terça-feira, 13 de março de 2018

RAÚL BRANDÃO: HÚMUS


É um texto absolutamente inesperado num autor português dos fins do século XIX (o seu História dum Palhaço é publicado em 1896) e início do XX. Húmus (1917) é uma reflexão filosófica sob a forma de uma perturbadora alegoria em que, mais propriamente do que uma história - de facto, não existe história alguma - desfilam, ante os nossos olhos, personagens: as velhas de nomes incredíveis, a D. Leocádia, a D. Procópia ou a D. Penarícia, os casais tratados pelo apelido, o sr. prior, o padre Ananias e os demais padres, o Gabiru,  doido que nunca percebemos se tem existência real ou é apenas um lado delirante do narrador, em suma uma vila, que simboliza um certo modo de existir, uma dada má-fé do espírito, que (com excepção de Gabiru, aceso e perpétuo arauto da surpresa do existir), tenta evitar por todos os meios descobrir-se no espanto perante a vida e a morte, preferindo-lhe a alienação e a rotina.

Gabiru é, pois, com as suas frases iluminadas e exaltadas, um Sócrates contemporâneo, um corruptor da massa em que a vila se deixa quotidianamente afundar, suportada por invejas, ressentimentos e melancolias de séculos, fechada num cíclico jogo de gamão, em que nunca se olha, não se quer olhar, pela janela, para o desassossegador infinito, para o espantoso mistério de se estar aqui, para o outro lado dos limites que escolhemos, e a que nos atrelamos, pagando com essa prisão o preço de uma pseudo-tranquilidade.

Húmus é fortíssimo. Reconheço na linguagem desta obra, na escrita que lhe é própria, e parece criar a sua lógica intrínseca, densa e labiríntica, imune a uma tentativa de apropriação segundo as regras tradicionais de descodificação, um filho do Dostoievski de Os Cadernos do Subterrâneo, e um pai literário do Carlos de Oliveira do extraordinário Finisterra. E como esses dois, é também um texto, Húmus, que temos de ler vagarosamente, numa particular ansiedade e alegria de descoberta e de susto. E de que devemos repousar a cada momento, por algum tempo, antes de retomarmos a leitura.


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