escritor. Em registo de um elitismo e de uma autocomplacência insuportáveis, António Lobo Antunes e José Cardoso Pires definiam uma espécie de panteão reservado a raríssimos eleitos, um clube dos melhores de entre os melhores, a que pertenceriam os dois (Saramago não, certamente!), e um outro, que ambos reconheciam como sendo dos «seus». O referenciado era Rui Cardoso Martins, à época ainda não muito popular, mas que, nas suas crónicas sobre julgamentos, revelava desde as primeiras linhas o espírito de observação, o sentido de humor e a qualidade da escrita em que o país deveria começar a reparar.



A crónica judicial é, em si mesma, um mundo. E tem uma vasta e riquíssima tradição em Portugal. Lembro-me de um livro enorme, que existia nas estantes de minha casa, quando eu menino, sobre dramas judiciais. O livro desapareceu. Mas recordo-me das descrições de julgamentos em que os procuradores e os advogados de defesa se esmeravam numa retórica carregada de "witt". Era muito engraçado. Era muito bom.

O que Rui Cardoso Martins faz é precisamente isso. Cada crónica sua descreve uma sessão de tribunal. Não sei se será o mesmo por todo o mundo (nos EUA há muito disso, sim), ou se os criminosos portugueses têm qualquer coisa de particularmente patusco. Mas a verdade é que RCM capta a singularidade humorística em notas que me fizeram rir, sozinho, a bandeiras despregadas. Em alguns momentos, apercebemo-nos do fio trágico e da dor autêntica entre as linhas com que se cose a situação ou o comportamento ou o discurso caricatos. As vidas e as relações que acabam em tribunal não são fáceis, em Portugal. O cómico é, muitas vezes, o tragicómico. Ainda assim, da compilação, em livro, de diversos casos, cada um sintetizado em texto de nunca mais do que 3 páginas e 1/2, resulta uma crónica de costumes que vale como um surpreendente tratado de sociologia e de psicologia.     

terça-feira, 24 de julho de 2018

JULIE LECKSTROM HIMES: MIKHAIL E MARGARITA


Publicado pela preciosa Elsinore ("preciosa" no que respeita à selecção de autores e de obras, claro, mas também ao bom-gosto e cuidado estéticos e gráficos), Mikhail e Margarita é um título que pisca o olho a Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgakov. Este último, brilhante escritor russo do período de Estaline, persona non grata do regime, foi convertido em personagem do presente romance, estreia de uma jovem norte-americana. O "Mikhail" do seu título seria, precisamente, M. Bulgakov.

O livro não decepciona completamente. Mas as minhas expectativas eram, talvez, excessivas: é certo que a qualidade do trabalho da editora mais o interesse do tema, Bulgakov cruzando-se com a verdadeira Margarita, com o poeta Osip Mandelstam, com Stanislawski (esse mesmo: o do método!), na biografia romanceada destas relações, vividas em Moscovo, sob o duro tempo de Estaline, são condições para que a obra nunca pudesse falhar rotundamente. Aliás, a promissora e premiada estreante fez a sua pesquisa e tem uma forma original, bem conseguida, de introduzir segmentos de História, como uma espécie de contextualização paralela do que narra, se a expressão não for demasiado paradoxal.

O problema reside na progressão do romance. Há como um tique de escrita que consiste em interromper e quebrar um diálogo, após cada afirmação, com um esmerado descascar de tudo quanto essa afirmação significa, e o que sente ou pensa ou quer o locutor, antes de podermos saber o que lhe responderá o interlocutor. Na verdade, torna-se fastidioso e pouco subtil, como se não se acreditasse na capacidade de o leitor fazer a sua própria leitura, como se um indício ou um sinal nunca bastassem, como se fosse preciso explicar e psicanalizar cada pessoa e cada momento.

Quando nos adaptamos a (ou nos conformamos com) este ritmo, percebemos que o romance tem imenso a oferecer. Mais do que tudo, a intuição de um mundo orwelliano, em que, a partir de certo limite, todos somos cobardes e até o mais importante, o amor, a amizade, a arte, poderão ser renegados antes que o galo cante três vezes.

Lamento ter de acrescentar que a tradução deixa a desejar, e a revisão foi feita - se foi - em cima do joelho.


domingo, 15 de julho de 2018

EDITH WHARTON: CINCO HISTÓRIAS DE LUZ E SOMBRA


A Editora Sistema Solar deve ter um número parco de leitores, mas, ainda assim, curiosamente, os suficientes para se ir mantendo; aprecio em particular as introduções ao autor e à obra, e respectiva tradução, que são feitas por Aníbal Fernandes. Vertendo do francês e do inglês com igual à-vontade, A. F. escolhe e mostra conhecer bem certos autores de culto, geniais, os quais nos oferecem sempre um elemento subtil e raro, que o introdutor/tradutor ajuda a desvendar.

Com Edith Wharton assim é. A técnica de desenhar a história segundo o ponto de vista de uma personagem, que, como assinala Aníbal Fernandes, E. Wharton aprendeu com Henry James (o qual desvalorizara os seus primeiros escritos, com arrogância e desprezo) permite-lhe manter a narração sob um efeito de desconhecimento, uma ignorância das razões que movem as outras personagens, ou de acontecimentos do passado dos demais intervenientes que poderiam lançar luz sobre os seus actos e esclarecer as situações.

Esse não-dito de que o leitor, naturalmente, se apercebe, mas não resolve, e sobre o qual não pode senão especular em vão, cria uma contínua atmosfera de mistério e uma sensação final de inacabamento da novela. Não é uma falha. É um meio de canalizar as dúvidas, de alargar as possibilidades, de experimentar o que não chega a revelar-se como factor de tensão, estético e narrativo.

A essa componente de incerteza perante o que realmente aconteceu, como se nunca o ponto de vista subjacente ao que se conta e a verdade definitiva coincidissem, acrescente-se os sinais do fantástico e do oculto propriamente dito, ou seja, da presença de fantasmas. Em vários destes cinco longo contos aqui compilados, perpassa a estranheza de uma figura que só poderia ser de outro mundo. Em Mais Tarde, Mary e Ned Boyne, norte-americanos rendidos ao fascínio do passado em que se banham na Europa (como a própria Edith Wharton, como Henry James), arrendam uma mansão onde consta existir um fantasma que só mais tarde (mas como, e quão mais tarde?) poderá ser identificado e reconhecido como um fantasma.

É evidente que, se estamos todos de antemão advertidos, tanto os inquilinos como os leitores, Wharton tem de dominar uma técnica que requer, e vive, de uma aguda precisão, da ordem do melhor da literatura policial, para que se não adivinhe imediatamente o que aí vem. Da "literatura policial", escrevi. E não sem razão: Ellery Queen faz, aliás, segundo Aníbal Fernandes, um elogio justificado a essa precisão nos contos de EW, "atingindo-nos para lá do que o seu desenho revela."