quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

TIAGO PATRÍCIO: TRÁS-OS-MONTES [QUESTÕES DE ESTILO]



Vou principiar este post por uma confissão; a seguir, abandono a sobredita, para me referir a Trás-os-Montes, Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís, 2011; por fim, retomarei a confissão, de modo a extrair dela algumas dúvidas que gostaria de aplicar ao caso de Trás-os-Montes.

Vamos, pois, realizar o plano.

1. Um dia, aí pela minha juventude, pensei escrever um romance que reuniria todos os clichés que particularmente me enervavam. Fá-lo-ia, bem entendido, com uma intenção crítica e irónica. Desisti da ideia, quando me dirigi esta pergunta muito simples: E como se distinguiria um romance ironicamente carregado de lugares-comuns, de um romance ingenuamente feito de lugares-comuns? Que outros indícios, que outros instrumentos teria de acrescentar, para que se entendesse: Isto é deliberado, tem uma intenção subterrânea, autodestrói-se de propósito e com um propósito?

2. Um leitor deste blogue, leitor meu cujas opiniões acerca de livros vou pesquisando com interesse e consideração, mencionou Trás-os-Montes como, na sua perspectiva, um dos melhores livros publicados em 2012.
     Passara-me despercebido. Comprei-o.
     Na badana, Eduardo Pitta, desconcertado, adverte-nos para que a «narrativa abre de forma desconcertante», acrescentando: «A economia narrativa não prejudica (antes pelo contrário) a idealização do mundo rural.»
     Muito bem. Sinto-me já electrizado. Concentro-me nas primeiras linhas, preparado para me desconcertar, e leio: «Teodoro vivia numa casa cansada.»

3. A metáfora da casa cansada nada tem de desconcertante. É, ao invés, uma metáfora gasta e morna - embora, verdade seja dita, na enumeração das características desse cansaço, a metáfora pareça acordar, ganhar luz e tornar-se interessante: «uma casa com dores de costas que reagia mal aos dias húmidos e tinha dificuldade em dormir à noite.»

4. Mas, num certo sentido, é como se essa «abertura desconcertante» [que principia por não sê-lo, mas ao longo do período desata a sê-lo] esgotasse o fôlego estilístico do autor, que, daí em diante, se limita a contar os seus episódios num registo seco, sem nenhum risco e sem nenhuma surpresa.
Os episódios, que têm por objecto o crescimento de quatro crianças transmontanas, não se desenvolvem segundo qualquer fio condutor que os una na promessa de algo, mas, pelo contrário, como uma série dispersa de minúsculas estórias; deste carácter fragmentário resulta, aliás, que as personagens não consigam profundidade: como pode ser, o mesmo Teodoro cujas primeiras descrições nos conduzam a imaginar um garoto sempre um pouco deslocado, tímido, inibido, obcecado com a sua procura de padrões e de simetrias, o mesmo que se aventura, mata desapiedadamente pássaros, perseguidor e brigão?

5. Fixemo-nos, por um momento, no despojamento estilístico que, notoriamente, tanto impressionou os críticos e o júri. Deve ser a isso que Pitta se refere como «economia narrativa»; ou que leva o presidente do júri, Vasco Graça Moura, a afirmar: «as qualidades de escrita reportadas à dureza de um universo infantil numa aldeia de Trás-os-Montes e à maneira como o estilo narrativo encontra uma sugestiva economia na expressão e comportamentos das personagens.»

6. Regressemos à minha confissão inicial: perante um texto que não se aventura nem corre riscos estilísticos de monta, como posso perceber se se trata mesmo de uma «economia narrativa» [e expressiva] deliberada, «uma sugestiva economia na expressão e comportamento das personagens», ou do sinal de uma incipiência, sintoma de pouco talento e nula inventividade?

7. A minha descoberta de "Trás-os-Montes", o livro, porém, não acaba aqui. Porque numa noite de insónia em que uma passagem do romance me não saía do espírito [não por eu saber de cor as palavras, mas por me soar continuamente na memória uma certa melodia desse trecho], desci à procura do livro, abri-o e, num ponto marcado, li:

     «A missa em latim, a que Teodoro não chegou a assistir, como um discurso codificado como um todo, era uma decantação da linguagem de Deus, com marcações que as pessoas decoravam para dar as respostas certas naquela homilia fechada. Era o prazer da repetição infinita.»

     Percebo então, num fiat lux, que esta simplicidade é a de uma economia muito bela e, evidentemente, procurada, eu diria: sábia e pacientemente procurada; percebo sem mais sombras que um período, como o que venho de citar, deve ter sido relido pelo seu autor, evitando a tentação da exuberância, excluindo outras possibilidades, até lhe restar um parágrafo muito próximo da perfeição na sua clareza e na sua simplicidade. Confiro: vou descobrindo outros parágrafos, outras passagens, páginas inteiras. A mesma simplicidade que é, para usar a palavra do autor, «uma decantação», em busca de evidências essenciais, de uma pureza clara.

8. Para já, é simplesmente um livro a que deverei tornar, na convicção de que os preconceitos que fui cultivando não mo deixaram descobrir na sua límpida pureza. Se o premiaria? Não. Se está na minha lista dos melhores que li? Não. Se merece a descoberta, o regresso, o reatar...? Tratemos disso...

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