terça-feira, 17 de outubro de 2017

ROBERT WALSER: OS IRMÃOS TANNER


"Como tudo isto é cómico e, no entanto, tão profundo."
Robert Walser, Os Irmãos Tanner


Walser é um autor central numa cartografia dos meus interesses em Literatura. Ainda o não havia descoberto - até porque se tratou de um encontro relativamente tardio, pela mão de Enrique Vila-Matas -, mas os meus Autores essenciais eram, e sempre foram, ainda que eu ignorasse tal genealogia, seus filhos, ou sobrinhos literários. Kafka, por exemplo - que, por causa de um seu texto inicial, Musil terá detectado como um caso particular, uma variação, digamos, da forma ou do estilo de Walser. Ou o próprio Musil. Thomas Mann. Ou Elias Canetti.

A escrita de Robert Walser provoca-nos um estremecimento de surpresa e de alegria. Há uma subtileza genial na introdução, por exemplo, a que procede por vezes, de um termo que principia por nos parecer despropositado no meio de uma lista de características comuns de uma personagem, uma profissão ou um lugar. Numa segunda leitura, porém, compreendemos que o "despropósito", mais do que um efeito humorístico (que também procura, e consegue), contém uma intenção profunda - o "despropósito" é, na verdade, revelador de uma temperatura, uma vibração, uma tendência, um ângulo, uma certa inesperada face na ordem habitual das coisas. 

Serei caso único de maravilhamento, perante trechos como os dois que, adiante, não resistirei a transcrever? Ou sentir-se-iam, os leitores deste blogue, igualmente tocados por esta descrição: «Os fazedores de contas eram sobretudo homens mais velhos que se agarravam aos seus postos e postozinhos como se estes fossem vigas ou estacas. Tinham o nariz alongado, de tanto se dedicarem às contas, e usavam roupa gasta, puída, desbotada, cheia de pregas e vincos», ou por esta outra: «Por que razão toda esta gente, escreventes e contabilistas, até mesmo raparigas novas, entra pelo mesmo portão no mesmo edifício para rabiscar, para experimentar as canetas, para fazer contas e gesticular, para trabalhar com afinco e para assoar o nariz, para afiar os lápis e para andar de trás para diante com resmas de papel nas mãos?»? Diríamos que a agitação no interior de um Banco tem uma lógica e um sentido segundo os quais os actos dos seus protagonistas são razoáveis e eficientes: para quem ignora essa lógica, tudo se resume a esse conjunto um tanto desconexo e absurdo de gestos dos "escreventes e contabilistas", em que assoar-se, gesticular ou contar têm a mesma relevância. Antecipa-se, aqui, Meursault e a melancolia do observador desenraizado.

As observações do narrador são sempre luminosas, daquela luminosidade que se tornaria uma característica de tantos Autores do princípio do século XX. Não sentimos a beleza, para reter uma só, desta síntese, no momento em que o narrador testemunha o seu fascínio pelo bailado de uma bailarina: "A imperfeição da sua arte era entendida como uma arte maior"? Não é verdade que, por vias diversas, reconhecemos, no brilho típico deste formular, uma das origens, entre nós, da escrita de Gonçalo M. Tavares, talvez da de Afonso Cruz?

Eis os Tanner: outsiders, errantes da vida (exceptuando Klaus, o mais compenetrado e responsável, na acepção burguesa da palavra, de todos eles), no entanto de uma autenticidade e de uma delicadeza de sentimentos, autenticidade e delicadeza, essas, que nos vão sendo longamente expostas, ou em missivas que redigem, em geral a um dos irmãos, ou nos seus pensamentos, como se pensassem em voz alta. Há zangas antigas, amores inusitados, sempre sem o drama da culpa ou do ciúme. Na ausência de uma história propriamente dita, o que Walser nos oferece é uma sucessão de quadros e reflexões, com que nos surpreende e, sobretudo, nos convida ao prazer descomprometido do flâneur. Meu amigo Jorge, que há tanto se insurge contra o declínio da narração, a perda do dom da narratividade, acharia, em Walser, um dos culpados dessa arte de contar sem ter o que realmente contar. Todavia, fazendo, dessa deliberada imperfeição, uma arte maior, e perfeita.

2 comentários:

Beatriz disse...

Gosto muito de Walser.

sonia disse...

Já gosto de quem gosta de Kafka!!"!