quinta-feira, 7 de setembro de 2017

PIERRE LEMAITRE: IRÈNE




Embora, desde há algum tempo, a agulha da moda em matéria de policial tenha apontado para Norte, onde descobriu alguns autores muitíssimo interessantes, e outros somente assim-assim, mas que as editoras portuguesas, com a embalagem e no meio da confusão, começaram a traduzir e a publicar também, a verdade é que os franceses têm, nesse campo, uma cena muito sua e muito cativante.
Se pensarem em Pierre Siniac, por exemplo, percebem aonde quero chegar. Há uma dimensão literária no policial francês, que os suecos ou os dinamarqueses nem sequer tentam; que os clássicos norte-americanos afloravam, de uma forma discreta, menos presumida, porventura menos self-conscious; que, nos ingleses, acabava por se traduzir nos contornos de certas personagens cultas, em geral professores universitários. Mas só nos franceses se assume como a despudorada convivência com a grande literatura, entre citações, referências, jogos sofisticados de linguagem. Poderia parecer pedante. Em Siniac, não o é. Respira naturalmente. É «francês». No autor de que falarei aqui, um outro Pierre, de apelido Lemaitre, também não.

Os policiais são um vício meu de há anos - diria, quase: inato. Mas foi uma boa amiga que me ensinou a apreciar os mais destrambelhados de entre eles, quero dizer, os mais violentos, aqueles em que o sadismo dos criminosos os leva a assassinar com insuportáveis requintes. Cabeças decepadas, encenações macabras, o sublime horror, o puro demoníaco. Se o policial visto como jogo e engenharia intelectuais também me interessa, o lado sórdido e tenebroso, que está arredado dos Sherlock Holmes, dos Poirot ou das Miss Marple, faz vibrar, em mim, uma nota de maldade, que dispenso, naturalmente, na vida real, mas aprecio na Arte.

Pierre Lemaitre conjuga todos estes factores. Irène é bastante literário, principiando logo por uma citação de Roland Barthes e concluindo pela auto-denúncia do roubo de frases, digeridas e espalhadas, sem aspas, pelo corpo do texto, ao longo do romance inteiro: Shakespeare, Bergson, Proust, enfim, os melhores de entre os melhores. Trata-se de uma deliberada homenagem à literatura, e talvez à francesa em particular. Com a óbvia excepção de Shakespeare. Mas, se falamos em homenagem, convém acrescentar que se assiste, igualmente, a uma homenagem ao romance policial, tanto mais que o assassino deste caso (homem ou mulher, não desvelemos) é, ele(a) próprio(a), um(a) leitor(a) de policiais, encenando os seus horrendos crimes à imagem de alguns assassinatos apresentados em clássicos do género. São cinco assassinatos, cinco, copiados de cinco diferentes obras, nos mais ínfimos cuidados e pormenores. Eis o crime, pois, como citação e homenagem. O que convida o leitor a que vá procurar, depois, se os não conhecia já, os modelos, ou as histórias que inspiraram o ou a assassino(a)-artista.  

Porém, o lado do desafio ao leitor, como se lhe propusessem uma partida de xadrez, está elegantemente preenchido: Camille Verhoeven, o Inspector demasiado pequeno, é um homem arguto, contudo humano, quer dizer, falível (o que significa, ainda: não reduzido ao cérebro; não apenas um depósito de celulazinhas cinzentas), que ama e se martiriza por não acompanhar mais a esposa grávida, e se enerva com os jornalistas insistentes. A inteligência e a criatividade, a lógica e a intuição, interligam-se no farejar das pistas ou na provocação de reacções do criminoso.

Descobrir quem é o assassino(a) apaixonado(a) pela literatura policial, poderá não ser o mais difícil. Francamente, a mim não me enganou durante muito tempo. Mas eu sou, como leitor do género, uma velha raposa. Ainda assim, as surpresas não são raras. O fim, oh, aquele tremendo fim (cala-te boca!), o fim que o diga.

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