quarta-feira, 27 de março de 2013

RUBENS FIGUEIREDO: PASSAGEIRO DO FIM DO DIA


Num programa dedicado ao livro e ao autor portugueses, que revejo na internet, a minha amiga Paula Fonseca faz a distinção crucial entre o prazer imediato, que se obtém por exemplo em jogos virtuais, e se esgota logo, e o prazer inteiramente de outro género, lento e duradouro, que a leitura pode proporcionar.

Porém, alguns livros, à imagem de qualquer episódio de certa série policial ou de um jogo de computador em que dizimamos vampiros, procuram viciar o leitor: um início que o prenda (como não será, pelo que dizem todos os jovens, o de Os Maias); capítulos em que se gera ansiedade e tensão, para que se passe de imediato para o seguinte; personagens fáceis, distribuíveis sem equívoco num mapa maniqueísta.

Outros, como A la Recheche du Temps Perdu, são obras complexas, que exigem muito. Uma concentração absoluta e um gosto que tenha de se ir refinando, paciente, lenta e arduamente. São obras maiores - não porque a dificuldade seja, em si mesma e por si só, um critério de qualidade, mas porque só estes textos, que nos obrigam a escapar às rotinas de leitura, à banalidade, à preguiça, estão vocacionados para que nos descubramos a nós mesmos, no que temos de mais profundo e mais interessante. Na terra prometida de nós que em todos há e simultaneamente nos devolve aos outros, a um mundo inteligível a que pertencíamos desde sempre.

Passageiro do Fim do Dia é uma destas obras.
Num certo sentido, principia mesmo por nos recusar qualquer história, o que é logo uma dificuldade para o leitor. Como poderíamos chamar propriamente "história" à narração de um fim de tarde de sexta-feira, em que o protagonista se dirige, em autocarro, até ao bairro onde vive a sua namorada, para passar o fim-de-semana (como, aliás, sucede todos os fins-de-semana)? Mas impressiona-me particularmente observar como um texto tão despojado em termos narrativos, se torna, afinal, de uma riqueza e de uma exuberância inesgotáveis no que respeita ao detalhe, à descrição, à vivacidade dos pequenos episódios que a memória do narrador constantemente rebusca.


O Bairro do Tirol, destino do protagonista, é um lugar pobre, de vidas remediadas, pessoas com pouco dinheiro e menos futuro, com medo de sair de casa. E o bairro vizinho é um lugar de ódios viscerais e de rivalidades antigas contra a gente do Tirol, sempre prestes a explodir e a incendiar-se. Este cenário de guerra iminente e pobreza que se agarra tem sido insistentemente apontado pelos críticos, que vêem em Passageiro do Fim do Dia um regresso inesperado e feliz à literatura social e de intervenção. Eu tenho dificuldade em contestar essa evidência. Mas Passageiro do Fim do Dia não é um panfleto: a sua revolução começa por ser uma revolução artística e estética, elevando o pormenor a uma dignidade de que nos tínhamos desabituado. O observador é, de alguma forma, um Meursault brasileiro, um «estrangeiro» observador - não porque não esteja afectivamente ligado às coisas, mas porque todas se decompõem até ao infinito, numa espécie de caleidoscópio de formas, de sons, de expressões, de cores, como num mundo em que o familiar se dissolve, e tudo é objecto de uma surpresa contínua, um espanto distanciado.

Ao mesmo tempo - como em Proust - a memória flui em face de cada pormenor, e a partir dos mais insignificantes aspectos, exaustiva e minuciosamente captados e descritos, devolve a Pedro (o jovem «passageiro do ônibus») traços de acontecimentos passados, marcantes. De maneira que este tempo, esta viagem de um fim de dia, se prolonga quase indefinidamente: em primeiro lugar, objectivamente, porque há acontecimentos que atrasam o percurso da camioneta; em segundo lugar, subjectivamente, porque estas horas se abrem, se estendem, se relacionam com outros tempos, se distraem no minúsculo do presente e no minúsculo do passado longínquo. O tempo é aqui de outra ordem, incomensurável, sem medida nem fronteiras, por dentro e por fora, aproximando e afastando, casando o recuo e a atenção a tudo aquilo de que é feito o aqui, o agora.     

sexta-feira, 15 de março de 2013

MIHALY CSIKSZENTMIHALY: FLUIR



Os livros de teoria científica tendem a ser complexos, quando os autores visam ser respeitados; ou simplistas, quando estão preocupados com um trabalho de divulgação entre os leigos.

Tenho descoberto algumas surpresas: obras que aliam o humor e a capacidade de comunicação a uma informação que não falseia nem reduz; que convidam o leitor não especializado a penetrar na área, às vezes a partir de uma tese criativa e fascinante, mas sem ignorar nem trair os conhecedores. A Lua de Papel é, em Portugal, uma editora que arrisca nesse campo, com traduções cuidadas de textos interessantíssimos, sobre filosofia ou psicologia.

Publicado não pela Lua de Papel mas pela Relógio d'Água, outra editora a quem os portugueses nunca agradecerão o bastante, Fluir, da autoria de um psicólogo polaco de nome impronunciável, é um exemplo desta fusão entre o trabalho sério e rigoroso, suportado por muitos anos de pesquisa, e uma clareza que nos faz sentir sábios, apelando continuamente para o que de facto já conhecemos, isto é, para aquilo que um leitor medianamente instruído não ignora, mas de forma a conduzir esses conhecimentos, capítulo após capítulo, para limiares luminosos de descoberta.

O tema é muito belo. E, de algum modo, segundo Csikszentmihaly, é familiar à prática e à experiência de todos nós. Chamemos-lhe, para simplificar, a felicidade. Mau! Não simplifiquemos demasiado. Não que a palavra nos atemorize, mas não gostaríamos que se começasse a tomar esta obra preciosa por aquilo que não é - um livro de auto-ajuda. A felicidade, aqui, refere um estado. O estado de experiência óptima: mais comum do que poderíamos pensar, embora a psicologia pouco se tenha debruçado sobre ele.

O estado de "fluxo", ou de "fluir", ocorre naqueles momentos exaltantes em que nos entregamos ao exercício de uma actividade que nos dá um prazer máximo, e que depende de nós: não somos obrigados a ela, mas desfrutamo-la; mesmo as dificuldades que lhe são inerentes, e a constituem como um desafio, fazem parte do prazer que nos proporciona; a atenção, a fruição, a intensidade com que nos oferecemos a essas experiências, permite que o nosso ego esteja voltado para si próprio, diferenciando-se, mas também voltado para o que o transcende, integrando-se, numa unidade orgânica em que cresce e se torna sempre mais complexo. Por outras palavras: a multiplicação de tais experiências é, em si mesma, evolução, complexificação.

A experiência de criar, ou do fruir da arte, ou do pensar, ou do desporto, ou da dança, ou da leitura (e certamente que a leitura absorvente de Fluir), correspondem a momentos de fluxo. A felicidade não é uma dádiva: é um "fazer acontecer". Nada de novo, talvez. Mas acredito que nunca seja de mais lembrá-lo.

sábado, 2 de março de 2013

FREUD: SOBRE OS SONHOS



Ricardo Araújo Pereira acedeu a um convite do clube de cinema Gostos Discutem-se, da minha escola.
Escolheu um filme: "Annie Hall", de Woody Allen.
E após a exibição, conversou connosco, num auditório repleto de alunos que lhe bebiam as palavras, a respiração, as pausas, e professores que faltaram porventura a reuniões fundamentais porque se esqueceram de tudo quanto não fosse aquele momento único e - nos precisos termos em que se deu - irrepetível.

Ricardo Araújo é um homem culto, que fala despretensiosamente acerca de Adília Lopes, Mark Twain, Groucho Marx, David Lodge, das teorias de Hobbes ou de Freud. E todos saem curiosos, com vontade de ir à procura para conhecerem [os mais novos] ou para recordarem [os mais velhos]

Nessa sessão, Freud foi referido a propósito do riso e da sua explicação para o facto de o homem rir. Gostaria muito de encontrar esse específico ensaio sobre o riso; na falta dele, apeteceu-me simplesmente regressar a Freud, tão vilipendiado ultimamente, tão maltratado pelos intelectuais que se asseguram e nos asseguram de que, na sua essência, a psicanálise é um mito. E uma fraude.

Leio Sobre os Sonhos, um extraordinário livro de menos de cem páginas, onde, pela primeira vez, Freud aplica ao sonho o seu método, que tão bons frutos vinha dando quando usado nas psicopatologias. A proximidade entre o sonho e a neurose era notória, a intervenção do inconsciente nos dois casos, transformando um conteúdo latente num conteúdo manifesto enigmático e bizarro, parecia inegável.

E percebemos que o equívoco reside num outro lado: independentemente da personalidade manipuladora de Freud, ou de aspectos menos simpáticos da sua biografia, o ponto em que tudo se confunde é o de saber se a psicanálise pode ser considerada, ou não, uma teoria científica. Se falamos de uma ciência estrita, segundo preceitos invioláveis, à maneira de Karl Popper, então não, o discurso freudiano é pouco científico; se, pelo contrário, falamos de uma reflexão que confere sentido às nossas indagações e observações, ligada a uma prática e a uma terapia [pelo que não se trata de filosofia, rigorosamente], a psicanálise continua sendo, malgrado os erros ou as incongruências, uma profundíssima e interessantíssima abordagem do psiquismo.

Na leitura de Sobre os Sonhos acompanhamos, com o mesmo fascínio de quem se prendeu a um romance intenso, a reflexão de Freud, como se a víssemos construir-se diante de nós, e connosco, passo a passo, em torno de muitos exemplos concretos de sonhos, que ele nos narra, dos problemas que esses exemplos nos põem, e de analogias muito ricas que lhe possibilitam conclusões extremamente criativas.

Possivelmente, Freud tem razão. Cada vez mais estou convencido de que não há verdade que não seja precisamente isto: um discurso que explica, ou seja, oferece um sentido, justificado pela observação minuciosa e por um raciocínio sem quaisquer preconceitos. E tudo isto Freud faz - e até um pouco mais: fá-lo de um modo muitíssimo interessante.