sábado, 12 de outubro de 2013

MARGARET ATWOOD: CRÓNICA DE UMA SERVA



     Em certo editorial de uma revista de ficção científica, Isaac Asimov assinalava o que lhe parecia um equívoco na forma como, historicamente, as mulheres vieram conquistando a sua emancipação. O equívoco reside em que estas, tendo começado a estudar, a formar-se, ou a exercer uma profissão, ocupariam sempre territórios secundários, deixando para os homens os redutos fundamentais: se há já, na universidade, mais estudantes do sexo feminino do que do sexo masculino, são, tendencialmente, alunas de literatura, ou Direito, ou ciências humanas. Muito raramente das ciências exactas.

     Asimov procurava, com esta introdução, conduzir-nos para o que lhe interessava: o panorama da ficção científica e o progressivo surgimento de mulheres que se lhe dedicam. Se, para ele, principiar a haver autoras é, em si, um sinal óbvio de evolução e de emancipação, o problema repetir-se-ia: não encontramos autoras de pura ficção científica, mas de utopias poéticas; por outras palavras, não verdadeiras inventoras de ficções imaginadas a partir de um suporte de conhecimentos científicos, e sim criadoras de obras que devem mais ao fantástico do que à ciência.

     Não sei sequer se a argumentação de Asimov é ainda factualmente verdadeira; mas sempre a considerei falaciosa. Por que seria a narrativa estritamente científica superior à ficção fantástica? Por que haveria Ursula Le Guin de escrever sob a legitimidade da Física, da Teoria da Relatividade ou da Mecânica Quântica, se a obra que produziu é, na sua peculiaridade - feminina ou não -, tão completa, e complexa, e fascinante?

     The Handmaid's Tale, que eu li como Crónica de uma Serva, mas se intitula, na nova edição, A História de uma Serva, publicado por Margaret Atwood já nos anos oitenta,
é uma outra machadada na tese de Asimov.

O mecanismo, ou um dos mecanismos, brilhante e diria que inédito, é o do recurso à memória numa novela sobre o futuro, sendo o "passado" de que a protagonista se lembra, o nosso "hoje". [Vá, o "hoje" dos miudos norte-americanos]. Defred recorda-se do mundo e da vida da sua juventude, mas o mundo e a vida da sua juventude são-nos próximos, reconhecíveis, familiares: os bailes de estudantes, os campus universitários, ou os quarteirões suburbanos, calcorreados pelas bicicletas das crianças. No presente pós-revolucionário em que se situa e em que escreve (ou grava), tudo mudou. Drasticamente. Terrivelmente. O cliché adequado para designar este romance seria "distopia".

O outro mecanismo é o recurso à Bíblia: não só por causa do manancial de personagens, ícones e mitos que a constituem, e sempre foram uma fonte de inspiração e revisitação, mas também porque MA pretende conceber uma sociedade que replica macroscopicamente uma seita religiosa, e o Antigo Testamento oferece a atmosfera de sexo, violência e pavor - Saramago dixit - que criam o tom necessário.

A Bíblia está repleta de ideias e de imagens fortes, e a escolha de uma imagem inesquecível pode ser a essência de um romance provocador. A imagem é, aqui, esta, que MA evoca em epígrafe:

«Vendo pois Raquel que não dava filhos a Jacob,
teve Raquel inveja de sua irmã, e disse a Jacob: Dá-me filhos,
ou se não morro.

Então se acendeu a ira de Jacob contra Raquel,
e disse: Estou eu no lugar de Deus, que te impediu
o fruto de teu ventre?

E ela disse: Eis aqui a minha serva Bilha; entra a ela,
para que ela tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu assim
receba filhos por ela.»

É uma imagem incómoda e perturbadora: estamos, pois, numa sociedade de um futuro indeterminado, em que já praticamente se não procria, porque complexas transformações [«acidentes em centrais nucleares, fugas em arsenais de guerra química e biológica, abuso incontrolado de insecticidas químicos, herbicidas e outros produtos pulverizados»] tornaram estéril a maioria das mulheres e, das que conservam ainda o «dom» de conceber, nascem, frequentemente, seres com malformações; as «servas» são, agora, mulheres valiosas, que recuperam a função e o estatuto da serva bíblica Bilha: são fecundadas [em rituais que recriam e corporizam as palavras de Raquel], pelo esposo da senhora, sobre os joelhos desta. É um estatuto ambíguo: valiosas mas desprezadas, vítimas de
um despeito e de um ciúme de senhoras que, porém, precisam delas, instrumentos de sexo e procriação de que se abstrai o amor ou o desejo, isoladas, vigiadas.

Numa escrita paradoxalmente bela e crua - a escrita justa, diria - Margaret Atwood dá voz a esta serva, que as "tias" educam ["tias" denomina, aqui, uma função social, não uma relação familiar], compreensivas e ríspidas, de «aguilhões eléctricos pendurados com correias nos cintos de couro.» Mas esta serva, secretamente, deseja corpos, que contempla, quer amar e ser amada, tenta reencontrar amigas do seu passado, estabelecer laços. Desce pela memória, pergunta-se pelo marido e pela filha desaparecidos, imagina sequências múltiplas e alternativas do que poderá ter-lhes acontecido, e guarda-se para o que quer que venha. Guarda-se para um outro mundo. Guarda-se para a liberdade. Que importa que não venha a haver realmente um mundo diferente? que importa que nunca chegue realmente a libertar-se, quem cultivou a esperança e, no fundo de si, se guardou?          

  

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

JOSEPH ROTH: A MARCHA DE RADETZKY



Fala-se em "Roth", e é natural que nos ocorra imediatamente "Philip". [De que, aliás, gosto muito: A Pastoral Americana e sobretudo O Complexo de Portnoy são obras maiores.]

A Lebre com Olhos de Âmbar foi o livro que me apresentou a Joseph: refere este autor abundantemente; em A Marcha de Radetzky, Joseph Roth, segundo nos conta o autor de A Lebre, teria mencionado o Banco Ephrussi como um dos ícones de Viena [está correcto, já confirmei]; suponho [e só posso "supor", uma vez que ainda não cheguei à passagem em causa] que também aponta, sarcasticamente, algum ou alguns dos Ephrussi, judeus ostensivamente ricos num Império Austro-Húngaro em que principia a alastrar o odor do anti-semitismo.

A Marcha de Radeztsky é, já de si, um título soberbo. Remete para a composição de Strauss, como um fio que permanentemente julgamos escutar ao longo de todo o romance, e que o autor evoca na execução da Banda de um regimento, com «ásperos tambores» rufando, «doces flautas» assobiando, «suaves címbalos» ressoando. Ora deliciem-se: «Aparecia no rosto de todos os ouvintes um sorriso de agrado e de enlevo, e nas pernas formigava-lhes o sangue. Ainda estavam parados e já pensavam que iam marchar. As rapariguinhas sustinham a respiração e entreabriam os lábios. Os homens mais maduros baixavam a cabeça e recordavam os tempos da tropa. As senhoras de idade estavam sentadas no parque vizinho, e tremiam-lhes as pequeninas cabeças grisalhas. E era Verão

Citando esta descrição, julgo captar uma espécie de génio comum à escrita de diversos autores deste tempo, desta cultura, desta língua. A aliança entre um penetrante espírito de observação do mais subtil pormenor [um modo, um tique] e o poder da explicação da lógica desse pormenor, como se sob um gesto, mesmo muito simples, fosse possível a revelação de um segredo, um propósito inconsciente, um sentido oculto. «Por vezes, o comissário distrital balançava um pouco a bengala, era como que um sinal exterior de uma exuberância que sabe guardar os limites.» Nas mãos dos espíritos mais sensíveis e talentosos, esta aliança entre a observação daquilo em que habitualmente se não repara, e a revelação do seu sentido secreto, oferece achados de uma fineza muito bela e muito surpreendente, intuições que nos flecham e ficam vibrando.

A Marcha de Radetzky, de certa maneira, ou melhor, à sua maneira, é também a história de uma família. Mas, diferentemente de Au Plaisir de Dieu ou de A Lebre de Olhos de Âmbar, esta família, os Trotta, tem uma fundação relativamente recente, e não se prolonga numa árvore de múltiplas ramificações. Sabemos pouco das mulheres: saem rapidamente de cena, pálidas e doentes, para deixar que o palco seja ocupado por gerações de homens austeros, solitários, que só episodicamente se encontram em face das suas próprias emoções, vividas como perturbação, como se as não compreendessem ou fossem um erro a liquidar.

O avô, um herói da batalha de Solferino, durante a qual salvou da morte o Imperador, não se reconhece na hiperbólica narração do seu acto tal como a lê num livro patriótico para adolescentes; indigna-se; protesta; escreve, pede uma audiência com o Imperador; de facto, este início muito simples marca um irrecuperável desnível entre a ascensão da família, sob a protecção do Imperador, e a verdade pura. É este desfasamento entre uma sóbria austeridade, que estabelece os limites do verdadeiro, e o rumor do excessivo, a emoção e o sentimento, de que se desconfia sempre, a lógica em que esta família se reconhece e reconstitui, geração após geração.

É sempre, pois, em face dos sentimentos, recalcados que retornam persistente e inesperadamente, que cada um destes homens se sente em desequilíbrio e em queda: que significa ser pai, ou ser filho, para além de um dever? como comportar-me ante o amor, ou a morte de uma amante, ou a piedade pelo marido da amante, a quem devo apresentar condolências? ou ante as emoções que me assaltam quando revejo, agora como um pintor bêbedo e sem recursos, que, inconveniente, me persegue, pedindo-me solidariedade, pelas ruas - aquele que foi o único amigo da juventude?        

Irónico, sensível, de uma delicadeza pungente, é um romance que se desenha sob a contínua ameaça do absurdo: o pavoroso reconhecimento da falibilidade do sentido, da racionalidade, da ordem. Que outra coisa senão isto vislumbrou Freud?

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

EDMUND DE WAAL: A LEBRE DE OLHOS DE ÂMBAR



Parece-me uma coincidência espantosa que, no meu aniversário [ainda eu andava lendo Au Plaisir de Dieu] um grupo de amigas me tivesse oferecido A Lebre de Olhos de Âmbar. Porque, sendo uma obra também sobre a História de uma família, esquematizada na página inicial, tal como em Au Plaisir de Dieu, com a sua árvore genealógica, e abarcando o mesmo período (a transição do século XIX para o XX), mostra porém um outro ponto de vista: não o da aristocracia, mas o da burguesia; aliás o de uma burguesia muito rica, judaica, ligada sobretudo à Alta Finança, à Indústria ou à Diplomacia.

Proust é, mais uma vez, uma personagem fundamental. Vemo-lo ansioso por ser recebido nos salões da moda, privando com princesas, duquesas ou arquiduques. Por que interessa Proust ao autor? Entre outras
razões, por causa de um antepassado seu. Charles Ephrussi:  este, que não era filho primogénito e, nessa medida, não fora designado
como sucessor do pai na carreira, pôde usufruir de uma formação muito livre, ao sabor dos seus gostos e entusiamos. Tornou-se um mecenas e um protector de pintores, nos alvores do impressionismo, ainda mal visto e mal recebido; Degas e, sobretudo, Renoir não são poupados: assistimos ao espectáculo pouco dignificante da sua mesquinhez e da sua ingratidão, do seu mercantilismo, de invejas, ressentimentos e de um anti-semitismo que transparece sob a aceitação da ajuda do judeu Charles; ele viria a ser, entretanto, o director influente de um jornal parisiense, um historiador e um crítico de Arte. Em síntese: eis Swann, ou um dos mais óbvios inspiradores da personagem de Marcel Proust.

O fio desta biografia é de uma simplicidade desarmante: de Waal, apresentado na badana como um «prestigiado oleiro inglês» e «professor de cerâmica» numa universidade, pesquisa, fascinado, a colecção de netsuke, que teria pertencido a Charles Ephrussi; os netsuke são bonecos japoneses, tais como: «uma raposa de madeira com olhos incrustados/uma serpente enroscada sobre uma folha de lótus, em marfim/ uma lebre e a lua, em buxo», etc, etc, etc. Que aconteceu a esta colecção, iniciada num período em que, no Ocidente, se descobria, e comprava, e ostentava tudo quanto proviesse do enigmático Japão? Nada mais linear do que isto. A busca do paradeiro dos netsuke é o pretexto para a revisitação do passado da família, a sua aculturação, o seu poder mas, simultaneamente, a sombra de um inextirpável preconceito, apesar - ou por causa, precisamente - da sua imensa fortuna, com todos os sinais de uma vida absurdamente faustosa.

Nesta obra, a condição judaica é central. Em França ou no Império Austro-Húngaro, trata-se de compreender precisamente o que terá significado a assimilação: «Apercebo-me de que não compreendo o que significa pertencer a uma família judaica assimilada, aculturada. Simplesmente não compreendo. Sei o que não faziam: não iam nunca à sinagoga, mas os seus nascimentos e casamentos estão registados no Rabinato. Sei que pagavam as suas quotas à Israelitissche Kultusgemeinde e contribuíam para obras sociais judaicas. [...] O sionismo não parecia merecer-lhes muita simpatia

Por algum inexplicável motivo, tomo esta obra - tal como Au Plaisir de Dieu - como uma peça de ficção; um romance que assume a forma da biografia. Estou certamente equivocado e, aliás, o livro apresenta caricaturas - por exemplo a de Jules Laforgue, que teria sido secretário de Charles Ephrussi -, plantas dos locais, fotografias de fachadas dos prédios ou dos palácios onde as sucessivas gerações habitaram - em Paris, em Viena -, retratos destas personagens. É talvez, então, o talento de Waal para narrar, que, à exposição de factos históricos, acrescenta um halo romanesco, uma secreta e encantadora sensação de inverosimilhança, a mesma que atravessa, aliás os melhores romances.