domingo, 26 de junho de 2016

SHIRLEY HAZZARD: O GRANDE CONFLITO



Escrevi já que, a despeito das inúmeras fragilidades que lhe detectava - entre as quais uma confrangedora ausência de auto-ironia -, o livro Remédios Literários teve o mérito de me chamar a atenção para alguns romances possivelmente interessantes. Encomendei O Grande Conflito. Fiz muito bem.

A obra recebeu o National Book Award em 2003. Em Portugal, foi traduzido e publicado pela Gradiva em 2006. Um tempo em que,  a julgar por este caso, a Gradiva era uma editora a sério, que tinha ao seu serviço pelo menos uma tradutora excelente, Maria de Fátima St. Aubyn, rigorosíssima no seu inglês e no seu português, responsável por notas de tradução competentes, indispensáveis e que esclarecem, efectivamente.


A escrita é exigente; clama por leitores de paladar requintado; convida a uma leitura que degusta sem pressa, concentradamente. A riqueza das figuras de estilo - «Antes de o comboio iniciar sequer a marcha, os rostos na plataforma adquiriram a expressão dos que ficam» ou «Teve consciência de um qualquer elemento importante que não identificara. Com indiferença, percebeu que se tratava da beleza» - e a perfeição no uso da narração indirecta livre são elementos de composição que merecem ser analisados por si sós, porventura numa segunda leitura.

Um romance tem de ferir. Uma história inesquecível tem, por força, de nos inquietar. Deve empurrar-nos para algo sobre que, na sua particularidade, não tenhamos ideias feitas; ou deve obrigar-nos a refazer as ideias que julgávamos inquestionáveis. O leitor de um grande romance é sempre uma figura frágil e vulnerável, uma espécie de caniço ao vento. Não somos capazes de abordar uma grande-grande-grande obra trazendo no bolso condenações fáceis, antecipadas e previsíveis, segundo qualquer moral: ninguém é capaz de atirar pedras a Anna Karenina, ao Padre Amaro, a Madame Bovary, a Aschenbach (cuja atracção, aliás, está sempre contida nos limites de um pudor e de uma delicadeza primorosos) ou sequer a Humbert Humbert. Trata-se sempre mais de compreender e de nos interrogarmos a nós próprios do que de julgarmos e proscrevermos. Neste sentido, as traições e as perfídias, as obsessões transgressoras e as paixões pecaminosas, os erros e as perversões, por inaceitáveis que sejam segundo os códigos da civilização, tornam-se, nos romances, apenas a exposição da condição humana, da impossibilidade da pureza e, portanto, de uma sua dimensão trágica. O Grande Conflito, evidentemente, é isso: num perturbador cruzamento entre Reviver o Passado em Brideshead, Morte em Veneza e Lolita . Gostaria muito que a Teresa, autora do extraordinário blogue A Gota de Ran Tan Plan, onde há muito não escreve - e que há muito me não visita - pudesse, ela que me trouxe nada menos que d'Ormesson, dizer-me o que pensa deste romance.

Hesito muito em alargar-me. Sinto que, de alguma forma, as autoras que me levaram à descoberta me amputaram precisamente de alguns aspectos no prazer da descoberta: revelaram excessivamente, e portanto eu já sabia uma parte essencial do enredo. Mas o contexto histórico é o pós-Guerra (1947), e as personagens, inglesas, australianas e norte-americanas, conhecem-se no Japão (ou encontram-se numa China prestes a ser tomada por Mao), num período em que os ecos de Nagasaki e Hiroxima se não esvaíram totalmente. É nesse clima de ruína e de culpabilidade que estas pessoas de gerações diferentes, todas elas carregando também, a seu modo, histórias pessoais de abandono e destroço, se deixam mutuamente encantar: como se sob os escombros e a impossibilidade, as diferenças e o conflito, se escutasse o ténue canto de uma promessa de eternidade em vida. 

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