quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

IVAN GONTCHAROV: OBLOMOV



Os autores russos do século XIX são um universo à parte; refiro-me tanto à estranheza da realidade que lhes serviu de matéria-prima (a Rússia e os tipos russos do seu tempo, tão reconhecivelmente próximos de nós e, ao mesmo tempo, tão irredutivelmente outros), como à qualidade do génio por que foram tocados; no romance, no conto ou no teatro, foram criadores exaltantes pela eficácia dos diálogos - ou dos monólogos -, pelo mergulho em abismos emocionais, pela veia ardente e trágica, ou cómica, ou tragicómica, e pela profundidade filosófica. Para além de tudo, descobrimo-los surpreendentemente inúmeros: julgávamos conhecer os que valem a pena, mas nunca estamos livres de tropeçar em um outro, que ignorávamos - e é, também magnífico. O que justifica tamanha efervescência de génio no seio de um país, então, feudal, e culturalmente indigente? A excelência de intelectuais e artistas, numa sociedade autocrática e militarista?

O sentido de humor de Gontcharov merece bem a leitura. O seu protagonista, Oblomov, constitui uma daquelas figuras que definem certo tipo de personalidade ou uma maneira particular de ser, e lhes emprestam um nome. Pode falar-se de um carácter oblomoviano a propósito de pessoas que se caracterizam por uma inactividade plenamente fruída, o receio do frio, o gosto por uma espécie de hibernação confortável, o dolce farniente em rigor, o prazer da indecisão, o recolhimento.

O recolhimento e o acolhimento. Como Oblomov é generoso, pelos seus aposentos entram e saem outros tantos caracteres dignos de figurar num catálogo de tipos, a principiar por Zakhar, seu criado, velho, inepto, desobediente e resmungão, ou o amigo dandy, ou o vago e apagado amigo, de quem ninguém se lembra, ou o oportunista astuto e ressentido, etc, etc. A primeira parte da obra é quase uma peça de teatro, pelo que, ao mesmo local, o quarto de Oblomov, vão chegando e sendo apresentadas ao leitor (e saindo de novo) diversas e sucessivas personagens. Oblomov, preocupado, porém, com dois problemas que ameaçam a sua paz, quer apenas que o oiçam e o ajudem a resolvê-los.

À medida que a história recua, desvendando-nos as razões da sensual preguiça de Oblomov, intuímos o desespero latente na sua indecisão, a tragicomédia contida na sua inactividade, a angústia do seu contínuo protelamento.  A criança protegida e feliz, que ele fora, e a si própria se sonhara activa e bem-sucedida nos seus projectos e objectivos, cedo viria a verificar que o princípio da realidade não coincide com os seus sonhos, e lhe roubava a infância, e o projectava no tédio e na frustração; essa criança acabaria refugiando-se em si - a criança grande em que se tornou - aguardando sempre por um futuro que lhe passava, todavia, ao lado, incapaz de decidir, temeroso e tremente.

Este reconhecimento de uma angústia existencial na indecisão, de uma dimensão trágico-melancólica sob a bonomia e o humor, justificariam, porventura, uma afirmação que, sobre a obra, me lembro de haver lido: que Oblomov é um Hamlet ao contrário. Também para ele, a questão central seria "ser ou não ser." Inversamente, Oblomov escolhe não ser.

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