domingo, 8 de março de 2015

AFONSO REIS CABRAL: O MEU IRMÃO



     Tendemos a desconfiar do Prémio Leya. Mas deixem recordar que, nos últimos anos, o dito cujo revelou escritores como João Ricardo Pedro, Nuno Camarneiro ou Afonso Reis Cabral. Poderíamos interrogar-nos, portanto, sobre este primeiro preconceito.

     Suspeitamos de Afonso Reis Cabral. Que é demasiado jovem e que o primeiro romance de um garoto há-de ter falhas; que se a crítica o tem ultimamente elogiado é por complacência, ou por ser um descendente de Eça de Queirós. São um segundo e um terceiro preconceitos.

     O romance é, objectivamente, uma estreia, mas poderia não sê-lo, de tal forma nos espanta pela originalidade, está bem escrito, a história magistralmente concebida no seu todo e no desenvolvimento, testemunhando uma profundidade emocional incomum aos vinte e poucos anos. Ou incomum, ponto.

     Quando digo que está bem escrito, ao que me refiro é a uma linguagem muito bela e muito clara simultaneamente: aquilo que outros autores, nomeadamente eu próprio, nem sempre conseguem porque o excesso de preocupação estilística pode prejudicar a legibilidade: cria uma neblina artificial, que obriga a mais do que uma leitura e afugenta o leitor. É preciso ter-se realmente um grande nível como escritor para, sem abdicar do estilo, fazer com que este se não imponha e não ofusque, não seja um ademane ou um meio de amplificação, mas apenas o modo justo de exprimir, simples (mas enganadoramente simples, porventura), distinto, evidente: é de uma limpidez que eu invejo.

     A originalidade radica logo no tema. Esta estória sobre uma paixão trágica entre dois deficientes, que nunca resvala, nem por um instante, para a pieguice ou para o moralismo, nem se deixa confundir com uma tentativa [que seria também legítima] de compreeder a condição dos "portadores de deficiência", é assombrosa na sua intensidade e na sua crueza.

O narrador tem qualquer coisa de Humbert Humbert [o de Lolita]: distanciamo-nos do seu egoísmo, criticamos a sua perversão ética e psicológica, reprovamo-lo com todo o nosso ser, mas não vemos nele o vilão, o irredimível mau; só consigo apreender-lhe o amor pelo irmão - eu sei, um amor imperdoável na sua forma e nos seus motivos, desequilibrado, egoísta, perigoso, mas triste e desesperado; talvez por se tratar do narrador, em cuja mente entramos, cujo sofrimento conhecemos por dentro.

No seu desarmante despretensiosimo, Afonso Reis Cabral, em conversa [para espanto e quase indignação dos intelectuais que o entrevistavam] dizia que «foi escrevendo», «não tinha um esquema» ou um «plano prévio» do romance: bem, seja ou não sincero, o resultado é uma obra exigentemente organizada para um fim absolutamente inesperado - e olhai lá, que aqui fala o leitor treinado de policiais: um final cru, violento, tremendo, chocante, sublime.

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