sábado, 31 de dezembro de 2016

JOHN RUSKIN TRADUZIDO POR MARCEL PROUST: LA BIBLE d'AMIENS


John Ruskin era um excêntrico. Mas há muito que procuro lê-lo na íntegra, cativado por aquelas passagens, de que achei citações, em que perora contra o progresso tecnológico; pelo olho sensível com que se apercebeu da importância dos pré-rafaelitas e pela divulgação que fez da obra destes; pela influência que exerceu desde cedo sobre Marcel Proust, o nec plus ultra da literatura no meu cânone pessoal; e porque o meu primo mo aconselhou diversas vezes, sobretudo a propósito dos seus geniais vislumbres sobre Veneza.

Foi, obviamente, meu primo quem me ofereceu La Bible d'Amiens: a visão (como chamar-lhe de outra forma?) que Ruskin teve da cidade e, no coração da cidade, da sua sublime catedral. Mas, mais do que o acesso ao texto inteligente e profundo de Ruskin, tive-o numa tradução do próprio Proust, que principia por nos apresentar a obra e o autor.

É Proust, aliás, quem nos explica em que sentido devemos interpretar a escolha da palavra «Bíblia» no título. A Bíblia de Amiens é o pórtico ocidental da catedral, uma bíblia no sentido próprio e não figurado, uma «bíblia de pedra»: «esse mundo de santos, essas gerações de profetas, esse séquito de apóstolos, esse povo de reis, esse desfile de pecadores, essa assembleia de juízes, esse esvoaçar de anjos, uns ao lado dos outros, uns em cima dos outros» [Caramba! que maravilha.]

No seu prefácio, Proust abre-nos o universo do mestre: faz a ligação, que o leitor deleitado agradece, entre diferentes obras de Ruskin, tão erudito que raramente se repete de texto para texto, mesmo quando o que já referiu em algum, viria tão a propósito em outro, como ilustração do que está tentando sustentar agora. Percebemos a admiração, o êxtase. Percebemos tudo quanto Marcel Proust reconhece dever a Ruskin: mais do que ideias, conhecimentos, experiências (tanto de leitura como de peregrinação aos lugares mencionados), também uma certa forma de dirigir o olhar e, sem dúvida, uma sensibilidade própria na escrita. Mas Proust não é o discípulo cego - ele distancia-se, intui os erros e expõe-no-los com a sua perspicácia.
«Não é que eu desconheça as virtudes do respeito, é mesmo a própria condição do amor. Mas nunca ele deve, quando cessa o amor, substituir-se-lhe, para permitir-nos crer sem exame ou admirar por confiança,»

O desvio sistemático que Proust identifica em Ruskin, a sua «parte frágil», é a «idolatria». Curioso termo para designar um crítico cristão. Chamar-lhe-íamos «fetichismo», não fosse a conotação que a palavra veio ganhando. Em síntese: o Belo é uma via para a verdade; John Ruskin busca, na beleza das obras cristãs, uma expressão da presença de Deus. Porém, de tal modo a coisa bela emana a verdade, que é como se a contivesse, a encarnasse. A partir de então, objectivamente, não a vemos já como símbolo do que devemos adorar, mas como o que é adorável por si mesmo.

Todavia, até «a parte frágil» devém encantadora. Em Ruskin, segundo Proust, ou nas singulares formulações em que aquele capta as coisas de que nos fala, encontramos uma elevada beleza, e essa beleza, por vezes ambígua e desconfortável para o leitor, toma uma autonomia própria ainda que o que ele afirma deslize para a «idolatria», ou que não seja factualmente verdadeiro. É sempre uma interpretação que nos atinge, nos delicia, mesmo que não creiamos nela e não possamos aderir ao seu conteúdo. Um exemplo, dado por Proust, desse desconforto ante o erro apresentado numa formulação muito bela: «Não é menos certo que essa passagem de Pedras de Veneza é de uma grande beleza, ainda que seja muito difícil compreender as razões dessa beleza. Ela parece-nos repousar sobre algo de falso e temos algum escrúpulo em deixar-nos arrastar

Posto isto, o poder de Ruskin é assombroso. E multímodo. Pessoalmente, atribuo à palavra «Bíblia», aqui, um sentido diferente, sabendo que nunca esteve no espírito da escolha de Ruskin: o seu livro acerca desta catedral deve ser visto como uma Bíblia de Amiens. Diante dos nossos olhos estupefactos reconstitui-se a cidade desde os seus primórdios, e vão-se redepositando as sucessivas camadas históricas e culturais que, num dado momento, a cristalizaram como uma cidade de águas, qual Veneza. Ruskin narra os episódios da formação de França a partir de Amiens, e a origem, a originalidade e a expansão do seu cristianismo. Nada é irrelevante: somos o «viajante inglês inteligente» que observa, pela janela do comboio, as 50 chaminés, de entre as quais sobressai uma, que não lança fumo, e é uma flecha em direcção aos céus; lembra Saint Firmin, que introduziu a fé num povo pagão, sob a ocupação romana, mas ensinado por Druidas; conta episódios históricos, ou mitos, ou meras mas saborosas lendas populares sobre Clodion, Mérovée ,Childéric, e sobre Clovis e Clotilde, reis dos Francos. Apresenta-nos caminhos alternativos para nos aproximarmos da catedral, consoante o tempo de que disponhamos, ou o estado atmosférico do dia. Por todos os poros da sua escrita magnífica e exaltada, sentimos a atenção ao pormenor e a capacidade de resgatar ao esquecimento algum detalhe em que porventura não repararíamos. Proust evoca um episódio revelador: Ruskin destaca, algures, uma das figuras minúsculas dispostas junto ao portal das Livrarias na catedral de Rouen; descreve-a com uma delicadeza e um charme inesquecíveis. Marcel Proust foi, um dia, visitar a catedral, que aliás já conhecia, em busca dessa figura. Pareceria impossível detectá-la: são centenas de criaturas de poucos centímetros. E, porém, reconheceu-a - Ruskin oferecera-lhe, de algum modo, a imortalidade, arrancando-a a centenas de peças que se confundiriam, quase semelhantes, numa massa anónima; interessara-se por aquela, como se dissesse: é esta, ei-la!, e concedeu-lhe vida, extraindo-a do nada.  

Um dia, terei de visitar Amiens, com a Bíblia nas mãos.

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