terça-feira, 23 de julho de 2013

ROMAIN GARY: A PROMESSA




«Acabou-se. A praia de Big Sur está deserta e deixo-me ficar deitado na areia, no mesmo sítio onde caí. A bruma esbate as coisas; nem um mastro no horizonte; num rochedo em frente de mim, milhares de aves; noutro uma família de focas: luzidio e devotado, o pai emerge incansavelmente das vagas com um peixe na boca. As andorinhas-do-mar aterram às vezes tão próximo que contenho a respiração e os meus velhos gostos despertam: pouco falta para que elas venham poisar na minha face, aninhar-se-me no pescoço, nos braços, e recobrir-me completamente... Aos quarenta e quatro anos continuo a sonhar com uma espécie de ternura essencial

Sei que este início sobreviverá, como um pai-foca, incansável e devotado, a milhares de páginas dos romances que desejo poder vir ainda a ler. Cria um espaço próprio em nós, não é verdade? Torna insípido quase tudo o que lemos antes, e, posso adivinhar, muito do que esteja para vir. Por que interrompo a citação? Por que não continuo simplesmente citando esta reunião sagrada entre as visões do seu passado, e as frases, de uma beleza dolorosa, com que Romain Gary no-lo oferece nesta obra?

[Uso uma tradução, já com alguns anos, de Augusto Abelaira, que se chama "A Promessa", e não "Promessa ao Amanhecer"; o título original é "La Promesse de l'Aube": promessa "do" amanhecer...].

Existe uma injustiça no cerne da relação entre a mãe e seu filho; não sei se lhe chame injustiça, mas como designá-la então? De um lado, porque uma mãe, criando vida a partir do seu próprio corpo, abdica sempre de si mesma, e será capaz dos mais drásticos sacrifícios para que o filho se realize; do outro lado, porque um filho é necessariamente, e antes de mais, um projecto da mãe por interposta pessoa. Uma promessa: um filho deverá encarnar, como escreve Gary, o «happy end» da mãe.

Lendo este livro, apercebemo-nos a cada passo desta injustiça. Mas também de como ela é inseparável de uma espécie de essencial vulnerabilidade humana. Desse reconhecimento, aliás [que nunca se confunde com a aceitação da estupidez ou da indignidade, com os seus próprios e bem diferentes deuses, inscritos na mitologia infantil que Gary reconstitui], desse reconhecimento de uma fragilidade inerente à condição humana, nasce o génio para a escutar, compreender e amar; amá-la como, talvez, ao que há de mais autêntico. «Tive sempre uma grande tendência para procurar, por trás das grandes razões, um impulso íntimo e procurar no coração das imponentes sinfonias o débil e terno som de uma flauta que subitamente afaga os ouvidos


Não há, na vida de Gary, senão a mãe que se lhe devotou e a que se dedica inteiro, entre improváveis insuficiências e certezas absurdas. Falar tão-só (e repetidamente, como o faço) de "injustiça" a propósito deste laço seria, isso sim, uma injustiça extrema e uma burrice de leitura; nenhum dos dois tem contas a pedir: sabem ambos que a essência da sua relação é um amor infinito, uma fusão inquebrável. A fragilidade como um dos paradoxais modos de uma força sobre-humana. Ou o inverso.

Um exemplo deste sentido da debilidade, o terno e sofrido som da flauta, encontra-se, aqui, não tanto na ausência de um pai, mas na descoberta tardia do destino deste. [O pai, com a sua expressão melancólica, tê-lo-á visto uma ou duas vezes na vida, porque era casado com outra mulher de quem tinha outros filhos.] Saber-se-á que ele fora liquidado num campo de concentração; mas só mais tarde Gary descobre que não terá entrado sequer no local onde o gazeariam. Sucumbiu, de pavor, na fila que era dirigida para a câmara de gaz. Porém, essa fraqueza - não ousaria chamar-lhe cobardia -, essa falta de heroicidade, é o que reconcilia Gary com a ideia de haver sido seu filho. O que o faz aceitar aquele desconhecido como sendo, por direito, um pai humano, que o mereça.

É difícil resistir à tentação de ler este texto profundo sem, precisamente, o encerrar numa «imponente sinfonia», deixando escapar a autenticidade que o constitui. É com um sentido de humor subtilíssimo que Romain Gary desafia os leitores que lhe abordam a memória munidos de um discurso correcto, seja o da psicanálise, ou outra tábua de ideias feitas. Arriscamo-nos a não escutar o débil, o frágil, o belo, o comovente amor, a total entrega de um filho a essa mãe «desmedida», excessiva, ressentida, escandalosa, uma figura inesquecível de russa, fumadora inveterada, negociante atrevida e talentosa, que não admite que o menino venha a ser menos do que «um grande homem», um génio, um ser de eleição; o quê, tornou-se indiferente: um violinista, um tenista, um escritor, um diplomata. Um destino que se cumprisse, desforrando-a das perseguições dos deuses da idiotice, da maldade, da infâmia e da vileza; de todos os que troçaram e a ridicularizaram, e os amesquinharam e incompreenderam.

É uma obra imensa sobre o sentido da imperfeição e do perdão. Sobre a fé numa França que a mãe idealizara, e os acolherá, nem sempre com justiça ou isenta de estupidez e preconceito. Sobre o cepticismo, que é uma inevitável dimensão de qualquer fé: ou seja, a descoberta, pelo malabarista, de que nunca há-de conseguir jogar com sete bolas. Faltará sempre a realização do espectáculo com essa sétima bola, posto que, se fosse capaz, passaria imediatamente a desejar incluir uma oitava - a qual seria, nesse outro nível, a sempre ambicionada e impossível sétima bola.

     

       

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