quinta-feira, 22 de novembro de 2018

SANDRA CATARINO: OS FIOS



De onde subitamente nos chega esta voz, que eu não conhecia e de que nunca tinha ouvido falar? De onde esta forma jovem, incomum, revolucionária, sedenta de novo, mas sob a qual pressentimos a maturidade e o talento que levaram séculos a forjar, a completar, a afinar? De onde, pois, esta insustentável leveza, ou este peso que faz do voo um voo grave, se me entendem, isto é, um voo que não seja puro desperdício e experiência inconsequente?

E é mesmo romance ou é poesia? É mesmo a intriga que se vai tecendo nos seus diversos fios, ou seja, diferentes pessoas com histórias diferentes, que se cruzam, ou é sobretudo o uso da palavra que se lê com os olhos e a mente, mas se repete em surdina, saboreando-se com a boca e com o ouvido a felicidade da frase perfeita, do período perfeito, do parágrafo perfeito, página após página, capítulo após capítulo?

E é isto o testemunho da tradição, o relato de acontecimentos numa vila de costumes e crenças rurais e relações quase ainda feudais, ou é isto a inteligência compassiva e cultivada, que penetra psicologicamente nas pessoas, compreendendo-as no desequilíbrio entre as suas expectativas e as suas dores? Por outras palavras: para além da dúvida relativamente à forma, também a dúvida em relação ao que se narra. Será um conteúdo antigo, ou moderno? rural, ou cosmopolita? de experiências feito, ou da teoria? enraizado no particular de um tempo e de um lugar profundamente portugueses, ou universalmente aberto para a compreensão do homem e da mulher intemporais? Ou, como me parece o caso, não existe qualquer dilema, e é tudo e o seu oposto simultaneamente?

É um livro surpreendente, porque, na sua breve extensão (duzentas e poucas páginas, capítulos curtos como poemas ou como setas!), demora, todavia, muito tempo a ler. Porque nos fixamos em frases, as relemos, capturados por um inexplicável encantamento, e porque voltamos atrás. E nos apetece, frequentemente, recomeçar a experiência pela primeira página.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

ORLANDO VITORINO: EXALTAÇÃO DA FILOSOFIA DERROTADA


Esquecemos ou ignoramos a razão por que a palavra «liberalismo» é tomada em acepções tão diversas; vagamente nos perguntamos se não haverá, por vezes, um abuso e um mau uso do termo; Orlando Vitorino clarifica o que no fundo sabíamos, e de que, no entanto, nos fôramos esquecendo, ou não chegávamos a associar: trata-se de um conceito amplo, que se tem todavia reduzido ao elemento económico, como nome atribuído a um tipo de regime, o sistema de livre comércio ou - em suma - o capitalismo. Ora poderíamos falar também de um liberalismo cultural, um liberalismo ético e moral, um liberalismo filosófico, sendo que, evidentemente, posso assumir-me ou comportar-me como um liberal em algumas destas esferas, e um conservador em outras. Um liberal ou um conservador, sendo que, a agravar a aparente ambiguidade, no que respeita precisamente à realidade económica, o liberalismo não se opõe ao conservadorismo.

Principio por este exemplo, porque me parece ilustrativo da clareza de propósitos e de argumentos subjacentes ao texto. Num português que lemos deliciadamente, Orlando Vitorino explica-nos por que razão, sentindo-se confundido perante variados discursos de economia, que se contradiziam insensatamente, decidiu empreender, como auto-didacta, a sua própria averiguação acerca da coisa. Recuou até aos pais da ciência económica e ao sentido primordial dos conceitos e das categorias de que o discurso se veio construindo. Simplifica, desmonta as desnecessárias subtilezas com que se revestiu ao longo dos séculos até se tornar numa espécie de albergue Espanhol em que se acoita tudo e o seu contrário. Reconstitui as origens, o que é sempre um procedimento modelar e luminoso.

O amigo que me falou do livro (e mo emprestou) asseverava-me que OV denuncia e desmascara os marxismos, com argumentos irrefutáveis. Suspeito sempre dessas proclamações. De facto, não existem argumentos irrefutáveis. Nem na obra de Orlando Vitorino, nem, ao que saiba, em nenhuma outra. Aliás, as páginas iniciais, em que OV nos põe a par do seu estudo para compreender o que lhe parecia cada vez mais incompreensível, são suficientemente subjectivas e auto-biograficamente marcadas, para que entendamos que o Autor não se põe na posição objectiva de um cientista, nem tem a pretensão de demonstrar seja o que for. A sua ideologia está presente. OV não a esconde. Quando, em determinado ponto, afirma que vai deixar de parte as referências pessoais, para elaborar um discurso rigorosamente científico, nós bem vemos que este discurso não poderia estar isento de um ponto de vista. E tudo, nesse ponto de vista, é discutível e, em última análise, refutável.

 O que vim de dizer não muda uma vírgula ao reconhecimento da utilidade deste livro como instrumento na exploração da economia, pela história e pela etimologia das ideias, dos conceitos, das categorias e dos termos. Lido criticamente, torna-se um livro indispensável.   

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

FLUIR



Estimados leitores, é com um inevitável estremecimento de orgulho que venho dar-vos conta da Fluir.

A Fluir é o diabo do último projecto em que me envolvi, com a colaboração talentosa e preciosa da Ana Cristina Marques, responsável pela beleza e funcionalidade da revista.

É uma revista electrónica. Têm-na aqui, na barra vertical da margem esquerda deste blogue. Cliquem e fruam.

Poderão ler um conto de Elisa Costa Pinto, um de Julieta Monginho, outro de Nuno Vaz; uma entrevista a Isabela Figueiredo (de A Gorda) e uma entrevista à designer e escultora Ana Marques; poesia (Júlia Lello e Paulo Carvalho); uma recensão da autoria da cineasta Joana Pontes; ensaios: de Miguel Real, sobre literatura portuguesa, e de A.M.G.L. Cruz sobre filosofia política. Espero não ter esquecido ninguém.

Convido-vos a uma visita.
(E à divulgação, bem entendido. Bem-hajam!)

domingo, 19 de agosto de 2018

MARGARET ATWOOD: O CORAÇÃO É O ÚLTIMO A MORRER



    "É certo  que a rotina se tornou ligeiramente previsível, mas seria de mau-gosto queixar-se. Seria o mesmo que queixar-se de a comida estar deliciosa. Que tipo de queixa seria isso?"
Margaret Atwood 



Ponhamos de parte o facto deprimente de praticamente tudo, na edição portuguesa (da Bertrand) ser de segunda ordem, desde o design, a letra e o papel de fraca qualidade, à tradução, num português de AO que cai nos deslizes mais enervantes ("contato" ao invés de "contacto", por exemplo). Ponhamos de parte, portanto, a percentagem de prazer que esta versão às três pancadas exclui ao acto de ler. Concentremo-nos apenas no conteúdo do romance.

Margaret Atwood situa-nos num futuro muito próximo. Nas distopias de MA, como no extraordinário Crónica de uma Serva, estamos perante a perturbadora indistinção entre o bem e o mal, ou seja, a forma como uma intenção nobre, tornada urgente por circunstâncias dramáticas, se traduz no princípio perverso que dirigirá a sociedade. É a história, no fundo, do "politicamente correcto": começa sempre com sentimentos generosos, e transforma-se numa regra absurda e perniciosa, nada subtil, incapaz de medir consequências. Também em O Coração é o Último a Morrer se vê como uma organização que, em período de crise, propõe alternar, todos os meses, os prisioneiros e os cidadãos livres, entre si, de forma a que os primeiros aprendam a reintegrar-se e os segundos, voluntários para esta "experiência social", tenham um emprego assegurado, depressa se revela pasto para a manipulação, a prepotência e o alastrar de sórdidos e sinistros negócios paralelos.

Os protagonistas do romance de MA são apresentados na profundidade e riqueza de personalidades submetidas à extrema degradação: Stan e Charmaine vivem no carro, e vão sobrevivendo de expedientes. A experiência do Positrão aparece-lhes, naturalmente, como uma possibilidade única de acederem a empregos e casa própria (cedendo, em troca, a sua liberdade, mês sim, mês não), pelo que não hesitam em inscrever-se. O problema introduzir-se-á sob a forma das obsessões que, um e outro, vão desenvolvendo pelos desconhecidos que com eles alternam, ou seja, o casal que ocupa a casa durante o tempo em que eles estão na prisão: desconhecidos dos quais encontram, ou julgam encontrar, indícios, sinais, que os fascinam, de cada vez que regressam.

A história está narrada com um perfeito domínio do suspense. Em segmentos curtos, de cortar a respiração, cada vez mais à medida que se avança no entrecho, O Coração é o Último a Morrer é também um romance em que se reconstitui a grande questão moral de A Laranja Mecânica, ou seja, se bem se lembram: a capacidade de escolha (que permite escolher o mal) é preferível a uma bondade sem escolha?

sábado, 4 de agosto de 2018

ROLAND BARTHES: FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO


Li, não consigo lembrar-me em que crónica ou crítica literária, de Pedro Mexia, a referência a  Fragmentos de um Discurso Amoroso como constituindo o texto de Roland Barthes que mais o tocava.

Eu conhecia alguma coisa de Barthes, concretamente O Grau Zero da Escrita e o absolutamente brilhante Mitologias. Sendo de Filosofia, mantinha, em relação a alguns autores da linguística e da semiótica, sobretudo franceses, aquele deslumbramento com que os que navegam em águas filosóficas reagem às ciências da linguagem, bem como às do psíquico, ou do económico ou do social. Barthes ou Kristeva eram, nessa medida, conhecidos por nós, lidos e discutidos.

Quando vamos em busca de um livro que nos recomendaram, criamos uma expectativa que contém o seu imaginário próprio: há uma ansiedade que aspira ao mergulho na obra de que já formámos uma ideia subtil, vaporosa, muito leve, exaltante. É difícil, porém, que essa expectativa não seja frustrada pelo livro propriamente dito. Sucede, mas raramente.

Principiei Fragmentos de um Discurso Amoroso pela introdução, e a decepção surgiu e foi-se alastrando depressa. Soava-me demasiado teórico. Mesmo a explicação das razões por que não poderia construir-se um discurso sobre o discurso amoroso, ou um meta-discurso amoroso ou, precisamente, uma teoria do discurso amoroso,  parecia paradoxalmente teórica. Mas, entretanto, deu-se um acaso: esperando, de pé, com o livro na mão, que outra pessoa chegasse, comecei a folheá-lo. E caí num capítulo (numa das "figuras", como lhes chama Barthes); bruscamente, deparava com a chave de leitura. Tudo, naquela passagem, reflectia a minha própria experiência amorosa. Era, sem dúvida, um estado que reconhecia de um momento de paixão, e que reconhecia naqueles precisos termos.

Figura após figura, o reconhecimento renovava-se. Todos aqueles quadros da experiência amorosa me eram familiares. Nada há de teórico, de facto: o único discurso amoroso é o do próprio sujeito, do interior do seu sentimento e da sua entrega ao outro. É um discurso sem exterior: qualquer tentativa de o analisar, ou de o psicanalisar; qualquer interpretação, em resumo, segundo uma grelha, arrisca-se a deixar escapar entre as malhas o essencial. É ainda um discurso fragmentário; as diversas figuras em que se exprime não têm relação sequencial entre si. Para evitar, aliás, o impulso e o equívoco de as agregar numa história, como se fossem os momentos de dada narrativa, Barthes decidiu dispô-las alfabeticamente. O que significa que não precisamos de nos ater a uma leitura metódica, seguindo qualquer ordem. É indiferente que comecemos pela «espera», pela «dependência», pela «languidez» ou pelo «ciúme».

Tratar-se de experiências singulares, subjectivas, não implica que não sejam, num certo sentido, afins, comuns, isto é, comunicáveis, na acepção em que vos falava de «comunicação»: revejo-me naquela emoção, no mesmo estado, na situação idêntica. Lendo-a, leio-me, ou releio-me. Essa afinidade está, de resto, presente em todos os autênticos romances de amor, e do Werther de Goethe ao Marcel de Proust, passando pela palavra dos filósofos (Kierkegaard, Nietzsche) ou pela música (Schubert), Barthes vai indicando, ao longo do seu texto, à margem, os nomes dos sujeitos da experiência amorosa com quem está em diálogo ou a revisitar. Por vezes, apresenta uma citação. Maioritariamente, limita-se a apontar, e é quanto basta.

É uma leitura que me atinge. Ou seja: mergulho na ideia desejada e esperada do livro. Não estou aquém do ideal que projectara a partir da recomendação. A beleza deste texto e a redescoberta de mim próprio através dele preenchem-me como leitor e como sujeito da experiência amorosa..

   

segunda-feira, 30 de julho de 2018

TCHEKOV: A GAIVOTA


Se me é permitida uma predilecção tão arriscada e peremptória, Tchekov é o melhor de todos os autores de contos. E se há por onde escolher! Vejam os americanos, tão bons em matéria de "short story", ou alguns franceses do século XIX; e porque não um par de portugueses contemporâneos? Nada a fazer. Anton Tchekov não é apenas o mestre de todos eles, foi o mestre que afinou o conto, na sua engrenagem, na sua intensidade, na sua eficácia, com uma intuição e um talento de que ninguém mais se aproximou.

No teatro, como se sabe, ele é também perfeito. A Gaivota ilustra o meu argumento. Trata de um grupo de pessoas que se reúne, na propriedade de uma delas, com o objectivo de - entre outras actividades - assistir ao monólogo que um jovem (aspirante a escritor) criara, para ser dito pela sua amada (aspirante a actriz); o monólogo não chega a ser dito na totalidade, submerso por súbitas reacções e acontecimentos, mas constitui-se, a partir desse momento, uma rede de relações que se vai precisando, na sua malha de amores não correspondidos, desejos frustrados, escolhas erradas, grandeza e pequenez, loucura, inveja, ciúme.

A gaivota, que é, na verdade, uma gaivota matada sem razão, representa a liberdade desperdiçada. O futuro promissor de dois jovens posto irreversivelmente em causa pelas suas escolhas erradas.

Mas, mais do que símbolo das possibilidades comprometidas por paixões funestas, a gaivota matada revela o esmagamento da renovação da Arte: o asfixiar da ideia e da forma novas, a incompreensão da autenticidade nascente contra as fórmulas e os truques da tradição. Testemunhamos a luta entre o passado e o futuro, e nada é mais russo do que esse embate filosófico, esse impulso para a reflexão, essa dialéctica das ideias. Só um grande dramaturgo consegue, de uma tragédia, que ela seja, simultaneamente, o choque de pessoas e o choque de teorias; do concreto de personalidades riquíssimas,  vivíssimas, e do abstracto de posições do pensamento, profundas, estimulantes.

Mas não deixa de ser enervante que, e como em todos os textos russos, também nesta peça os nomes das personagens se tornem um factor de distracção e distúrbio, porque se revela difícil e fatigante percebermos que dado indivíduo, apresentando sob um nome, venha a ser o mesmo que é tratado, adiante, por outro, ou mesmo por dois nomes diferentes. É perturbador em Gogol, em Tolstoi, em Dostoievski, em todos eles! Nada como o leitor ir-se precavendo. Nada como tomar nota dos nomes e suas variações, num esquema  que o vá guiando ao longo da leitura.

domingo, 29 de julho de 2018

RUI CARDOSO MARTINS: LEVANTE-SE O RÉU



Em certa crónica de Lobo Antunes, aliás uma das suas mais irritantes na Visão, reproduzia ele um diálogo que teria mantido com José Cardoso Pires acerca de um terceiro escritor. Em registo de um elitismo e de uma autocomplacência insuportáveis, António Lobo Antunes e José Cardoso Pires definiam uma espécie de panteão reservado a raríssimos eleitos, um clube dos melhores de entre os melhores, a que pertenceriam os dois (Saramago não, certamente!), e um outro, que ambos reconheciam como sendo dos «seus». O referenciado era Rui Cardoso Martins, à época ainda não muito popular, mas que, nas suas crónicas sobre julgamentos, revelava desde as primeiras linhas o espírito de observação, o sentido de humor e a qualidade da escrita em que o país deveria começar a reparar.



A crónica judicial é, em si mesma, um mundo. E tem uma vasta e riquíssima tradição em Portugal. Lembro-me de um livro enorme, que existia nas estantes de minha casa, quando eu menino, sobre dramas judiciais. O livro desapareceu. Mas recordo-me das descrições de julgamentos em que os procuradores e os advogados de defesa se esmeravam numa retórica carregada de "witt". Era muito engraçado. Era muito bom.

O que Rui Cardoso Martins faz é precisamente isso. Cada crónica sua descreve uma sessão de tribunal. Não sei se será o mesmo por todo o mundo (nos EUA há muito disso, sim), ou se os criminosos portugueses têm qualquer coisa de particularmente patusco. Mas a verdade é que RCM capta a singularidade humorística em notas que me fizeram rir, sozinho, a bandeiras despregadas. Em alguns momentos, apercebemo-nos do fio trágico e da dor autêntica entre as linhas com que se cose a situação ou o comportamento ou o discurso caricatos. As vidas e as relações que acabam em tribunal não são fáceis, em Portugal. O cómico é, muitas vezes, o tragicómico. Ainda assim, da compilação, em livro, de diversos casos, cada um sintetizado em texto de nunca mais do que 3 páginas e 1/2, resulta uma crónica de costumes que vale como um surpreendente tratado de sociologia e de psicologia.     

terça-feira, 24 de julho de 2018

JULIE LECKSTROM HIMES: MIKHAIL E MARGARITA


Publicado pela preciosa Elsinore ("preciosa" no que respeita à selecção de autores e de obras, claro, mas também ao bom-gosto e cuidado estéticos e gráficos), Mikhail e Margarita é um título que pisca o olho a Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgakov. Este último, brilhante escritor russo do período de Estaline, persona non grata do regime, foi convertido em personagem do presente romance, estreia de uma jovem norte-americana. O "Mikhail" do seu título seria, precisamente, M. Bulgakov.

O livro não decepciona completamente. Mas as minhas expectativas eram, talvez, excessivas: é certo que a qualidade do trabalho da editora mais o interesse do tema, Bulgakov cruzando-se com a verdadeira Margarita, com o poeta Osip Mandelstam, com Stanislawski (esse mesmo: o do método!), na biografia romanceada destas relações, vividas em Moscovo, sob o duro tempo de Estaline, são condições para que a obra nunca pudesse falhar rotundamente. Aliás, a promissora e premiada estreante fez a sua pesquisa e tem uma forma original, bem conseguida, de introduzir segmentos de História, como uma espécie de contextualização paralela do que narra, se a expressão não for demasiado paradoxal.

O problema reside na progressão do romance. Há como um tique de escrita que consiste em interromper e quebrar um diálogo, após cada afirmação, com um esmerado descascar de tudo quanto essa afirmação significa, e o que sente ou pensa ou quer o locutor, antes de podermos saber o que lhe responderá o interlocutor. Na verdade, torna-se fastidioso e pouco subtil, como se não se acreditasse na capacidade de o leitor fazer a sua própria leitura, como se um indício ou um sinal nunca bastassem, como se fosse preciso explicar e psicanalizar cada pessoa e cada momento.

Quando nos adaptamos a (ou nos conformamos com) este ritmo, percebemos que o romance tem imenso a oferecer. Mais do que tudo, a intuição de um mundo orwelliano, em que, a partir de certo limite, todos somos cobardes e até o mais importante, o amor, a amizade, a arte, poderão ser renegados antes que o galo cante três vezes.

Lamento ter de acrescentar que a tradução deixa a desejar, e a revisão foi feita - se foi - em cima do joelho.


domingo, 15 de julho de 2018

EDITH WHARTON: CINCO HISTÓRIAS DE LUZ E SOMBRA


A Editora Sistema Solar deve ter um número parco de leitores, mas, ainda assim, curiosamente, os suficientes para se ir mantendo; aprecio em particular as introduções ao autor e à obra, e respectiva tradução, que são feitas por Aníbal Fernandes. Vertendo do francês e do inglês com igual à-vontade, A. F. escolhe e mostra conhecer bem certos autores de culto, geniais, os quais nos oferecem sempre um elemento subtil e raro, que o introdutor/tradutor ajuda a desvendar.

Com Edith Wharton assim é. A técnica de desenhar a história segundo o ponto de vista de uma personagem, que, como assinala Aníbal Fernandes, E. Wharton aprendeu com Henry James (o qual desvalorizara os seus primeiros escritos, com arrogância e desprezo) permite-lhe manter a narração sob um efeito de desconhecimento, uma ignorância das razões que movem as outras personagens, ou de acontecimentos do passado dos demais intervenientes que poderiam lançar luz sobre os seus actos e esclarecer as situações.

Esse não-dito de que o leitor, naturalmente, se apercebe, mas não resolve, e sobre o qual não pode senão especular em vão, cria uma contínua atmosfera de mistério e uma sensação final de inacabamento da novela. Não é uma falha. É um meio de canalizar as dúvidas, de alargar as possibilidades, de experimentar o que não chega a revelar-se como factor de tensão, estético e narrativo.

A essa componente de incerteza perante o que realmente aconteceu, como se nunca o ponto de vista subjacente ao que se conta e a verdade definitiva coincidissem, acrescente-se os sinais do fantástico e do oculto propriamente dito, ou seja, da presença de fantasmas. Em vários destes cinco longo contos aqui compilados, perpassa a estranheza de uma figura que só poderia ser de outro mundo. Em Mais Tarde, Mary e Ned Boyne, norte-americanos rendidos ao fascínio do passado em que se banham na Europa (como a própria Edith Wharton, como Henry James), arrendam uma mansão onde consta existir um fantasma que só mais tarde (mas como, e quão mais tarde?) poderá ser identificado e reconhecido como um fantasma.

É evidente que, se estamos todos de antemão advertidos, tanto os inquilinos como os leitores, Wharton tem de dominar uma técnica que requer, e vive, de uma aguda precisão, da ordem do melhor da literatura policial, para que se não adivinhe imediatamente o que aí vem. Da "literatura policial", escrevi. E não sem razão: Ellery Queen faz, aliás, segundo Aníbal Fernandes, um elogio justificado a essa precisão nos contos de EW, "atingindo-nos para lá do que o seu desenho revela."

quinta-feira, 7 de junho de 2018

ANTÓNIO DAMÁSIO: AO ENCONTRO DE ESPINOSA


Todos percebemos a irritação que Descartes causa a Damásio, que o não terá lido filosoficamente e o usa apenas como representante do "erro", no caso como a ilustração de um pensamento contra o qual assesta a bateria dos seus argumentos.

A admiração que, em contrapartida, nutre por Espinosa e pela concepção sobre o corpo, a mente, o pensamento, as emoções, a natureza e Deus, que ele produziu com tremendos custos pessoais, inovadora e mais actual, hoje, do que nunca, leva a que Damásio procure dirigir-se efectivamente ao seu encontro, lendo, reflectindo sobre o que lê à luz das suas próprias investigações, visitando-lhe a  casa, considerando-lhe a biblioteca. Se compararmos com outros livros de Damásio, este liberta-se e levanta voo. Menos denso, menos técnico do que o Erro de Descartes ou o tão aclamado A Estranha Ordem das Coisas, esta obra preocupa-se menos com a divulgação da própria teoria damasiana (que, evidentemente, nunca se perde contudo de vista) do que com o genuíno interesse pela pessoa, pela vida e pela obra de Espinosa. E isto faz de Ao Encontro de Espinosa um ensaio de grande maturidade, revolucionário na abordagem, ora científica, ora histórica, ora biográfica, ora de testemunho pessoal, numa elegância literária a que Damásio não nos habituara.

Procurei este livro precisamente por causa de Espinosa. O filósofo português exerce, sobre mim, uma complexa atracção. A recente releitura da Ética, a que vim procedendosignificou a descoberta dessa visão que encantara Goethe e teve o poder de pacificar e alegrar tantos espíritos desassossegados. Quando pela primeira vez o li, jovem estudante de filosofia, deixei que o mais profundo e tocante me escapasse por entre as malhas da minha arrogância e dos meus preconceitos. O regresso foi uma epifania, e durante a escrita de um artigo sobre Espinosa, acabei por me interessar pelo modo como Damásio o reencontrara.

Tal como a Damásio, também a mim algo de Espinosa continua a escapar. Aquilo a que AD chama "a estranheza de Espinosa". Mas, na busca de uma aproximação ao homem e ao seu pensamento, talvez mesmo como prelúdio a essa alegria corajosa perante o ser e a existência a que Espinosa nos convida, o ensaio de António Damásio consegue tornar-se um foco essencial.

sábado, 5 de maio de 2018

MOACYR SCLIAR: O CENTAURO NO JARDIM



"É sempre agradável ver-se um destruidor de fábulas ser vítima de uma fábula."
Gaston Bachelard (citado por Moacyr Scliar)


O centauro é, no romance, um centauro literal. Há um tom, fica sempre bem dizê-lo, "kafkiano" nesta história sobre como, para surpresa e consternação de todos os presentes, nasceu, no seio de uma família judia, refugiada da Rússia no Brasil, um menino humano da cintura para cima, mitologicamente equino da cintura para baixo.
O jovem ser em causa seria marcado por três vivências, que o narrador, o próprio centauro, vai evocando (na escrita simples e perturbadoramente luminosa, que eu recordava muito bem dos contos, que já havia lido, da autoria de Scliar): tendo aprendido a tocar violino, deitou, um dia, o intrumento ao rio, irritado porque se partira uma corda, procurou a seguir suicidar-se, e conheceu (e perdeu de vista) um indiozinho. Refiro estes momentos, apenas para poder transcrever-vos a seguinte passagem:

"Jogando ou não violinos no rio, tentando ou não me matar, encontrando e perdendo um amigo, vou vivendo."

Oh, sim, pode parecer pequena coisa, mas não se deixem enganar: esta é, na sua discreta concisão, um modo genial de sintetizar a passagem do tempo. Observem: ao enunciar o primeiro episódio no plural ("jogando ou não violinos"), como exemplo de possíveis acontecimentos do mesmo género, Scliar multiplica-os. Ao introduzir a negativa (jogando ou não, tentando ou não), amplia-os até ao infinito: não só sucedeu isto, aquilo e outra coisa, mas "istos", "aquilos" e "outras coisas", e ainda o contrário deles: "istos" e "não-istos", "aquilos" e experiências diferentes de "aquilos", "outras coisas" e coisas que não se assemelham a essas. Entre o concreto das situações indicadas e a sugestão de pluralidade introduzida, o autor consegue, numa frase, assinalar que o tempo foi passando. É muito mais difícil do que se diria, e escritores cotados perdem-se nesse tipo de transições.

Também o ter-me detido nesta passagem em particular, e tão insignificante, deve ser interpretado como símbolo do que quereria dizer acerca de toda uma escrita. O romance de Moacyr Sclia explode em subtis achados afins, quase invisíveis. O leitor sente-se impressionado e não percebe imediatamente porquê.

Como na Metamorfose, trata-se aqui de uma história sobre, primeiramente, a maneira de uma família aceitar, ou não, e lidar com a diferença que emerge abrupta e radicalmente no interior do grupo. Mas sobretudo, acerca de outro tema, que exporia sob estas perguntas: podemos esconder a nossa natureza, curá-la, extirpá-la de nós? Suportaríamos viver com o segredo de não sermos quem somos?
Em O Centauro no Jardim, algo de um quasi-policial se estrutura, então, em torno desse segredo - que é, a seu modo, um crime, atraindo ameaças e inimigos do passado, e o receio da vingança e da chantagem.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

ALEXANDRA LUCAS COELHO: O MEU AMANTE DE DOMINGO



Alexandra Lucas Coelho tem o dom de contar uma história usando capítulos eficazmente curtos, de uma originalidade, na escrita, que encanta (ou choca, mas, de facto, nunca nos deixa indiferentes) e de uma intensidade que nos agarra desde o início. A narradora e protagonista deste romance, uma mulher na casa dos cinquenta, não tem pejo em falar de sexo nem de recorrer a palavras «fortes». Vem sendo apanágio da escrita feminina portuguesa de uma certa geração. Se pensarmos em Alexandra Coelho e Isabela Figueiredo, por exemplo, e as compararmos com autores portugueses do género masculino (os João Tordo ou os Valter Hugo Mãe), haveremos de convir que, salvo uma ou outra excepções em passagens cirurgicamente assinaláveis, os homens são bem mais comedidos na linguagem, evitam sujar as mãos no vernáculo e não fazem do sexo uma espécie de obsessão. Se bem que Gonçalo M. Tavares possa ser muito cru e muito duro. Não se trata de juízos de valor. O romance de Alexandra Lucas Coelho abre uma clareira de liberdade no uso da linguagem, que, por um lado, a pode levar sem pudores por onde queira na expressão das raivas ou das frustrações e, por outro lado, lhe permite dar conta, realisticamente, de um certo tipo de personalidade que a personagem desta narrativa replica, mulher, intelectual, culta, de meia idade, desiludida do amor, vibrante de desejo, disposta a encarar a vida como uma viagem alucinante, sem tabus, sempre na vertigem da irresponsabilidade e do desenraizamento (embora uma parte significativa da trama se alimente do reconhecimento de que um abismo separa o "ser" do "parecer").

Existe, subjacente a O Meu Amante de Domingo, um combate surdo, que nos remete para o conhecimento e para o amor da autora pela literatura brasileira. É o combate entre Clarice Lispector e Nelson Rodrigues, tão bem compreensível na referência da narradora  a uma entrevista que Lispector fez a Rodrigues. Por estranho que nos soe, ele, tido comummente por machista, reaccionário, desbragado, "pornógrafo", como lhe chama um dos seus biógrafos, seria, uma vez travestido, o inegável modelo da protagonista de ALC, muito mais do que Lispector, demasiado ansiosa, excessivamente preocupada com as aparências, elitista, conquistando a sua sofisticação a troco de desistir da autenticidade.

Entre vários amores descartáveis (um mecânico que lhe escreve sms com arrepiantes erros de ortografia, reticências e smiles, um velho amigo, poeta, provável futuro Nobel, ou um episódico e atlético nadador), a narradora depara-se, um dia, com o sonho, diria eu, de qualquer mulher madura e intelectualmente exigente. Imaginando a partir da descrição daquele que ela designará sempre pelo "caubói" (não há nomes), e se fizerem o favor de esquecer o bigode, que a faz aproximá-lo, fisicamente, de um Tom Selleck, eu diria que a comparação que me ocorre é com Sam Shepard. Um Shepard português, mas de bigode, 16 anos mais novo do que ela, dramaturgo, guionista, auto-consciente, seguro de si, do seu cabelo, do seu perfil, fascinando-a com um discurso sedutor, carregado de irresistíveis referências e piscares-de-olho cinéfilos e literários. Este recém-amante revela, porém, o pecado do desprendimento - tê-la-ia esquecido no momento em que, contra todas as previsões, ela, afinal, se apaixonou?, pergunta-se o leitor. (Na verdade, é muito pior do que isso, como verificarão).

É um romance, fundamentalmente, acerca da liberdade e da dor de corno; da surpresa perante as paixões não programadas, que irrompem, e a dolorosa verificação da não-correspondência; do hiato entre o descomprometimento que se prega e, porventura, uma clandestina carência de laços duradouros. E sobre uma forma muito particular, de que não posso falar sem me tornar um spoiler, de traição e roubo. É uma história sobre entrega, frustração e vingança. É um fado.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

SARAH BAKEWELL: HOW TO LIVE


   "Não é em Montaigne mas em mim próprio que eu encontro tudo o que vejo nele."
                            Blaise Pascal



Sarah Bakewell, Sarah Bakewell. Ah! Refiro-me a essa brilhante Sarah Bakewell, que escreve livros cujos assuntos são sempre tão profundamente preparados por si, construindo um suporte bibliográfico exaustivo, mas que o faz com a enganadora simplicidade e a clareza de uma conversa entre amigos, a despretensão e, ao mesmo tempo, a paixão e o humor de alguém que não quisesse ensinar-nos, nem impor-nos teses, e sim convidar-nos, apenas, a provar e a fruir. Trata-se, para recorrer à terminologia de Kundera, de obras que contêm todo o peso do estudo sério e rigoroso que as sustenta, sob a aparência de uma irresistível e divertida leveza.

Ainda assim, valeria a pena explicar (até porque a história tem graça) por que razão surgem, neste blogue, com um tão diminuto intervalo entre si, duas referências a Sarah Bakewell.

A primeira deveria ter sido esta. Despertado, por uma recensão da cineasta Joana Pontes, para o interesse de How to Live, sobre a vida e obra de Montaigne, de quem tanto gosto, fui à caça. Na Fnac, uma jovem prestável e instruída disse-me: "Não temos o que procura. Por acaso, da mesma autora está aí um outro: At the Existencialist Café."

Pedi-lhe, pois, que encomendasse How to Live. Quando lhe perguntei se, assim como assim, me mostrava o tal "outro", de que me falara, não tinha senão a intenção de o folhear e de me inteirar. Bom! Era magnífico. Bastou-me um minuto com ele nas mãos para me apaixonar. Trouxe-o, li-o e escrevi imediatamente acerca dele.

Eis a história. Chegou-me agora How to Live, que em nada lhe fica atrás. Releio entretanto Montaigne, descobrindo, à luz da visão de Sarah Bakewell, subtilezas e nuances que me haviam passado despercebidas no Autor que ela esmiuça.

O programa de Bakewell é perfeito. Recolhe uma pergunta central, precisamente "como viver?", e reflecte sobre ela a partir de 20 respostas de Montaigne. " A Life of Montaigne in One Question and Twenty Attempts at an Answer". Nessas 20 respostas, encontramos o pensador, tanto nos episódios da sua própria vida, como nos textos que nos legou, sob essa forma singular de que ele foi, verdadeiramente, o inventor: o ensaio.

Os "ensaios" de Montaigne constituem exercícios de meditação que o tomam a si próprio por tema. Mas o "si próprio" é, no fundo, tudo o que faz parte da sua esfera de experiência. O que viu ou ouviu, o que leu ou lhe interessou, ou preocupou, do medo da morte ao espanto pela vida, da amizade, às mulheres coxas ("Les Boiteuses"), da fisionomia à coragem, à cobardia ou à crueldade, da semelhança entre pais e filhos a uma paisagem que o comove, nada é demasiado singelo ou irrelevante para a sua atenção, e nada lhe é demasiado complexo ou inacessível.

Bakewell mostra-nos como o que há de mais fácil, para o leitor, é sentir-se identificado com cada um dos ensaios, no seu percurso, hesitações, tentativas de enunciar o contínuo fluxo do pensar. Houve leitores particulares que disseram que Montaigne não apenas escrevia para essa pessoa em particular, mas escrevia sobre essa pessoa em particular. É verdade. Somos todos Montaigne, na medida em que ele formula, sobre si e sobre o seu mundo (no entanto tão longínquo), o que reconhecemos como o nosso mundo, e o que gostaríamos de ter podido escrever sobre nós. Os ensaios são a voz de cada leitor olhando para si mesmo. Sondando-se, pesquisando-se, ensaiando-se. E Bakewell é, por sua vez, a luz que, apontada a essas diversas e irrequietas figuras do pensar, no-las revela em insuspeitados, deliciosos cambiantes.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

CARMEN LAFORET: NADA




O prefácio, da autoria de Mario Vargas Llosa, cria desde logo uma intensa expectativa em relação a este primeiro romance de Carmen Laforet, escrito por ela aos 23 anos, pouco após a Guerra Civil de Espanha, e vencedor do Prémio Nadal. Lemos depois a obra, num estado de perturbação e fragilidade - falarei desse estado a seguir - e quando, no fim, relemos o prefácio de MVL, damos imediatamente com esta afirmação, que quase nos passara despercebida, e vem agora, impressionantemente, sintetizar a nossa própria leitura de Nada: um romance em que o que se não diz é tão ou mais importante do que o que se diz. (Cito de memória).

Essa espécie de segredo que vela algo das emoções e dos sentimentos das personagens, como um não-dito essencial, subjacente a toda a história, ou como uma verdade que fica permanentemente por revelar, e sem a qual, contudo, os comportamentos daquelas pessoas são expressões única e incompreensivelmente do vício, da maldade, da histeria e da paranóia, torna-se o sinal evidente da subtileza e da maturidade da narração.

Chegada a Barcelona para estudar e viver com parentes seus, Andrea, a protagonista, hospeda-se na Rua de Aribau, onde a sua família, "faminta e meio enlouquecida" nas palavras de Vargas Llosa, se lhe apodera da alma, encarcerando-a no seu mundo obsessivo, constituído a partir de relações impossíveis, sempre no limite de um ciúme e de uma raiva psicóticos, sem momentos de paz ou bem-estar que não sejam ilusórios.

Os tios de Andrea, Juan e Roman, no seu angustiante laço de amor-ódio, são dois vértices de uma tragédia que nunca compreenderemos inteiramente. Roman, sobretudo, dotado de um fascínio pérfido, é um Heathcliff catalão: uma chama incapaz de gozar ou oferecer felicidade, consumindo-se no ódio e no desprezo, destruindo os que atrai.

É um livro único, não porque Carmen Laforet não tenha escrito outros (escreveu-os, na verdade, muitos anos depois desta estreia, como se precisasse de se regenerar de um mergulho tão esgotante), mas no sentido em que há livros tão completos, tão, digamos assim, absolutos, que se torna quase irrelevante o que o autor pudesse efectivamente acrescentar, uma vez que nada há a acrescentar. Daí a perturbação no leitor, a que me referia, daí, também, a fragilidade que se sente perante o sentido da imensidão das almas, tanto para o bem (o amor da avó, a ligação, porventura incompreendida, a Edna) e para o mal (o ciúme complexo de Gloria, a insuperável guerra entre os tios).

Todas as personagens são, em Nada, de uma autenticidade terrível. Repito, e não por acaso: terrível. Este romance anima-as no interior de interacções em que se magoam e perdem, e salvam, quotidianamente, sob o signo de uma destrutiva dependência mútua, num estranho e doentio agregado de desagregações. E no entanto, essa exposição de um mundo tão angustiante e doloroso, tão hostil e violento, como se feito das ruínas sociais, económicas, psicológicas, em que os efeitos da guerra, nunca ou raramente nomeada, se pressentem ainda, não deixa de ser sublime. O mesmo sublime que adivinhamos na música de Ramon - o sublime, afinal, da linguagem dura e poética da então muito jovem Carmen Laforet.

domingo, 25 de março de 2018

SARAH BAKEWELL: AT THE EXISTENCIALIST CAFÉ




     A despeito de uma incessante busca do "universal", a filosofia é sempre, em cada momento e pela mão de cada filósofo, um empreendimento situado no concreto da história, da cultura, da biografia do pensador. Talvez porque não está temporalmente muito distante de nós, nenhuma corrente filosófica nos parece, tanto  como o "existencialismo moderno" - tipicamente francês na forma como se popularizou nos anos 30/60
 - um subproduto do tempo, marcado pela Guerra, pela ânsia juvenil de liberdade e contestação dos mais velhos, pela radical revisão dos valores e das hierarquias, pelo peso do marxismo, do maoismo, do feminismo, das lutas pela descolonização acendendo-se um pouco por toda a parte. E pela Paris da Rive Gauche, de Saint-Germain-des-Prés, dos cafés e dos clubes de Jazz.

O existencialismo de Sartre e de Simone de Beauvoir - sei bem por que o digo: estudei filosofia na Universidade de Lisboa - sempre foi olhado, nos meios académicos, com alguma condescendência. Era precisamente o "engajamento" nas lutas encenadas pelo espírito do tempo, que o tornava suspeito: uma espécie de doença infantil da filosofia. Demasiado idealismo e rebeldia, um excesso de atenção ao particular em detrimento da Ideia (com maiúscula), já para não falar das suas origens intelectuais infectadas pelo nazismo (se quisermos traçar-lhe a genealogia não ignorando Heidegger), impediram sistematicamente os professores de filosofia de tratar o existencialismo moderno com o respeito e a dignidade que lhes merecem Kant ou Hegel.

E, todavia, este movimento exerceu sempre um indesmentível fascínio. Aliás - já o terei confessado algures -, foi Sartre, e nenhum outro, o responsável pelo meu interesse desde cedo pela filosofia e por que deviesse um seu cativo.

De Jean-Paul Sartre, é verdade, tudo o que proveio contém o condão de nos fazer vibrar e de nos estimular. As extensas dissertações, os romances, o teatro. Mas também as polémicas, as aproximações e os cortes de relação, os amores, a vida boémia. As suas teses são ágeis, dinâmicas, certeiras como a cafeína ou o álcool. Para além de tudo, existem as imagens. As imagens - que não temos, com a mesma profusão, do habitat da filosofia e dos filósofos de tempos anteriores - falam-nos à imaginação de um modo especial, quase conseguindo que nos sintamos parte integrante do mesmo mundo, do mesmo tempo, dos mesmos ambientes e situações. As imagens (re)constituem em nós uma memória que julgamos comum.    

Daí que o livro de Sarah Bakewell, cujo subtítulo é Freedom, Being and Apricot Cocktails, possibilite a revivência de uma história que nós, os de uma certa geração, ou pelo menos eu e uns quantos que, como eu, nos entusiasmámos na adolescência com o radicalismo exuberante dos existencialistas, sentimos nossa, como se estivéssemos a recordar a própria juventude ou os primeiros passos na autonomia do pensar, entre Sartre, Beauvoir, Raymond Aron, que não sendo existencialista lhes abriu os olhos, Camus, Merleau-Ponty, mas fazendo o percurso inverso até às raízes:  Kierkegaard, Nietzsche, Husserl, Heidegger e Arendt. Sarah Bakewell consegue-o brilhantemente: o deslumbramento da autora que, aos 16 anos, lia La Nausée, de Sartre, é similar ao que descrevi como sendo o meu. De algum modo, fomos todos existencialistas. E a viagem é, como sublinham os críticos, "Fascinating" (Observer) e "Sparkling" (Spectator).

terça-feira, 13 de março de 2018

RAÚL BRANDÃO: HÚMUS


É um texto absolutamente inesperado num autor português dos fins do século XIX (o seu História dum Palhaço é publicado em 1896) e início do XX. Húmus (1917) é uma reflexão filosófica sob a forma de uma perturbadora alegoria em que, mais propriamente do que uma história - de facto, não existe história alguma - desfilam, ante os nossos olhos, personagens: as velhas de nomes incredíveis, a D. Leocádia, a D. Procópia ou a D. Penarícia, os casais tratados pelo apelido, o sr. prior, o padre Ananias e os demais padres, o Gabiru,  doido que nunca percebemos se tem existência real ou é apenas um lado delirante do narrador, em suma uma vila, que simboliza um certo modo de existir, uma dada má-fé do espírito, que (com excepção de Gabiru, aceso e perpétuo arauto da surpresa do existir), tenta evitar por todos os meios descobrir-se no espanto perante a vida e a morte, preferindo-lhe a alienação e a rotina.

Gabiru é, pois, com as suas frases iluminadas e exaltadas, um Sócrates contemporâneo, um corruptor da massa em que a vila se deixa quotidianamente afundar, suportada por invejas, ressentimentos e melancolias de séculos, fechada num cíclico jogo de gamão, em que nunca se olha, não se quer olhar, pela janela, para o desassossegador infinito, para o espantoso mistério de se estar aqui, para o outro lado dos limites que escolhemos, e a que nos atrelamos, pagando com essa prisão o preço de uma pseudo-tranquilidade.

Húmus é fortíssimo. Reconheço na linguagem desta obra, na escrita que lhe é própria, e parece criar a sua lógica intrínseca, densa e labiríntica, imune a uma tentativa de apropriação segundo as regras tradicionais de descodificação, um filho do Dostoievski de Os Cadernos do Subterrâneo, e um pai literário do Carlos de Oliveira do extraordinário Finisterra. E como esses dois, é também um texto, Húmus, que temos de ler vagarosamente, numa particular ansiedade e alegria de descoberta e de susto. E de que devemos repousar a cada momento, por algum tempo, antes de retomarmos a leitura.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

MILAN KUNDERA: A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER


Era jovem quando pela primeira vez li esta obra. Admito que me pareceu demasiado incongruente e intelectual, com capítulos que eram autênticos ensaios filosóficos ou de História da política, e emperravam imperdoavelmente a trama, diminuindo a intensidade dramática e romântica da narrativa. Enviei-a para o limbo da memória. Não voltei a pensar no que classifiquei como o insustentável pedantismo de Kundera; e o Autor tornou-se-me um daqueles a evitar cautelosamente. Estava portanto advertido.

Séculos decorridos, sou surpreendido com a proposta de um aluno, cúmplice no amor aos livros, de apresentarmos, em parceria, A Insustentável Leveza do Ser. Incapaz de o desiludir, comprei uma edição de bolso (traduzida por Inês Pedrosa, actualizada, perdão, "atualizada" para o nefando AO, a 9, 95 €), dei por mim a relê-la e, quem diria? a não poder parar, como se agarrado a um romance de suspense.

Tudo faz sentido: a começar pelo conteúdo do primeiro capítulo, onde Nietzsche e o mito do eterno retorno são expostos como a chave para a razão de ser do título. Se o que sucede é evanescente, então nada marca, e isto que acontece (o que quer que aconteça, por sublime ou terrível que no momento nos soe) devém indiferente. É uma questão de tempo. Como se sabe, contra essa angústia perante o perecimento inevitável das coisas, a ideia do eterno retorno, ou de que todas as coisas se repetirão indefinidamente, e para sempre, representa, em Nietzche, a consciência da gravidade até da menor das decisões e dos actos. O imperativo categórico seria: Age sempre como se cada acto teu tivesse de se realizar de novo, uma, e outra e outra vez, eternamente. Ou seja, que essa ideia marque com todo o seu peso cada uma das tuas escolhas, cada uma das tuas acções.

É este fardo bom? É a gravidade positiva? Ou pelo contrário, no par peso-leveza, caberia antes à leveza o polo positivo, o ideal, o desejável? Devemos procurar, na existência, no ser, o peso do que permanece, a lei interna de cada momento, inadiável como um destino, o es muss sein! de tudo, ou a leveza do fortuito, do perecível, do que não se enraíza?

Por outro lado, as personagens de Kundera são assumidamente fictícias. Aparentemente, leves. O autor enfraquece-as até quase à transparência, ao confessar abruptamente, a meio do romance, que nunca existiram e que as criou a partir de uma frase ou de um ruído. Contudo, enraizam-se em nós. Estranhamente, elas existem mesmo, autónomas, com uma identidade inegável, vivendo a sua intranquila história de amor dentro da História de um país invadido, traído e dividido (até se haver transformado em dois diferentes países, a República Checa e a Eslováquia). Os protagonistas, portanto, existem por si, entre a leveza e o peso específicos do seu ser e, em certa medida, para além da voz de Kundera, talvez até contra essa tonitruante voz à procura de absorver o texto inteiro, invadindo-o, por sua vez, num exercício de virtuosismo admirável, totalitário, pomposo e omnisciente.

E não ignoremos, é claro, a existência igualmente inegável do cão Karénine, com o seu amor e as suas rotinas, sobretudo ao longo daquela última parte, de que me esquecera de todo, pungente e comovente - uma rara e bela apologia de todos os animais de que o homem se serve e uma crítica terrível ao modo como o ser humano, esse "parasita das vacas", os trata em toda a parte, em todos os tempos.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

YUVAL NOAH HARARI: SAPIENS

"Mas o frágil edifício do amor deles ficaria completamente destruído, porque esse edifício repousava sobre o pilar único da sua fidelidade, e os amores são como os impérios: assim que desaparece a ideia sobre o qual estão construídos, também eles desaparecem."

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

Leio, por estes dias, dois livros, cativos meus "que me trazem cativo". Um é Homens Bons, de Arturo Pérez-Reverte. Outro, Sapiens, de Yuval Noah Harari. Menciono ambos apenas porque me não foi fácil decidir sobre qual dos dois escreveria no blogue.

Sapiens é, como indica o subtítulo, uma breve história da humanidade. E, creiam-me, a história em causa é narrada desassombrada, inteligente e fascinantemente, ainda que em alguns momentos se torne excessivo o peso da interpretação do autor, a qual, não sendo menos plausível ou menos interessante, não deixa todavia de evidenciar o seu carácter de explicação meramente verosímil, entre outras que poderíamos inventar, com a mesma força e o mesmo grau de razoabilidade.

Seja como for, a história dos sapiens, tal como contada por Harari, é muito diferente daquela a que nos habituáramos. E assume o risco do politicamente incorrecto, contextualizando e pesando as consequências teóricas das afirmações apresentadas, e mostrando por que razão certas conclusões foram sempre evitadas, se não ocultadas, pelos cientistas, assustados com a utilização que se poderia haver feito - e que, ao longo do tempo, efectivamente se fez.

Desde a ideia de que coexistiram vários géneros da espécie "homo", para além do "sapiens", e que, portanto, diferentes raças poderão não ter provindo de uma fonte única, até à de que a capacidade humana para o boato foi fundamental na revolução da inteligência e do conhecimento; desde a ideia de que a revolução agrícola foi o maior embuste, no sentido em que, ao invés de uma libertação e melhoria da vida do homem, o tornou um escravo da terra (e o trigo o domesticou, muito mais do que foi por ele domesticado), até à de que o próprio de todas as culturas é a crença religiosa, considerando Harari o liberalismo, o comunismo ou o nazismo como religiões que substituíram a adoração a Deus pela adoração ao Homem; ou ainda quando refere a importância do casamento entre a ciência e o imperialismo para a constituição e a singularidade do Ocidente, tal como o concebemos hoje - em todas as suas abordagens e intuições, Harari é arrojado e provocador. Concordemos ou discordemos, não deixamos o livro sem ter reflectido, duvidado, discutido, aprendido.

A tese central, que subjaz a toda a obra e retorna explícita e continuamente, é a de que os sapiens foram os únicos animais que se tornaram capazes de erigir ordens imateriais. Uma república é uma ideia, a que se adere e pela qual se luta. A liberdade é uma ideia em nome da qual creio que o meu acto é uma escolha. O que são o progresso e o retrocesso, a honra e a propriedade, a inteligência e a sensatez, ou a literatura e o humanismo senão ideias, ordens ideais, pelas quais pautamos as nossas vidas, tomamos decisões, construímos habitações e cidades? O que é o dinheiro, mais do que a moeda ou a nota, que valem pela ideia que os os sustenta? Ou o crédito? O que é uma Pátria? Ou, segundo Harari, Deus - senão ideias?

Consistirá nesse dom da crença a grandeza humana? Ou a sua fragilidade?