quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ELENA FERRANTE: A AMIGA GENIAL (TETRALOGIA)



Concluí a noite passada a leitura do 3º volume [História de Quem Vai e de Quem Fica], em que me embrenhei como já antes me embrenhara no 1º [A Amiga Genial] e, a seguir, no 2º [História do Novo Nome], talvez aquele que, até agora, mais intensa e dramaticamente me raptou à minha realidade quotidiana, para me fazer viver em outra realidade; e devo confessar que já não sentia desta maneira uma urgência de leitura - estava incapaz de me deter, esquecido de horas para comer ou dormir, esquecido de outras tarefas - mas marcada, ao mesmo tempo, pela angústia de me estar a aproximar da última página e da iminência da despedida. Senti-a em cada um dos volumes, em todos os casos aplacando o mal-estar com a consciência de que haveria um volume seguinte.

É uma obra da moda. Suspendo, no meu blogue - já o fiz outras vezes, aliás - a obediência ao objectivo de escrever sobre as obras invisíveis, os clássicos que surpreendo em edições antigas, perdidas, resgatadas às catacumbas e aos túneis secretos das livrarias ou das bibliotecas. Faço-o porque se trata de mais uma excepção: Ferrante justifica-o; a história das duas amigas napolitanas, que nos vai sendo narrada desde a infância destas, no bairro duro, como um gueto onde o dia-a-dia agressivo e ruidoso se faz no dialecto praticamente ininteligível para os demais italianos, da adolescência, a juventude, a maturidade, entre os anos 60 e os anos 90 - até à velhice, no volume que ainda agora comecei a ler [História da Menina Perdida] - por dezenas de razões me parece ser uma síntese do que de melhor a literatura do nosso tempo pôde alcançar.

Principio pela escrita. A enganadora simplicidade do texto de Elena Ferrante, fugindo ao ornamento, na busca de uma limpidez que resulta, no entanto, de um longo trabalho de aparar e refinar até não subsistir nada que distraia da sublime e clara essência, é um segredo de raros eleitos. Nada de neologismos, de bifurcações de frases: a originalidade está nas imagens; as metáforas nada têm de artificial: e são evidentes, apesar da sua frescura e da sua originalidade. Não parecem procuradas e construídas segundo regras retóricas, mas espontâneas e sem ruído. Transcrevo um único exemplo, que retiro do início do último volume, que já estou a ler:

«Assim fiquei sozinha com Antonio. Pareceu-me que tinha na minha frente duas pessoas no mesmo corpo, e no entanto bem distintas. Era o rapaz que em tempos passados me abraçara nos pauis, que me idolatrara, e cujo odor intenso me ficara na memória, como um desejo nunca na realidade satisfeito. E era o homem de agora, sem um fio de gordura no corpo, feito de ossos grandes e pele esticada, desde o rosto duro e sem olhar, até aos pés metidos nuns sapatos enormes

Por outro lado, o modo de contar é neurótico e vertiginoso, composto por segmentos breves que nos deixam, frequentemente, à beira de um abismo. Mas, sobretudo, as personagens são de uma tal autenticidade, que as sentimos respirar, nas suas humanas imperfeições que raramente no-las tornam detestáveis. A ambição, a inveja, o ciúme, ou actos tão mesquinhos (e universais) como mentir, humilhar ou trair, são sempre carregados de cambiantes que evitam que se tornem simples, ou que possam ser julgados de forma maniqueísta. Mas mais do que isso - exactamente como sucede quando nos debruçamos sobre os casos da vida real - nem sempre estamos seguros de interpretar adequadamente os móbiles destas pessoas. Desse ponto de vista, o que move realmente Lila permanece-nos obscuro: no limite, a maldade pura? Uma espécie de pulsão maléfica? Uma fome desmesurada de poder, de controle sobre os outros? O medo? A loucura? Interrogamo-nos, perplexos, ou indignados, ou apiedados, mas incapazes de cortar relações com ela, de lhe virar costas, de a olhar como a uma inimiga, presos aliás do mesmo fascínio que Elena - Lenù, a narradora, que Lila sistematicamente espezinha e utiliza, Lenù que frequentemente lhe foge, mas regressa sempre à esfera da sua amiga peculiar. Tanto mais que - faz parte da densidade da personagem - Lila não se esgota no seu lado malévolo: «Quando queria, sabia ser calma, judiciosa [...] E era generosa

As motivações subterrâneas de Lila são-nos ainda mais opacas porque, sob o halo desse fascínio quase sacro, a narradora tende a exagerar os seus poderes e capacidades. Uma passagem, só: num relance, Lila viu o que a amiga temia: mas teria mesmo visto, será a sua perspicácia a tal ponto penetrante? Desconfiamos sempre de que a admiração e o fascínio que a narradora nutre por Lila a eleve a um estatuto quase sobrenatural. E essa ambiguidade é um dos pontos fortes deste bildungsroman, este fabuloso romance que nos torna testemunhas da transformação e formação das personagens ao longo de uma vida. A "formação" é aqui, também, de certo modo, muitas vezes a "revelação", a consolidação de indícios que não compreendêramos na sua infância ou na sua adolescência, mas acabam por se reunir numa verdade interior, que encontrará o tempo certo para aparecer, se sobrepor a outras, dominar a personagem: como em Nino, como em Alfonso.        

É um romance que atravessa vários decénios, obrigando-nos a ser também os leitores da História contemporânea da Itália, desde o fim da Guerra (e do fascismo, que ecoa e vibra, ali, ainda), passando pelas movimentações juvenis e estudantis dos anos 60, pelo fascínio esdrúxulo do terrorismo das Brigadas Vermelhas nos anos 70, pela imersão no fumo de discussões contínuas, nas elites, sobre o socialismo e o comunismo, o feminismo, o estruturalismo, o pós-modernismo, sobre o modo como a droga se expande, sobretudo nos bairros pobres, gerando lucros e morte a uma escala nova. E, por fim, um romance único acerca da força das origens sociais e culturais: se quiserem, a questão de perceber-se em que medida a instrução é realmente um instrumento que liberta dessas origens ou, pelo contrário, se estas são a nossa essência e a nossa armadilha, porventura mascaradas e recalcadas, mas sempre a um passo de retornarem em qualquer momento de crise: na luta de Lenù para ser diferente da mãe, para se tornar menos "napolitana", para se educar e refinar cortando amarras com as raízes (o dialecto, já mencionado, a moral retrógrada, os laços que constantemente reaparecem, interferindo no seu percurso), luta que é ao mesmo tempo provocada e travada por Lila, assistimos precisamente aos passos dessa hesitação e dessa insegurança, essa incerteza sobre quem se é, e de onde se é.

A identidade da autora - "Elena Ferrante", que ninguém sabe quem seja - tornou-se-me, com o tempo, uma questão irrelevante. Mas a discussão sobre se poderia até ser um homem, faz-me aclarar a resposta a um velho problema meu: sim, existe uma maneira de escrever feminina, identificável em si mesma, isto é, independentemente de quaisquer informações sobre o autor; sim, só uma mulher poderia escrever assim acerca das mulheres, mesmo quando as põe agressivamente em causa, numa espécie de pacto com a autenticidade das emoções, dos sentimentos, das ambições. E sim, esta forma não pode ser imitada nem copiada unicamente a partir do exterior. Donde a conclusão: "Elena Ferrante" é um pseudónimo que esconde, e descobre, uma mulher.