segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

MARY ANN SHAFFER [& Annie Barrows]: A SOCIEDADE LITERÁRIA DA TARTE DE CASCA DE BATATA



Porque vem um livro ao nosso encontro?

Pode até suceder que venha. Mas não é necessariamente essa vinda esperada, bem-vinda, que justifica as leituras felizes. Existem livros ao encontro dos quais nós é que vamos, por uma nuvem de minúsculas
e imprevisíveis razões.

A Sociedade Literária da Tarte de Casca de Batata não preencheu nenhuma falta de que eu estivesse
antecipadamente consciente; não respondeu a nenhuma questão com que andasse a debater-me; para além do facto de um título sugestivo, que uma escritora minha desconhecida apontava, há algum tempo, no suplemento do jornal i, como porventura o melhor título de sempre, este romance não me procurava.

Na livraria, folheei-o durante o tempo suficiente para me aperceber de um pormenor, aliás, que me fez quase virar-lhe de uma vez as costas. O odioso género epistolar.

A data, o endereço,
De Juliet para Sidney:
Querido Sidney etc,

A data, o endereço,
De Sidney para Juliet:
Querida Juliet, etc.

O que me permite uma segunda conclusão: não há géneros nem estilos maçadores, ou datados ou inconvenientes. Consegue-se - ou não - o género justo para se contar uma certa história, criando o tom e a atmosfera que abrem - ou não - as portas ao leitor. O que mo revelou? Tendo trazido o livro, li-o em 2 dias: li-o sob um encantamento sem rugas, numa perplexidade doce, completamente absorvido, pela noite fora, sem sono ou cansaço, sem, durante esse tempo, outro mundo que não o que se me reconstituía no espírito.

As cartas valem por si próprias. Cada uma delas é fundamental. Pela simplicidade e clareza com que apresenta, como respectiva autora, cada uma das personagens, os motivos por que se escrevem, as perguntas que fazem à memória umas das outras, ou os factos que narram para responder a essas perguntas. Nenhuma das cartas está a mais como se se tratasse tão-só de usar esse expediente para acrescentar, artificialmente, uma informação de que o leitor carecesse a fim de não se perder. Cada uma delas tem o seu tempo, o seu ritmo, a sua razão. Cada uma nos cativa por si.  Mas simultaneamente, como é evidente, na sua interligação elas constroem uma maravilhosa composição polifónica, de um sentido de humor e de um optimismo que nos tocam e convertem.

Esta história não é uma história a que subjaza um "destino"; é, antes, uma história de acasos. Vejamos: que um longínquo agricultor tenha começado a corresponder-se com uma mulher que não conhece - e ignora que seja uma escritora -, porque ela possuíra, na adolescência, um livro que virá ter às mãos dele, que o lê devotadamente, é uma mera coincidência. Que mencione, na carta, a sua sociedade literária, é outra coincidência. A própria sociedade em causa surgira por uma mera (e deliciosa) coincidência: mascarar, aos olhos dos ocupantes nazis, a verdadeira razão por que um grupo se reunira uma noite. Por causa do combate clandestino contra o opressor? Oh, só num sentido muito lato. Na verdade, procurava-se esconder ao inimigo um porco, o qual proporcionaria um lauto, improvável [e não permitido] jantar.

Confesso a minha ignorância: não fazia a menor ideia de que uma parte de Inglaterra tinha sido ocupada por tropas nazis. Mas as Ilhas do Canal da Mancha, nomeadamente a ilha de Guernsey, foram efectivamente invadidas pelos alemães, que as isolaram procurando quebrar todo o fluxo de informação dos seus habitantes com Londres e o mundo. Mas nesta ilha ocorrera a reunião em torno do porco assado, que, para enganar os vigilantes soldados, se transformará em anódina tertúlia literária.

O que muda esta abundância de acasos em destino é a curiosidade, genuína, que a narração dos mesmos vai provocando na destinatária das cartas, algum tempo depois da guerra. É esse interesse pela revisitação do passado, que unirá pessoas que nada deixava prever que devessem vir a conhecer-se. É esse interesse levemente aturdido, a que se seguem as perguntas de quem está em face de um mistério muito cândido e muito belo, que obceca e já se não será capaz de  perder de vista. Portanto, nada há de inverosímil em que o espanto aqui funcione como o motor secreto desta ligação entre gente distante, pessoas heterogéneas, que se aproximarão e unirão de diversos modos.

Poderia dizer que é um romance sobre a importância dos livros, mas isso é tão óbvio que mais vale nem referir. A não ser que se acrescente este pormenor: o papel que os livros, ou certos livros, ou certos autores em particular, adquirem, em certas circunstâncias, mesmo entre os menos instruídos, os não eruditos, os pobres e os simples. E isto sem sombra de didactismo ou lições morais, num optimismo contagiante mas não politicamente correcto? É obra.        

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

EDWARD SAINT-AUBYN: DEIXA LÁ/ MÁS NOVAS





Os leitores de Anna Karenina não esquecem esta passagem: regressando da sua viagem à grande cidade [onde encontrara - casualmente - o homem por quem, sem saber, se apaixonara já], ela é esperada pelo marido na estação. Avista-o, por fim, envelhecido, com um porte ridículo, as orelhas muito grandes, como asas meio dobradas, sob um chapéu mal ajustado à cabeça.

Quem faz esta descrição? O narrador. Não há qualquer remissão para o pensamento de Anna Karenina, ou de algo que ela sussurrasse para si própria traduzindo directamente alguma repelência pelo homem que a aguarda. Mas, no entanto, não temos dúvidas: o que o narrador expõe é a visão de Anna, a sua frustração, a sua tristeza. Em A Mecânica da Ficção, James Wood recorre a este episódio para ilustrar o que designa por uma narração indirecta livre.

Em Deixa Lá, deparamos com esta figura levado a um grau particularmente sofisticado.
Uma mulher, Mrs. Melrose, meio embriagada, oculta-se no automóvel [seu único refúgio, longe do marido]; dali, já muito tarde na noite, incrédula, vê passar uma das convidadas em direcção à porta do parque da velha casa. Carrega uma mala e, por um momento, encarna simbolicamente a liberdade. Mais do que isso: a simplicidade do exercício dessa liberdade. Afinal, tudo se resumiria a uns quantos gestos elementares: uma pessoa faz a sua mala, dirige-se para a porta, e não olha para trás. Para a observadora, que há muitos anos se conformou com a sua condição, é uma revelação. Palavras do narrador: porém, palavras que expressam um ponto de vista determinado, obviamente o da mulher no carro; na sequência, damo-nos conta das dificuldades desta fuga. Não houve mudança de voz, nenhum hiato, nenhum fim de parágrafo. Mas, subtilmente, o ponto de vista passou a ser o de Debbie, a jovem que se ia embora. Onde, ao olhar exterior de uma mulher aprisionada, aquela saída parecia ser de uma simplicidade exemplar, existe afinal uma penosa odisseia: a mala que pesa de mais, os pés que se enterram, a indecisão sobre o que fazer, o arrependimento.

A leitura deste romance acerca da família Melrose - primeiro de cinco volumes que não deixam pedra sobre pedra - é inesquecível. Comparam Edward Saint-Aubyn a Oscar Wilde e Evelyn Waugh, e compreendo porquê. Mas não vi que o aproximassem de Proust ou de Nabokov, que são, curiosamente, as referências que de imediato encontro na sua busca comum de um subtil efeito de estranheza na escrita: o exercício deslumbrante da expressão que nos surpreende, a incomum imagem que introduz uma outra forma de olhar e entender, e não se consegue daquele modo sem se haver lido apaixonadamente Proust e Nabokov.

Porventura, uma obra escrita com esta perícia exigiria uma tradução menos tensa. Qualquer coisa na forma como se verteu o texto para português lhe acrescentou uma armadura formal, um tanto pesada e obsoleta. Mas transparece, incólume, palpitante, apesar disso, a agilidade do original, a leveza de palavras com que se se expõe a mais dura realidade.   

Este romance é de uma violência esmagadora.
A descrição dos actos do Dr. Melrose, a sua crueldade brutal, o seu sadismo e desprezo pela família - veja-se a violação de uma criança de 5 anos, seu próprio filho - é construída, paradoxalmente, com uma delicadeza e uma elegância estilísticas, que não encobrem, nem branqueiam o horror, mas o tornam um objecto de arte cuja fruição [se lhe podemos chamar assim] nunca pode ser indiferente: experienciamo-lo emotiva e dolorosamente. Crava-se-nos e fica a magoar. Não se pode contornar.

A Sextante editou os dois primeiros romances desta série num único volume. O primeiro parece-me muito melhor. Acerta-nos, fere-nos. O segundo, Más Novas, que salta para um Patrick já com 22 anos, no confronto com a morte do odioso pai, de quem vai buscar as cinzas, é menos interessante. A contínua vertigem de drogas e álcool a que se reduzem esses dias torna-se cansativa.

Em todo o caso, conto ansiosamente o tempo para a edição dos três restantes.         

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

HOPE, I HOPE



Blogues tão interessantes que eu descobri, mas, ao longo de 2013, fui paulatinamente deixando de ler. Espero conseguir reatar uma leitura que me era tão agradável.

Houve, porém, algo da ordem da revelação mística, no que diz respeito a livros e autores, e graças, precisamente, à luz de um blogue.

Falo de Au Plaisir de Dieu.
Falo de Jean d'Ormesson.

O resto foi praticamente espuma: mas atenção, porque nem toda a espuma é igual; há que nunca esquecer que também o passageiro, «o que vai morrer», é passível de uma medição. Para tudo existe uma escala.

Na escala do meu tempo, 2013 foi um ano tramado. Em quase tudo.

A esperança parece um daqueles dispositivos que a Apple introduz no seu hardware: indispensável, insubstituível, porém - deliberadamente - com uma duração limitada. Falha o dispositivo, e todo o aparelho se torna inútil.
Oxalá as falhas na minha esperança não indiquem que tenha de mandar-me todo para o lixo!

Um bom 2014.