sexta-feira, 30 de novembro de 2012

AFONSO CRUZ: A BONECA DE KOKOSCHKA



Quando se fala de uma nova geração de romancistas contemporâneos portugueses, que domina a «cena» literária, ocorrem-nos invariavelmente os nomes de Gonçalo M. Tavares, de José Luís Peixoto, de João Tordo, de valter hugo mãe. Agora, bruscamente, talvez também de João Ricardo Pedro, mais jovem. Ou Dulce Cardoso. Por que há tão poucas mulheres nesta vaga?

Percebe-se, por outro lado, que os meus horrendos preconceitos não me têm permitido incluir autores que considero muito menores - e ia referir dois que, pensando bem, prefiro calar. O Ondjaki e o Jacinto Lucas Pires.

Porém, alguns nomes, ainda pouco escutados, principiam a notar-se - geralmente através de prémios. Está provado que o começo do reconhecimento depende de que se ganhe um prémio literário.
Um desses nomes é o de Afonso Cruz.
Apesar de alguma curiosidade, porque já dera com certa menção aqui, outra além, umas críticas interessantes a obras suas, não me decidira ainda a lê-lo. Li-o agora, num par de dias, porque descobri que uma das últimas aquisições da Biblioteca da minha escola fora, precisamente, A Boneca de Kokoschka.

A Boneca de Kokoschka é um livro brilhante de inventividade: uma escrita muito bela, poética, que faz lembrar o tom aforístico de um Gonçalo M. Tavares, uma incursão descontrolada e, portanto imprevisível por um mundo de referências da história contemporânea, empregando nomes de personalidades reais para as suas personagens (também à maneira de GMT), deixando-nos sempre no limiar de uma indecisão entre o que sejam os aspectos reais e os aspectos ficcionais das biografias delas, e um grafismo absolutamente delirante, que recorre ao desenho e a letras manuscritas (não posso deixar de referir: também como em GMT: veja-se a série Os Senhores...) compõem uma história maravilhosa, de articulações intrincadas e subtilíssimas, que lemos sem conseguir respirar.

Não refiro a proximidade a Gonçalo Tavares com o intuito de desmerecer Afonso Cruz - mas de sugerir que GMT criou uma voz riquíssima, de uma originalidade ímpar, que, não tendo propriamente imitadores, já influencia, já sopra subterraneamente, já insipira jovens autores capazes de levar muito longe a herança recente. É o caso.

É interessante a ideia, sobretudo [e espero que este não seja um elemento cuja antecipação perverta o prazer da leitura] de se nos narrar a forma como diversas personagens acabam indo em busca de alguém, um tal Mathias Poppa, que teria escrito um livro, publicado, na época, por uma editora obscura e marginal, Eurídice! Eurídice! E, por fim, um derradeiro exemplar do livro é encontrado -ora, a meio das páginas que estamos lendo, insere-se o livro: apresentado até graficamente como um livro dentro do livro, com capa, título, editora (a dita Eurídice! Eurídice!) e até, imediatamente a seguir, numa espécie de badana interior, uma breve referência bibliográfica ao autor: Mathias Poppa, claro, e não Afonso Cruz.

É uma obra híbrida, em diversos sentidos da palavra. A linguagem do cinema está-lhe subjacente - só perante um guião, uma sequência cinematográfica, seria possível este olhar que se vai aproximando das situações, para adiante as retomar de um outro ângulo [como em "Elephant", como em "Memento], recuando ou progredindo ao longo de uma linha temporal, sobre cujos momentos se incidem diferentes planos. O que é, de resto, uma estratégia que tende a multiplicar os fios; diria, aliás, que o pecado deste romance está precisamente na necessidade que Afonso Cruz encontra, à medida que se aproxima do fim, de explicar exaustivamente articulações, recolocar pontas soltas, retomar fios que seriam ou não coincidências - e a obra acredita que não sejam, porque todas as coincidências são simplesmente aquilo a que o observador não consegue dar um sentido que, no entanto, o teria como parte de um plano mais elevado e desconhecido.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

IRVIN D. YALOM: O PROBLEMA ESPINOSA



Yalom, psicanalista norte-americano de ascendência russa e judaica, tornou-se conhecido como autor de vários romances, vagamente históricos, acerca de figuras importantes da filosofia. O seu livro sobre Nietzsche, por exemplo, lê-se com algum interesse, bem como o seu livro sobre Schopenhauer. Em ambos, está presente o que poderíamos definir como uma «psicanálise arcaica»: antes de Freud ter estabelecido a sua teoria, filósofos como Nietzsche ou Schopenhauer, convertidos em personagens literárias, são apresentados nos seus mais íntimos debates emocionais, procurando que aflorem, à consciência, sofrimentos enquistados e inconscientes.
Em geral, os romances de Yalom seguem dois tempos - nos nossos dias, certa personagem identifica-se com o problema do filósofo em causa, é levado a ler a obra deste, e a perceber, nos textos, o processo filosófico que funciona como uma terapia, que o auxilia também.

Com "O Problema Espinosa" estamos perante o mesmo método.
Por um lado, Baruch [ou Bento] de Espinosa é o extraordinário pensador judeu que, por amor à razão e por desprezo por todos os "idola" e superstições, acaba sendo excomungado pela comunidade judaica de Amsterdão, onde se radicara.
Por outro lado, séculos após Espinosa, Rosenberg, uma figura importante do regime nacional-socialista (embora suscite sentimentos ambivalentes entre os próprios líderes nazis), descobre a importância filosófica «deste judeu». Descobre-a através de Goethe! Descobre-a através do testemunho de admiração pela filosofia de Espinosa, expressa por alguns dos expoentes da Literatura alemã, ariana. Em diários, na correspondência, referem o pensamento de Espinosa como tendo-lhes  devolvido a paz de espírito e uma inesperada intimidade com o segredo da Natureza.

É porventura verdade que, para quem não conheça Espinosa nem se interesse por filosofia, este romance possa ser inutilmente complexo: perde-se em longas discussões entre as personagens, a propósito de Deus, do judaísmo, de um radicalíssimo determinismo; mas para aqueles a quem a filosofia ilumine [sobretudo para aqueles a quem a filosofia de Espinosa interpele], a obra faz todo o sentido - reconstitui um Espinosa historicamente possível e muito interessante, até nas suas contradições. Há uma dedicação e uma penetrante compreensão deste homem, que se entregou inteiramente ao pensamento, lutando contra as paixões, em busca do conhecimento perfeito do ser perfeito, de uma visão, de uma "theoria" libertada de todos os preconceitos, mas que, na prática, não teria superado os seus próprios preconceitos. Como é natural; e um exemplo é o da sua posição retrógada acerca das mulheres.
Yalom é, pois, uma vez mais, o psicólogo subtil e profundo, o psicanalista experiente, o estudioso próximo dos homens concretos e das questões abstractas da filosofia.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ROBOT IGNORANTE

Há algo sinistro num sistema persistente, mas que não funciona.

Já vos sucedeu tentarem fazer um comentário a certo "post", num blogue, e, para que haja a certeza de que «você não é um robot» [isto faz sentido?], mostrarem-vos um conjunto de letras - umas letras ilegíveis, que terão de copiar para que o vosso comentário seja aceite?

Já, bem sei que sim.

Mas já vos aconteceu não perceberem as letras? Eu sei, elas mudam. Mas já aconteceu não perceberem o segundo conjunto? Nem o terceiro, nem o quarto? Com o «sistema» repetindo: «Não corresponde, tente de novo»?

Ter-vos-á sucedido, como a mim, desistirem à vigésima tentativa, com um palavrão e um gesto de raiva?

Das duas uma: ou o sistema é mau. Ou fica provado que sou mesmo um robot e não o sabia.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

WALTER BENJAMIN



Graças às leituras que uma amiga tem vindo a fazer para o seu doutoramento, e de que me dá regularmente conta, redescubro o meu amado Walter Benjamin.
Acredito que o meu primeiro contacto com a obra tenha sido feita através de uma tradução francesa, que comprei numa fnac, em Paris - ainda em Portugal se não sabia o que era isso de "fnac": podem, portanto, calcular os anos.
Desde o primeiro momento, para mim, Benjamin foi uma conjugação em que nenhum elemento se poderia desprezar: a figura, como um ícone, remetendo para um misto de Trotski e Chaplin, com os caracóis despenteados, os óculos redondos, de aros filiformes, o bigode: a expressiva timidez, o olhar típico e paradoxal de um observador atento e distraído; depois, o seu marxismo heterodoxo, numa altura em que o meu próprio marxismo ousava ensaiar alguns desvios na ortodoxia; finalmente, a inteligência brilhante e vasta, que acertava nas questões interessantes muitos anos antes de eles começarem a estar na ordem do dia, a sua circulação pelos assuntos da poesia e do romance, da política, da cultura, da teoria da arte ou da filosofia.
Como relativamente a Zweig, culturalmente semelhante a Benjamin em tantos aspectos - e tão dissemelhante em outros -, intimida-me e angustia-me imaginar o que poderá ter conduzido estes espíritos brilhantes a decidirem pôr termo à vida. Que a sua condição de judeus perseguidos por um regime patológico os tenha feito sofrer experiências físicas - e psicológicas, e intelectuais -, que os marcaram para sempre possa ser a resposta, nada me explica.
Mas todas as suas teses são de uma originalidade absoluta. Lê-se Benjamin com uma alegria da descoberta e da aprendizagem que, na filosofia, me parece vizinha da que Nietzsche proporciona, ou Montaigne, mas poucos mais. A mesma euforia das intuições, a iluminação breve e contagiante, o prazer do modo de expressão certo, frequentemente aforístico, a que não se pode acrescentar ou retirar o que quer que seja.
Benjamin estava esquecido. Esquece-se facilmente, como tudo o que exige trabalho e não está nas bocas do mundo. Mas permanece sempre a um passo da redescoberta, e a redescoberta dá-se com a curiosa sensação de que, de facto, só aparentemente o esqueceramos. Obrigado, Ana, por mo teres devolvido.