terça-feira, 9 de julho de 2013

PASCAL BRUCKNER: LUA DE MEL, LUA DE FEL




     Agora que uma versão light do sado-masoquismo ganhou um novo lugar entre as donas de casa que sentem a sua vida real esvaziada da mínima vibração erótica, graças a coisas como As 50 Sombras de GreyO Inferno de Gabriel  e outras deprimentes pepineiras, é interessante descobrir que, se não quisermos recuar até ao divino marquês, já mais próximo de nós (anos 80) Pascal Bruckner escrevera uma extraordinária e crudelíssima Bíblia da relação sado-masoquista.

     Descobri aqui, num dos poucos blogues que não me cansei de seguir - não disse: o único; disse: um dos poucos - a referência ao livro, de que me pus de imediato em busca, e ao filme, que hei-de certamente ver: Roman Polanski servindo-se de Hugh Grant, Emmanuelle Seigner e Peter Coyote, aponta-me, no mínimo, para um casting inteligente.


     A questão que desde logo não posso deixar de pôr é a do efeito não-realista da escrita de Bruckner. Conrad, que amo, usara o mesmo recurso. Camus, que é mais fraco mas, ainda assim, um «clássico», também. Trata-se de, ao contrário de Hemingway, criar um texto literário, e até poético, para se nos contar uma estória que deve tocar-nos pela sua verosimilhança. Ou seja, abdica-se de uma escrita em jeito de "reportagem". O problema parece tornar-se ensurdecedor quando se espera que acreditemos na existência de uma narração oral, ou seja, de um homem que vai apresentando, a alguém (o escritor que tudo transcreverá em nosso benefício), uma trágica sucessão de episódios. Sentimo-nos desconfortáveis, porque as pessoas não falam efectivamente dessa maneira, grandiloquente e trabalhada. Aquele é o modo da "escrita", necessariamente: nem o tempo nem o contexto de uma conversa o permitiriam.


     Mas, à medida que penetramos no que está sendo narrado, começamos a compreender o sentido, a razão de ser, o objectivo último desta escolha; confrontamo-nos até com o imperativo categórico que preside à assunção da forma em causa.
Façamos uma analogia com a ópera. Também ninguém fala a cantar; não me parece que haja assim tantas pessoas que, nos últimos instantes de vida os gastem em impressionantes malabarismos vocais, ao invés de gemidos ou de arquejos. Nem é realmente habitual que se cante um pouco, ainda, quando se está com muita pressa para ir combater, ou evitar que uma catástrofe se abata sobre inocentes. Claro, bem sei que para os ignorantes da ópera, o que mencionei são itens de uma longa lista de motivos que a tornam ridícula. Mas para todos os que aprenderam a devotar-se-lhe, o canto não é um excesso na exposição operática do real: pelo contrário, é o elemento artificial (próprio da arte, pois) que o sublima e intensifica, que o torna mais triste ou mais feliz, mais comovente ou insuportável, mais belo ou mais feio, ou tremendo. Também neste romance, é disso que se trata: de uma sublimação do chocante e do agressivo, de um cântico à perversão, indispensável para que os desvios mais assustadores, na perspectiva do leitor «normal», sensato, burguês, sejam recuperados segundo uma luz que lhes traz um inesperado sentido e uma terrível beleza.

     É uma estória que nos prende e sufoca. Muito dura, verdadeiramente ousada, na procura obcecada da experiência da transgressão e do ilimitado, que consegue transformar as substâncias ou os odores mais repelentes em hinos de glorificação ao corpo feminino. Ao corpo como um todo, não como a superfície visível e aceitável, em que se ocultam, como segredos proibidos, todos os potenciais dejectos, toda a porcaria, líquida ou sólida.

     Mas é também um romance sobre a cobardia, as ilusões ou, mais propriamente, o desfazer das cálidas crenças e mitos, no momento em que um casal, concentrado na bolha do seu amor, dos seus gostos comuns, das suas «ideias eternas», numa viagem, de barco, em direcção ao seu sonho exótico de sempre, se encontra com um outro casal: Franz e Rebecca, que tendo já, de algum modo, levado ao extremo a sua destruição mútua, a expandem agora aos outros, malévola e persistentemente.

     E percebo, Teresa, porque esta livro a tocou tanto. Certamente porque rapta o leitor do princípio ao fim. Mas também por ser a paradoxal fusão entre uma radical ousadia, e o requinte e o bom-gosto, fusão essa que, Teresa, a si lhe assenta como uma luva.

7 comentários:

Teresa disse...

Meu querido José,

Agradeço a menção demasiado elogiosa à minha pessoa e à Gota, tal como agradeço o comentário a chamar-me a atenção para este post.

Se verificar o seu contador de visitas, verá que há alguém (eu) que tem esta página aberta desde talvez as quatro da tarde. Entretanto tive de sair, mas deixei-a aberta justamente porque queria comentar no regresso.

Eu não mudaria uma vírgula em tudo o que escreveu sobre o romance, que também considero glorioso, e acho que fez dele uma avaliação notável, com a qual estou inteiramente de acordo em todos os aspectos que abordou.

Grande beijinho.

P.S. Tenho saudades de o reler, emprestei-o a um amigo há mais de dez anos. Nunca mais vi nem um nem outro. Onde foi que o encontrou?

josépacheco disse...

Numa biblioteca, Teresa, numa simples biblioteca. A de São Domingos de Rana.

Teresa disse...

Está decidido, tenho mesmo de me inscrever numa biblioteca, como tanto me recomenda uma amiga minha!

Aproveito para lhe perguntar se alguma vez leu o maravilhoso Como o Tempo Passa, do proscrito Robert Brasillach, fuzilado por colaboracionismo a seguir à II Guerra Mundial. Foi publicado em Portugal pela Ulisseia.

E para lhe perguntar se viu este desafio antigo.

http://gotaderantanplan.blogspot.pt/2011/04/desafio-literario.html

Se não lho propuseram, aqui fica o repto.

josépacheco disse...

Li-o em francês, mas há muito tempo, vou caçá-lo em português. E entretanto vou à procura do repto que me faz. Beijinhos.

redonda disse...

Vi o filme e gostei. Não li o livro e não lembro se alguma vez ouvi o nome do autor (quando sair daqui vou "googlá-lo") Segui o link e decidi tornar-me também seguidora de A Gota de Ran Tan Plan.

josépacheco disse...

Faz muitíssimo bem, Redonda, vai ver que é excelente.

josépacheco disse...

Já respondi a esse desafio, Teresa, já sim senhor. E até adianto: neste mesmo meu blogue. Pode procurar, mas talvez não deva; não lhe deixo o link porque, sinceramente, depois de ter lido as suas respostas, as minhas parecem-me um tanto insípidas e imaturas