terça-feira, 10 de abril de 2012

DULCE MARIA CARDOSO: O RETORNO












Tenho procurado a crítica, lida em algum blogue, ao romance O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Queria fazer a minha própria análise em contraponto. Mas já se percebeu: pouco daquilo que eu programe vem a cumprir-se. Perdi o blogue de vista. Numa aturada navegação, ainda me esforcei por tropeçar no referido post, mas não sei já onde esteja.



O Retorno é um retrato implacável do último dia de uma família portuguesa em Angola - e, depois, da sua dramática integração no destino: à noite tomarão o avião que os deverá transportar à metrópole. O pai e a mãe serão "retornados", mas, de algum modo, os filhos hão-de ser "desenraizados", porque não "tornam" a lugar algum e, para eles, a metrópole não tem a substância da memória, e sim a dos sonhos e a dos mitos - as raparigas que fazem brincos de cerejas, para começar pela frase com que, precisamente, o romance inicia; mas quem tenha passado a sua infância em África, sabe bem em que consistem essas imagens de um inverno com neve, cachecóis e luvas de lã, ou protectores de ouvidos, que não conhecíamos senão das ilustrações dos livros de leitura, e contudo preenchiam os nossos sonhos e a nossa ideia de Lisboa, da metrópole, da Europa.


Lembro alguns dos senãos apontados ao livro. Alguém dizia - porventura no post do blogue já mencionado - que não podíamos considerar O Retorno um livro "decisivo" acerca, precisamente, do retorno dos portugueses provenientes de África; que, afirmá-lo, só revela até que ponto nos encontramos em face de uma assustadora carência de literatura sobre esse tema. Pensando bem, é verdade: estamos perante uma notória carência de literatura de ficção sobre o movimento de retorno nos anos setenta; mas isso não significa que este se não trate de um romance "decisivo": é-o, até porque, justamente, pouco mais há. Mas não só. É-o, porque transmite uma vivência, uma maneira de estar, reconstitui a ideologia e a linguagem do colonialismo. É-o, porque o faz, tantos anos volvidos, sem atenuar a crueza da experiência.









O que nos conduz a uma segunda crítica: ao que me dizem, os Angolanos - alguns Angolanos - encaram o romance com desagrado, acusando-o de racista. Ninguém fica bem neste retrato; mas se há racismo, ele é certamente o de uma visão de época e de grupo: os colonos viam os indígenas como "os pretos", referiam-se-lhes obviamente assim e tratavam-nos, desde sempre, com o desdém da raça colonizadora; por outro lado, mais tarde, no processo da independência, militantes dos movimentos triunfantes, no meio de guerras entre si [MPLA contra UNITA contra FNLA] terão inegavelmente olhado para os brancos como o inimigo a ser perseguido, humilhado, torturado, morto ou expulso.


Portanto, O Retorno está muito longe de ser um livro "politicamente correcto". Maravilhoso, esse aspecto. Numa terceira crítica, que também li, é dito que a visão do narrador soa pouco convincente. Que toda aquela segunda parte dificilmente poderia ter sido escrita por ele. Discordo. Por quem mais, se não por ele, poderia ter sido relatada a chegada à "metrópole", a decepção na descoberta de que afinal o frio não tem fascínio, as ruelas são estreitas e as meninas não usam brincos de cerejas,ou a incompreensão dos portugueses de primeira, que não viram com bons olhos a invasão de portugueses de segunda, os quais lhes emporcalhavam os hotéis e disputavam empregos, carregando a insuportável arrogância de quem viu outros horizontes e viveu de outra forma?



O Retorno surpreendeu-me. Reavivou feridas recalcadas. Reabriu experiências esquecidas ou que me envergonhei de assumir. Rescreveu - de um ponto de vista certamente comprometido e injusto, mas incontornável - um passado próximo, da História portuguesa, em que ninguém toca e que a ninguém agrada. Falou-me, sem complexos, de algo tão simples como isto: não há progresso sem dor, nada que se ganhe sem que algo se perca pelo caminho. É uma obra absolutamente extraordinária.

3 comentários:

Miguel Pestana disse...

Tenho lido notas muito positivas na blogosfera e fora dela.

Tenho mesmo de ler «O Retorno» em breve.

Gostei de ler a sua opiniao. Muito clara e objectiva.

Jorge Navarro disse...

Adorei este livro e posteriormente gostei de ter participado numa apresentação do livro com a escritora em que falou da sua experiência como retornada.
É um livro que vale a pena!

Jorge Navarro

wizzard disse...

Excelente romance.
Jamais será possível traduzir, num único romance, toda a saga dos retornados. Há estórias e estórias. Algumas muito dignas, outras assim-assim, outras completamente escabrosas.
A visão de Dulce Maria Cardoso é bastante abrangente e, acredito, terá deixado muita gente emocionada . Outros terão ficado incomodados. A « componente política » do romance é, ainda, muito sumária. Compreende-se. Rosa Coutinho já faleceu, mas Soares e Almeida Santos ainda estão vivos. Pensando melhor : um romance nunca deverá ser um ajuste de contas com a História...