sexta-feira, 30 de agosto de 2013

HENRI TROYAT: OS EYGLETIÈRE



     Um romance que tome por objecto certa família, sejam os Maias, os Buddenbrook ou os Eygletière, lê-se como se prestássemos atenção a um mapa desdobrado sobre a mesa. É possível seguirmos, com o dedo, um curto percurso, que seria uma trama principal, ao centro. Mas a Sul, a Norte, a Sudoeste, a Nordeste, achamos outros centros de gravidade, outros pontos a visitar, um rio, uma vila, pais, filhos, amantes, primos; distantes, mas aproximáveis, segundo redes geográficas que nós próprios vamos decidindo e traçando, para além das pré-fixadas.

Os Eygletière, do prolífico Henri Troyat, introduz-nos no seio de uma família em que as fissuras estão, em certa medida, encobertas pelo pulso respeitado de Philippe, segundo o modelo tradicional da autoridade paterna. Encontramo-nos, portanto, ainda a muitos anos da eclosão de Maio de 68, pondo em causa, raivosamente, as instituições e os valores em que se reconhecia a burguesia do pós-Guerra. No entanto, as fissuras estão já por todo o lado; não declaradamente nem em jeito de rebelião juvenil, mas por todo o lado: Philippe é casado em segundas núpcias [como então se dizia] com uma mulher mais jovem, Carole. A mãe de seus filhos «abandonara-os para vir ainda a ser feliz». Aqueles envergonham-se um pouco da madame Lucie, pela decadência, social e de classe, que, aos olhos deles, representa a recomposição da sua vida, visto que «a fuga» se dera por causa da paixão por um vendedor simpático e amistoso, aliás encantador, mas sem expectativas. A irmã de Philippe, Madeleine, a tia Madou, que tomou conta das crianças aquando do «abandono», instalou-se entretanto numa peculiar vila, a alguns quilómetros de Paris: a sua relação com Philippe é tensa, carregada de ressentimentos e amuos. Há uma distância a cultivar, indispensavelmente, de forma a que aqueles que de algum modo estiveram demasiado presentes na nossa vida, e de cujo auxílio já dependemos, não se tornem mais tarde intrusos.

Todos os romances de Troyat, que conheço, são exímios neste desenho de teias equívocas: na representação de relações em que não se distingue já entre o que é ajudar, e o que é mandar, entre o que é sacrificarmo-nos pelo outro, e o que é criar nele uma dependência, entre o amor e o poder.

Jean-Marc, Françoise e Daniel, os 3 filhos de Philippe, entre a admiração pelo pai (constantemente torpedeada porém), o amor com um travo de embaraço pela mãe, a aceitação reservada da madrasta, a saudade da tia, no caldo da busca da sua autonomia, são os meios evidentes da decomposição surda, mais triste do que feroz, daquela família.

Conhecemos o penetrante incipit de Ana Karenina: «Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.» Por outras palavras, a felicidade é sem história. Os Eygletière oferecem-nos o espectáculo impudico de uma família que não pode ser feliz - mas corresponde o conceito de "felicidade familiar" a alguma coisa? - porque, precisamente, os filhos nunca se limitam a continuar vias abertas; procuram a própria felicidade; um caminho pessoal, chamemos-lhe, redutoramente, egoísta, que em todo o caso implica sempre rupturas. Jean-Marc, Françoise e Daniel ilustram os tremendos cortes que hão-de constituir o tríplice motor deste romance.

Os cortes protagonizados por Jean-Marc são ambos inomináveis. Não por pudor da minha parte, mas porque não faria sentido antecipá-los à leitura do romance; Daniel será um inesperado pai, aos dezanove anos; também, para já, basta isto. Françoise, por sua vez, casar-se-á com Alexandre Kozlov, russo, professor de russo, muito mais velho do que ela.

Troyat é um apaixonado e um estudioso da cultura russa. Basta termos presentes as suas obras sobre o quotidiano na Rússia ao tempo do último czar, ou sobre Ivan, oTerrível, ou sobre Dostoievski: assim, Kozlov é, nas suas mãos, a brilhante personagem através de que se expõe o combate entre o espírito parisiense burguês dos anos 50, e a alma russa, ou pelo menos a fibra dessa alma que produziu os estudantes revolucionários, os idealistas impiedosos, ou esses niilistas, entre uma inocência quase infantil, que o próprio Dostoievski tão bem retratara [confira-se, por exemplo, O Idiota] e uma radical incapacidade para se comover com a realidade; para Kozlov, tudo se resume a um exercício intelectual, uma experiência irónica e distante - até a sua relação com Françoise e, principalmente, a «farsa» do casamento com ela. Esta relação e esta personagem, que tanto me interessaram, ilustram o que eu pretendia dizer no primeiro parágrafo. São um percurso, entre outros, com uma autonomia própria, algures no mapa desdobrado sobre a mesa.

Teresa, autora do blogue A Gota de Ran Tan Plan, que aí  escreveu irresistivelmente sobre Os Eygletière, foi, é claro, quem me fez partir à procura deste romance, cujo terceiro e último volume, o melhor dos três, se denomina A Ruína: esse La Malandre, de que vos mostro a belíssima capa do original francês. [Na mesma capa aliá, também se vê o MG - lindo! - que terá um papel fulcral no fim do romance.] Mas, uma vez mais, pergunto-me: pode haver uma história acerca de uma família, que não trate a decadência desta, o palco fascinante, para o voyeur que um leitor a seu modo é, o palco fascinante justamente de uma ruína? Em um comentário, a Teresa advertia-me contra uma outra ruína a que a tradução portuguesa esteve sujeita. A total inépcia do revisor, se é que existiu algum.

É verdade que Os Eygletière merecia um acompanhamento sério. Dito isto, é igualmente verdade que nem esse crime de lesa-tradução conseguiu ensombrar o brilhantismo da obra.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

JOSEPH CONRAD: ACASO





Em Conrad aceito tudo, como sucede com certos e raros amigos: o que nos oferecem é tanto, tão bom e a tal ponto essencial, que as suas obsessões, mesmo as que mais nos perturbam, as suas falhas ou incompetências particulares, se tornam de facto irrelevantes. No Grande Conrad, suporto os marinheiros tisnados e a persistência do mar, os diálogos demasiado pomposos, preenchidos com termos complexos e filosofias subtis de mais para que realmente os imaginemos na boca de lobos do mar, diante de um copo, numa taberna. Mais: suporto as extensas narrações impostas pela voz de um único homem, o narrador, em geral um marinheiro, que conta certa história a algum comparsa, numa fala perfeita, literária - irrealista.

O que nos oferece, em contrapartida? Podemos principiar pela categoria «descrições». Não conheço igual. Como se, para nos
apresentar uma rua, um bar, uma casa, um rosto, um vestuário, fosse sempre possível, mais do que somar características, achar a frase inesperadamente justa, que nos deleita e põe em face de uma essência.

Lembro-me da altura em que uma amiga ansiava por me fazer aceitar Isabel Allende. Bem. Eu gosto de Isabel Allende, e considero A Casa dos Espíritos um romance estimável. O primeiro problema é que não estávamos a falar de A Casa dos Espíritos, e sim de um outro seu livro, menoríssimo; o segundo problema é que, ao tempo, andava eu lendo Conrad: Nostromo. Qualquer comparação parecia fatal para Isabel Allende. Em Nostromo encontrava tudo o que lhe faltava: a elegância do estilo, a sublimidade de ideias que se exprimem em fórmulas inesquecíveis, o sentido do paradoxo, o prazer da ironia, o detalhe nas descrições. Isto ao longo de uma história contada sem qualquer pressa, detendo-se no pormenor, no espaço, nos modos e nos caracteres das personagens. A escrita de Allende é democrática: uma sua pulsão tende para a banalidade. Mesmo no melhor, nunca será óptima, embora a considere frequentemente boa. A escrita de Joseph Conrad, porém, é aristocrática. Cultiva um gosto pelo raro e pelo exigente, que faz dela propriamente não-massificável.

Deixem-me ilustrar com dois exemplos de Acaso.

«O homem sentava-se a uma escrivaninha de madeira, com embutidos, que parecia uma peça rara de museu; a cadeira oval tinha um espaldar alto, de talha, e estofo de tapeçaria já desbotado; e o confronto destes objectos com o dispendioso charuto havano escuro, que ele incessantemente fazia passar do meio da boca para o canto esquerdo, davam-lhe uma aparência ordinária e desagradável

Ou então:

«Vestia de preto. Lembro-me que trazia uma gravata de cetim preto, larga, lisa, na qual se via um alfinete com um camafeu; o colarinho dele era pequeno e voltado. O cabelo descolorido e sedoso, ligeiramente encaracolado sobre as orelhas. Tinha as faces arredondadas, sem barba e, aparentemente, macias. Andava muito direito, mas com passo miudinho e as suas falas eram doces e em tom comedido

Acaso  é um livro a que chego por mão de uma recomendação de minha prima, que começa, primeiramente, por discordar da simplicidade da tradução, para português, do título: "Chance" é "Acaso", sim,
mas também "Sorte", "Oportunidade". «Porventura», exagera já ela, «até "Destino".»

A prima põe-me ante um tema que me alicia: a história de uma órfã [descobrirei por que razão, na enigmática fórmula de uma das personagens, se trata de uma «órfã até certo ponto»...], educada por uma terrível preceptora e acolhida, aos dezasseis anos, por uma família boçal, bondosa e irritante. Pergunto-lhe: «O quê!? Um romance de Conrad sem mar nem marinheiros!?» Responde-me: «Marinheiros não faltam. Mas é uma obra de que gosto imenso.»

terça-feira, 20 de agosto de 2013

DANTE & CLARA PINTO CORREIA


Clara Pinto Correia produziu um livro cujo título é No Meio do Nosso Caminho.
Percebe-se, portanto, a piscadela de olho aos leitores cultos, que aliás confirmo numa badana do livro:

«"No meio do nosso caminho", como ficou escrito desde que Dante escreveu a Divina Comédia, é a passagem pelo purgatório.»

Lamento imenso ter de corrigir. Na verdade, como sabem todos quantos leram a Divina Comédia, a afirmação está errada. Esta metáfora de um verso inicial da obra nada tem rigorosamente que ver com o purgatório.

Pelos vistos, em matéria de cultura literária não existem apenas cultos e incultos.
Há um perigosíssimo "meio caminho", de que resultam tremendos dislates. [Claro que, não existindo um grau absoluto do ser-se culto, a meio caminho estaremos, num certo sentido, todos nós. Mas não é à aprendizagem e ao aperfeiçoamento que me refiro. É ao meio caminho do "dar-se ares"; do fingimento e da aparência. De fazer crer que se leu o que se não leu, se viu o que se não viu, se ouviu o que se não ouviu. De não ter efectivamente experimentado algo, não resistindo a exibir as suas marcas, com a familiaridade dos tolos.]

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

JOËL DICKER: A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT



Sou um fanático do género policial. Bastaria, quase, esta introdução, para explicar por que motivo alguma antena em mim vibrou quando ouvi falar de um romance de cerca de setecentas páginas sobre um crime, e que, no entanto, «se lê compulsivamente», «sem interrupções».

Por outro lado, Joël Dicker, o autor, um jovem político suíço, também me pareceu digno de atenção. Questionado sobre se este livro, que já era best-seller, oferecia «tanta intensidade» [ou qualquer expressão no estilo] como a trilogia Millenium, de Stieg Larsson, retorquiu que não a conhecia, propondo uma matriz alternativa: nada menos do que Nabokov e Marguerite Duras. Pelo menos esses, que me lembre. Algo do meu habitual cepticismo torceu qualquer coisa como um nariz. Mas disse de mim para mim: «Tenho de ver isto!»

Há um outro romance policial de setecentas páginas, mas realmente muito bom: A História Secreta, de Donna Tart. É um clássico de intriga e cultura, onde, em cada página, pressentimos a presença de Sófocles, Dostoievski, Hitchkock. Dar-se-ia o caso de A Verdade sobre o Caso Harry Quebert ser um seu parente tardio, um irmão vindo muitos anos mais tarde, um primo, um sobrinho?


Desse ponto de vista, desilude. As referências do autor a Nabokov e a Duras não significam senão: «Eis uma história que ousa tocar um tema tabu: desenterra, trinta anos volvidos, a paixão que um aspirante a escritor teve por uma ninfeta de 15 anos (assassinada, um pouco à maneira de Laura Palmer: aldeia superficialmente pacata ocultando terríveis segredos, remember?)»
Na perspectiva de Humbert Humbert, uma miúda de 15 anos seria mais uma idosa do que uma ninfeta, mas adiante...; por outro lado, o grande segredo do romance, mais do que: «Quem matou Nola?», é: «Quem realmente fez o que todos atribuíam a outrem?» Fiquemos assim: mais clareza equivaleria, porventura, a estragar de antemão o que o leitor verá por si. Todavia, nesse ponto, na forma como se engana o leitor acerca de quem fez o que se pensou que teria sido obviamente feito por quem o apregoa, meus amigos, topo a referência secreta, oculta, a obra basilar e o autor a que se vai beber. Pierre Siniac. O actualmente desconhecido Siniac, autor de um policial que é, esse sim, imperdível, embora não esteja traduzido para português:  Ferdinaud Céline. E, aí, o "Céline" do título está longe de ser uma referência gratuita.

Porém, isto interessa pouco. Seria como desvendar a fórmula da coca-cola, percebendo que onde garantem existir "x" só se encontra "y", e onde esperariam "a", tropeçam em "b"; não altera o facto. O facto é o sabor: o tal sabor que eu odeio mas, inegavelmente, se entranha, e não conseguimos que não vicie os nossos filhos a partir dos 7, 8 anos, por muito que os procuremos manter na ignorância. Harry Quebert é, por fim, também isto. Um romance que se lê de respiração suspensa, cavalgando os capítulos pela madrugada adentro, sem vestígios de sono, e cujas revelações surpreendem mesmo, de maneira que perdoamos a fragilidade dos diálogos; ou a evidência da pouca qualidade de trechos «citados» como sendo passagens da obra imorredoira que o escritor em crise, sob um estado de paixão pela rapariguinha, teria, por fim, conseguido escrever e publicar.    

terça-feira, 13 de agosto de 2013

ALBERTO ONGARO: A SOMBRA HABITADA



As pessoas pertencem a cidades. Pode ser-se de uma cidade que nunca se visitou, e viver-se para um dia a ela chegar. Um mito, uma Meca, uma eterna ligação platónica. Noutros casos, esteve-se aí uma vez, há muito, e o desejo de retornar é também um desejo de recuperação de certo momento perfeito. Ou então, revisita-se constantemente, sem nunca lhe esgotar a Alma.

Neste sentido de pertença, pertenço a Paris. Sinto quase embaraço em o confessar, entre tantas outras e maravilhosas possibilidades, muitas das quais também conheci; mas Paris completa-me como nenhum lugar mais no mundo. Já a vi pujante, correspondendo aos, e superando os, meus sonhos e anseios mais remotos, e já a vi envelhecida e degradada, com tristes e inesperados vestígios de desleixo; mas, na essência, nada mudou. Qualquer coisa no mais fundo de mim tem a forma de um Dâmaso ou de um Raposão. Paris será sempre aonde regressarei.

Isto dito, podem compreender por que razão A Sombra Habitada, de Ongaro, é um romance que me ocupa de imediato. Paris é o seu habitat. Usar-se-ia facilmente, aliás, este livro lindíssimo como um guia: todas as ruas, o jardim, os cafés, as praças, o rio, com as duas margens tão dissemelhantes, se nos expõem diante dos olhos ou da memória, com uma vivacidade e uma limpidez fulgurantes. Mas mais do que isso. É também uma viagem no tempo, o que com esta leitura se iniciará: o protagonista depara-se, de súbito, numa exposição de fotografia, com a foto, captada nos anos cinquenta, de uma rapariga que ele reconhece imediatamente - sentada a uma mesa da esplanada de um café, em Paris, na companhia de um jovem, cujo rosto permanece encoberto pelos cabelos dela. Aproximam-se para um beijo, ou beijam-se. É tudo. Em Londres, onde vive agora e se tornou um próspero negociante de Arte africana, o narrador e protagonista não resiste a enfrentar este sinal, este eco, esta sombra do passado, que é uma mera fotografia.

«Enfrentar», porque a sombra é uma sombra habitada, uma vez que as figuras, de duas dimensões, a preto e branco, constituem o registo de pessoas que terão provavelmente continuado a existir para além do instante fixado; de maneira que, mais do que evocar o passado, aqueles traços contêm um enigma e uma interrogação em relação ao futuro. Quem era aquele jovem, de sapatos americanos, à moda nos meados da década, beijando a rapariga que Alberto reconhece como a sua fugaz e inesquecível namorada de então? E, sobretudo, porque lhe fugiu ela? E em que se terá tornado?

Já entenderam o essencial: regressando a Paris, lutando para identificar os sinais que fazem a fotografia falar [um caderno sobre a mesa dos amantes; um objecto pousado numa cadeira; um homem, calvo, que ri, pegando, pela mão, numa criança que chora; um cão; alguém de costas], o narrador penetra connosco numa cidade que é uma coisa mental, histórica, mítica: Paris em 1958, como uma sombra habitada por Sartre e Simone de Beauvoir, sentados não muito longe, sons de jazz em pequenos clubes, à noite, e sobretudo Gérard Philipe, o ícone de todos os jovens, aquele cujos gestos uma geração inteira de rapazes franceses copiou, e cuja morte deixou órfã.

É, portanto, para mim, e por tudo isto, uma obra irrecusável, inevitável. Uma oportunidade que me encontra receptivo. Desenhada no subtil e sugestivo limiar de um romance policial, em que, efectivamente, se transformará, A Sombra Habitada evolui com uma encantadora imprevisibilidade, recusando todas as coincidências, desmontando todas as soluções fáceis, matando qualquer breve suspeita de algum deus ex-machina que tudo viesse resolver...                 

domingo, 11 de agosto de 2013

PLUTARCO: VIDAS PARALELAS



Da mesma maneira que não sou um leitor que se extasie com livros de viagens [prefiro viajar], também não serei um entusiasta de biografias. Houve excepções marcantes, é claro; mas o problema das biografias é que tende a existir, nelas, um distanciamento académico, uma lucidez de pesquisa, que perturbam a minha obsessiva exigência perante o conhecimento do passado. Ou bem que as coisas não terão ocorrido em rigor como se descrevem - até porque o autor poderia sem dúvida ter estudado as situações, mas não leu as emoções ou os pensamentos, nem ouviu certamente as alegadas palavras -, e nesse caso porque se não assume que se trata de um romance histórico? Ou bem que é um romance, mas por que se há-de fazê-lo então passar por História?

O autor de que mais suspeito - mas, obviamente, aquele que mais aprecio - é Stefan Zweig. O seu Maria Antonieta é brilhante, mas falso! José Fouché é extraordinário, mas incredível. Zweig é um romancista dotado e um investigador com excesso de zelo da fantasia.

O que me delicia em Plutarco é, em primeiro lugar, a proximidade cultural em relação aos mundos que vai expondo em paralelo, sob a forma de uma personalidade grega e de uma romana, de cada vez [por exemplo, Alexandre e Júlio César]; percebemos que há um diferimento entre estes e o autor, mas não no que respeita à cultura: Plutarco fala das referências destes homens, veja-se os deuses, com uma familiaridade e uma inocência que não podem deixar de nos tocar. Em segundo lugar, o seu programa: são homens de que a História tomou conta. Os seus feitos tornaram-se sobejamente conhecidos: libertaram-se já da mortalidade. Não lhe interessa pois, repetir o que está comummente estabelecido, mas sondar aquilo que Alberto Ongaro, em um lindíssimo título, designava por a "sombra habitada": nos minúsculos gestos, nas manias quotidianas, em atitudes ou actos olvidáveis, acedemos aos traços que mais profundamente compõem o homem. É evidente que, nos Grandes Homens que Plutarco apresenta paralelamente, os feitos estão sempre próximos, cruzam-se constantemente com os defeitos. Mas não é interessante imaginarmos Júlio César como o homem que, para além da sua vontade férrea, da sua perspicácia militar e política, estava manchado por um excesso de vaidade, notória (como teria escrito Cícero) pelo cuidado com a sua cabeleira, e uma certa maneira, quase um tique, de coçar os cabelos com um único dedo? [Pensando melhor, "cabeleira" será claramente uma hipérbole, porque sabemos que César se sentia incomodadíssimo com a sua prematura e rápida queda de cabelo; onde li, aliás, que foi ele o inventor do penteado que, para disfarçar a calvície, puxa, da esquerda para direita, os parcos fios capilares, "cobrindo", assim, o cimo da cabeça?]

No caso de «Júlio César», há ainda a gratificação de reconhecermos a leitura que terá sido tão inspiradora para Shakespeare, quando quis escrever o seu Júlio César. Está lá tudo: as sucessivas recusas, por César, da coroa que António lhe oferecia nas Lupercais; a sua reacção combativa contra os que procuravam matá-lo, até ao momento em que reconheceu Bruto e desistiu de lutar; ou o seu sangue encharcando a gigantesca estátua de Pompeu.

Iniciei agora a leitura de «António», que Plutarco contrapõe a «Demétrio»; meu primo, que acaba de visitar Portugal, vinha entusiasmado com o biógrafo. Não demorei muito tempo a compreender por que razão.      

sábado, 3 de agosto de 2013

HÁ SEMPRE UM DÂMASO CÂNDIDO SALCEDE NUMA ESQUINA PERTO DE SI



Camões, Pessoa e todo o seu drama em gente. Eça, Camilo. Alguma coisa de Saramago. E Gonçalo M. Tavares. [Embora o último seja muito novo, muito recente, e possa parecer precipitação minha incluí-lo; mas, enfim, a considerar que, dos novíssimos escritores, já poderia propor algum, não tenho dúvidas de que seria GMT.] Se não os vejo como deuses, encaro-os como o estofo da poesia e da literatura em língua portuguesa.

Neste  estatuto, há lugar para outros tantos, entre os quais muitos escritores brasileiros que não me dei ao trabalho de mencionar. A minha paixão não se concentra nos referidos, numa relação de exclusividade. Falo destes, porque são mais universal e inequivocamente aqueles sem os quais o português literário seria, de certeza, outra coisa qualquer.

Com a minha longa introdução, procuro que se não enganem acerca das intenções dos argumentos que usarei. Não há deuses. Querer continuar-se Os Maias não me parece, portanto, um acto de profanação. Só mesmo um gesto disparatado e ridículo.

O Expresso (jornal, aliás, cuja revista-cartaz, dirigida por Pedro Mexia, degusto, regularmente, com prazer e proveito) convidou José Luís Peixoto e José Eduardo Agualusa, Mário Zambujal (e a que título Mário Zambujal?) e José Rentes de Carvalho, Gonçalo M. Tavares e Clara Ferreira Alves (e porquê Clara Ferreira Alves?) para prosseguirem Os Maias. Pode ter sido uma ideia de algum senhor do marketing. Muito baixinho e com demasiada energia, ao jeito destes últimos assessores do governo de P. P. Coelho, tão satisfeitos com o seu poderzinho, benza-os Deus! No fundo, um Dâmaso Salcede do Portugal do século XXI (que, naturalmente, pouco mudou em relação ao Portugal de Eça). Mas os escritores convidados prestaram-se a isso!? Não os fez estremecer, não, repito, o pavor do sacrilégio, mas o receio do ridículo?

Os Maias não precisa de prolongamento. Eis o ponto. Queiram seguir-me: basta ler-se o "início da continuação", pelo punho de José Luís Peixoto, para nos apercebermos da vertiginosa extensão da tonteria e do equívoco. Ora vejam: «Ainda o apanharam!» Ora abóboras! Com um só período, escangalha-se o fim, sabiamente aberto, que Eça de Queirós carregara de uma subtil ironia, de tristeza e cepticismo, de um conformismo nervoso e eufórico, de um quasi-optimismo melancólico, num paradoxo em que o cómico alivia, mas não apaga o trágico. Faz-se dele um princípio obtuso: «Ainda o apanharam» - e seguem por aí fora.

Julgava-se homenagear a sua referência maior? Isso é que é trágico, menino, isto é que é trágico.

EZRA POUND: NIGHT LITANY [DEDICADO A VENEZA.]




Oh God what great kindness
have we done in times past
and forgotten it, that thou
givest this wonder unto us
o God of waters?

Oh God of the night
what great sorrow
cometh unto us, that thou
thus repayest us before
the time of its coming?