sexta-feira, 27 de abril de 2012

UMBERTO ECO: HISTÓRIA DO FEIO

Por causa de quem tenha percebido que eu não gostaria de Umberto Eco, devido a um "post" em que me insurgia pelo facto de, numa conferência, ter sido ele o indesejável revelador do assassino em certo romance de Agatha Christie (o extraordinário O Assassinato de Roger Ackroyd), sinto-me no dever de desfazer o equívoco. Eco é um escritor maior. Do texto de reflexão filosófica ao de história de filosofia medieval, dos ensaios sobre estética às conferências sobre literatura, dos artigos de observação do quotidiano aos romances de grande fôlego, Umberto Eco é um devorador que merece ser devorado.

Em filosofia, de que sou um professor inábil, entro agora no domínio da experiência estética - e, para interessar alunos para os quais todas as distinções abstractas ou subtis são penosas, recupero um livro que me ofereceram há vários anos, mas a que nunca deixei de regressar, e sempre completamente seduzido. Não, não falo de História do Belo. Falo de História do Feio.

Porque o feio, como precisamente o belo, tem uma história: feita de gostos que se foram adaptando e transformando, repelências que pareciam imediatas, naturais e universais até descobrirmos que são, em outras culturas, movimentos de estima e apreço. O livro é maravilhoso. Desejei-o, folheei-o e contemplei-o, em livrarias, muitas vezes, até ter a sorte de o receber um dia como prenda. Com a beleza de imagens da fealdade e da sua representação ao longo dos séculos, ou em diversas civilizações, com excertos de textos - contos, ensaios - de muitos autores, mas, sobretudo, com a abordagem do próprio Eco, complexa e profunda, polémica e convincente, erudita e estimulante, a História do Feio é, paradoxalmente, um livro de uma perturbadora beleza.

terça-feira, 24 de abril de 2012

ANDREI NÉVI: PETERSBURGO



Anunciei, um dia, em um post, que tropeçara num autor russo que não conhecia. "Tropeçara", aliás, é literal: numa biblioteca, cheguei a chocar contra uma prateleira em que divulgavam a obra. Levei-a comigo. [Vá-se lá saber porquê. A capa? A referência, na contracapa, a este paradoxal Andrei Névi? O cheiro da alma russa? Ou, propriamente, "Petersburgo"?]

Andrei Névi era um aristocrata louco, enfant terrible et gatê, desajustado. Foi um desses intelectuais descontentes, que acreditaram ver, na revolução russa, um movimento contra o seu tédio, o seu niilismo de jovem rebelde, a sua saudade de futuro, o seu desejo de felicidade e liberdade. A obra da sua vida, escrita e muitas vezes rescrita, incompreendida, é precisamente este Petersburgo, de que Trotski, entre o fascínio e o peso da ideologia, afirmava, não sem razão: a perfeição do estilo, o rigor extremo da forma, como expressão de uma visão decadente e pessimista.

O texto é revolucionário: escrito de um modo perturbadoramente fragmentado, com reticências e travessões que separam abruptamente as ideias numa mesma frase, com hesitações que lançam o leitor numa espécie de vertigem e de incómodo, narra o complexo de relações entre um pai "geométrico" - que percepciona a realidade numa neurótica geometria: tudo lhe são figuras tridimensinais, a escada, os prédios, as ruas -, seu filho, vivendo entre uma espécie de amor-ódio pelo progenitor, uma paixão frustrada - e ridícula - por uma mulher casada e uma adesão pouco convicta ao movimento anarquista que o suga e o aproveita, uma mãe ausente que se torna subitamente presente, revolucionários que vão girando em torno do projecto de utilização de uma bomba.

Se é um romance fácil? Longe disso. As quebras e os cruzamentos complicam-se numa linguagem que é, ela própria, uma linguagem fracturada, como numa catedral em que os desvios, as transgressões e as soluções de continuidade ganham tanta importância, na visão do conjunto, como os arcos, as ligações e as continuidades. Todas as falhas são, paradoxalmente, planeadas com uma impressionante precisão. E, à maneira do "romance russo" [Tolstoi, por exemplo], os percursos individuais, as vidas concretas acabam conjugando-se numa ideia de um todo, que é a Rússia, São Petersburgo, uma época, uma revolução germinando já nas entranhas...

terça-feira, 17 de abril de 2012

DOIS CONTOS QUE LI NÃO SEI JÁ QUANDO

Lembro-me de ser miúdo e ter lido, em dois números diferentes de alguma revista, dois contos que me impressionaram.
Posto isto, não sei que revista era; e precisemos: não sei se li um conto em um número e outro em outro, nem sequer se se tratava, de facto, da "mesma" revista; e, já agora, também não garanto que fosse miúdo, ou quão miúdo seria. Na memória, vejo-me bem pequeno. Mas a memória é uma fonte de enganos e, no meio do nevoeiro, não ressaltam senão estas histórias, com toda a nitidez.

Conto-os telegraficamente:

Em um deles, narrava-se como um homem cometera um assalto grandioso. Levou muito dinheiro e escondeu-o. Tinha um sonho e infinda paciência. Suspeitaram dele, prenderam-no. Fizeram perguntas, torturaram-no. Mantinha-se, porém, em silêncio, sempre em nome do seu sonho, o qual teria de esperar. Fizeram-no passar fome, impediram-no de dormir. Perdeu a mulher, raptaram-lhe os filhos. Ameaçavam-no constantemente. A sua resposta era o silêncio: esperaria que se esquecessem e o deixassem. Esperaria o tempo que fosse preciso, sofreria o que tivesse de sofrer. Envelheceu. Vivia só, com fome, com frio - e ao fim de todo esse tempo, num raro momento de felicidade no todo da sua vida de adulto, foi desenterrar o dinheiro. E descobriu que aquelas notas estavam fora de circulação.

No outro conto, tratava-se de um [jovem] casal enamorado. Sem dinheiro, a jovem possuía algo de que se orgulhava: o seu longo e invejado cabelo; o jovem, por sua vez, era proprietário de um relógio em prata, que gostava de mirar [apesar de lhe faltar uma corrente a condizer]. No Natal, a mulher sacrificou o objecto da sua vaidade - cortou e vendeu o cabelo, com o fito de comprar a corrente em prata, lindíssima, devida ao relógio do esposo.
Acontece que a prenda deste, era um caríssimo enfeite para o cabelo dela. «Deixa lá», respondia-lhe a mulher, «há-de voltar a crescer!»
E esperava ansiosamente que ele desembrulhasse a sua preciosa corrente:- o que ele fez, para confessar que, para comprar o enfeite, tivera de vender o relógio.

E estes dois contos nunca me largaram na vida...

quinta-feira, 12 de abril de 2012

JOÃO RICARDO PEDRO: O TEU ROSTO SERÁ O ÚLTIMO






Há que falar com toda a sinceridade: comecei a leitura desta obra, com as expectativas manchadas pelo pecado radical do preconceito. Não me agradava o mito do jovem engenheiro que, subitamente lançado no desemprego, com tempo de sobra, desata, pela primeira vez na vida, a escrever umas coisas. Não o faz para dar voz a uma urgência de alma, a uma vocação profunda, a um gosto, sequer - fá-lo porque tem muito tempo e, já agora... O resto é bem conhecido: o romance ganhou o Prémio Leya, disseram-se dele exageros tão insuportáveis como: «Nunca um primeiro romance foi tão intenso», o autor foi capa do Expresso, de olhos nostálgicos e barba por fazer; entrevistaram-no; exibem-no.

Admito que neste preconceito houvesse alguns grãos de inveja. Ironizo, ou então antecipo previsíveis interpretações. Mas uma coisa é certa: não foi certamente a inveja que me impediu de, principiando a ler o romance de João Ricardo Pedro, perceber quase de imediato que se trata de um texto magnífico. Muito bem escrito, revelando aquele prazer da linguagem que caracteriza o melhor da literatura portuguesa, narra uma história a que nos prendemos pela surpresa e pelo afecto.

Um crítico chamava a atenção para a quase autonomia de cada um dos capítulos, como se as mesmas personagens fossem sendo retratadas em peças breves, descontínuas, como miniaturas ou como contos; mas isso é conversa fiada. Ao dizê-lo, arriscamo-nos, na minha óptica, a perder de vista o essencial. E o essencial é que, nessa aparente descontinuidade, nessa "autonomia" de cada um de vários contos, se ocultam linhas invisíveis, secretos nexos que só a partir de um certo ponto começam a manifestar-se, mostrando uma construção que tudo suporta desde o início e a cada passo. Mais do que isso, atentemos na precisão e complexidade dessas linhas, que solucionam problemas e esclarecem perguntas, sem peripécias forçadas nem coincidências abruptas. E mais ainda do que isso, atentemos em como nem mesmo essas linhas tudo solucionam, deixando em aberto questões que não conseguiremos esclarecer, mas que poderemos interpretar a nosso bel-prazer.

Para mim, há diversos pontos altos ao longo da narrativa [o episódio de início, com o aparecimento de um rapaz que perde o olho e a quem o olho de vidro devolve um rosto e uma alegria; ou o da prova de que os ciclistas nem precisam de sair da bicicleta para mijar; ou o do aparecimento do Índio; ou do esperma do Índio no sofá...], e um ponto máximo: o do surgimento de uma pintora sem perna que, na sala de um museu, em que dispôs o seu material, começa a pintar, reproduzindo, numa tela, em ponto grande, a imagem de uma outra mulher, também sem perna, de um quadro célebre. A imagem de uma mulher sem perna no seio de uma multidão variadíssima, ou seja, numa pintura em que ela estaria longe de ser o centro, a não ser, como acontece, que a isolássemos e todo o quadro, como por magia, passasse a ser lido a partir dessa figura.

É um livro cujas maravilhas não têm conta, quer no conteúdo, pela beleza e intensidade de cada uma dessas miniaturas, quer pelas linhas que as unem, quer na forma, por causa de uma escrita originalíssima, de raros saber e sabor. No caso, João R. Pedro faz, com a enumeração, sempre inesperada, quase ilógica, mas muito bela sempre, o mesmo tipo de revolução, no exercício do narrar, que Saramago fez a partir da pontuação. E nada disto me parece pouco.

terça-feira, 10 de abril de 2012

DULCE MARIA CARDOSO: O RETORNO












Tenho procurado a crítica, lida em algum blogue, ao romance O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Queria fazer a minha própria análise em contraponto. Mas já se percebeu: pouco daquilo que eu programe vem a cumprir-se. Perdi o blogue de vista. Numa aturada navegação, ainda me esforcei por tropeçar no referido post, mas não sei já onde esteja.



O Retorno é um retrato implacável do último dia de uma família portuguesa em Angola - e, depois, da sua dramática integração no destino: à noite tomarão o avião que os deverá transportar à metrópole. O pai e a mãe serão "retornados", mas, de algum modo, os filhos hão-de ser "desenraizados", porque não "tornam" a lugar algum e, para eles, a metrópole não tem a substância da memória, e sim a dos sonhos e a dos mitos - as raparigas que fazem brincos de cerejas, para começar pela frase com que, precisamente, o romance inicia; mas quem tenha passado a sua infância em África, sabe bem em que consistem essas imagens de um inverno com neve, cachecóis e luvas de lã, ou protectores de ouvidos, que não conhecíamos senão das ilustrações dos livros de leitura, e contudo preenchiam os nossos sonhos e a nossa ideia de Lisboa, da metrópole, da Europa.


Lembro alguns dos senãos apontados ao livro. Alguém dizia - porventura no post do blogue já mencionado - que não podíamos considerar O Retorno um livro "decisivo" acerca, precisamente, do retorno dos portugueses provenientes de África; que, afirmá-lo, só revela até que ponto nos encontramos em face de uma assustadora carência de literatura sobre esse tema. Pensando bem, é verdade: estamos perante uma notória carência de literatura de ficção sobre o movimento de retorno nos anos setenta; mas isso não significa que este se não trate de um romance "decisivo": é-o, até porque, justamente, pouco mais há. Mas não só. É-o, porque transmite uma vivência, uma maneira de estar, reconstitui a ideologia e a linguagem do colonialismo. É-o, porque o faz, tantos anos volvidos, sem atenuar a crueza da experiência.









O que nos conduz a uma segunda crítica: ao que me dizem, os Angolanos - alguns Angolanos - encaram o romance com desagrado, acusando-o de racista. Ninguém fica bem neste retrato; mas se há racismo, ele é certamente o de uma visão de época e de grupo: os colonos viam os indígenas como "os pretos", referiam-se-lhes obviamente assim e tratavam-nos, desde sempre, com o desdém da raça colonizadora; por outro lado, mais tarde, no processo da independência, militantes dos movimentos triunfantes, no meio de guerras entre si [MPLA contra UNITA contra FNLA] terão inegavelmente olhado para os brancos como o inimigo a ser perseguido, humilhado, torturado, morto ou expulso.


Portanto, O Retorno está muito longe de ser um livro "politicamente correcto". Maravilhoso, esse aspecto. Numa terceira crítica, que também li, é dito que a visão do narrador soa pouco convincente. Que toda aquela segunda parte dificilmente poderia ter sido escrita por ele. Discordo. Por quem mais, se não por ele, poderia ter sido relatada a chegada à "metrópole", a decepção na descoberta de que afinal o frio não tem fascínio, as ruelas são estreitas e as meninas não usam brincos de cerejas,ou a incompreensão dos portugueses de primeira, que não viram com bons olhos a invasão de portugueses de segunda, os quais lhes emporcalhavam os hotéis e disputavam empregos, carregando a insuportável arrogância de quem viu outros horizontes e viveu de outra forma?



O Retorno surpreendeu-me. Reavivou feridas recalcadas. Reabriu experiências esquecidas ou que me envergonhei de assumir. Rescreveu - de um ponto de vista certamente comprometido e injusto, mas incontornável - um passado próximo, da História portuguesa, em que ninguém toca e que a ninguém agrada. Falou-me, sem complexos, de algo tão simples como isto: não há progresso sem dor, nada que se ganhe sem que algo se perca pelo caminho. É uma obra absolutamente extraordinária.

sábado, 7 de abril de 2012

AGATHA CHRISTIE: O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD





Um bom romance policial deve ler-se pelo menos duas vezes.

Uma primeira, espontaneamente, sem defesas prévias (tirando as que não conseguimos descartar por completo), tentando vagamente fixar alguns indícios que nos permitam descobrir, o assassino, primeiro do que o detective-protagonista; mas se se trata de um bom romance, o que se espera é que nos enganemos: por leitores inteligentes que sejamos, por leitores experimentados que nos consideremos.

Por isso, tem de haver uma segunda leitura: aquela em que tentamos perceber os truques que o mágico escondeu na manga, os fios invisíveis que nos escaparam na primeira vez. Como é que ele fez aquilo, como nos enganou, onde nos fez tropeçar, que falsas pistas semeou.

Umberto Eco, por quem a minha admiração não tem limites, cometeu um erro crasso. Em certa conferência, de resto brilhante, em que usava o livro de Agatha Christie como um exemplo de mestria e rigor na construção, acabou falando de mais. A conferência era acerca do conceito de narrador, e, naturalmente, em O Assassinato de Roger Ackroyd, o segredo vital, ou mortal, reside numa certa forma de narrar; infelizmente, Eco não foi capaz de apresentar a sua tese acerca do romance sem, despudoradamente, revelar o assassino.

Parti, pois, para o livro de Agatha Christie sabendo de antemão quem era o criminoso. Ter-me-á faltado, então, a leitura inocente que é indispensável na fruição de qualquer policial. Mas, mesmo assim, devo dizer que este romance é soberbo; e a leitura advertida que fiz valeu bem a pena.

Lembro-me de haver ouvido descrever Christie como sendo uma autora manhosa, que arranca os seus assassinos praticamente do nada, tendo "partilhado" [palavra da moda] muito poucos indícios com o leitor: fazendo, portanto, jogo sujo. Pode ser. Mas não é certamente o caso, nesta história em que se confundem duas lógicas, e tudo depende de sermos capazes de as separar: uma lógica das aparências, e uma lógica subterrânea, a de Poirot, que nos vai mostrando que nem todos os "dados adquiridos" estão provados; nem tudo o que se assume imediatamente como óbvio foi de facto visto ou ouvido -mas simplesmente presumido.

E presumimos tanto; quando escutámos uma voz por detrás de uma porta fechada partimos do princípio de que alguém estava a falar com alguém. Quando vimos uma pessoa com a mão sobre a maçaneta da porta do gabinete, partimos do princípio de que essa pessoa estava a sair do gabinete, etc. etc.

Na dúvida metódica, cartesiana, em relação aos dados dos sentidos, Poirot torna-se, nesta obra-prima de Agatha Christie, um verdadeiro filósofo, que nos ensina a olhar para a realidade uma segunda vez. Há que pensar sem acreditar excessivamente no que vimos - ou no que julgamos que significa tudo o que fomos percepcionando...

terça-feira, 3 de abril de 2012

DOS LIVROS QUE ME OCUPAM DURANTE ESTE MEU SILÊNCIO

O meu silêncio em matéria de blogue não significa coisa alguma. Nada de ilações. Continuo de boa saúde, lendo muito, e não desisti do prazer segundo que é partilhar, precisamente, o prazer primeiro do que venho lendo.

Posto isto, acontece que um desagradável desentendimento com a empresa que nem me vou dar ao trabalho de nomear, a Zon, me tem privado de internet.

Entretanto, descobri um magnífico autor russo que me escapara totalmente; voltei ao excelente O Assassinato de Roger Ackroyd, da papisa do romance policial, seguindo uma referência de Umberto Eco, que me alerta para a mestria da autora; mais do que tudo, estou a ler - encantado, diga-se já - O Retorno, de uma premiada autora portuguesa em cujo nome, de momento, hesito. E porque o romance me parece tão conseguido, gostaria de o comentar, usando como contraponto a opinião de um blogue também recentemente descoberto por mim - graças à minha leitora Carla: obrigado, Carla, por tudo -, mas em que o romance em causa foi pouco apreciado.

É o que tenciono fazer nos próximos tempos. Com ou sem Zon. Não: sem Zon!

Me aguardem!