segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

LUIGI PIRANDELLO: UM, NINGUÉM E CEM MIL


De Pirandello [venho eu de corda ao pescoço confessar], não conhecia senão a célebre peça em que seis personagens demandam o Autor.

Foi Harold Bloom que, no seu injusto e genial livro, Génio, me fez pensar sobre o que andaria porventura perdendo. Para Bloom, Luigi Pirandello é um dos 100 génios da literatura universal, juntamente com Pessoa, Eça e Saramago. A sua obra maior seria Henrique IV, que não li e tenho procurado por bibliotecas. Mas descubro, entretanto, Um, Ninguém e Cem mil. É magnífico.

Pirandello é, como muitos autores do seu tempo (caso de Fernando Pessoa, seu contemporâneo), um escritor que experimenta, contraria os padrões clássicos e, nesse processo, acaba transformando o acto e o rosto da literatura. A ironia com que distancia as personagens de si próprias, permitindo-lhes reconhecerem-se como personagens - e revoltarem-se contra o destino - é o seu leitmotiv. A fissura, portanto, de si a si. Esta adquire, aqui, inesperados efeitos e um alcance filosófico profundos, continuamente desmontados, aliás, pela auto-ironia. Trata-se de questões que não podemos levar a sério, visto que o narrador as conduz ao extremo, revelando-se, pois, um louco em pleno delírio; mas que, paradoxalmente, não podemos deixar de levar a sério: se contidas na forma da nossa normalidade, que as não deixa extravasar, elas são as nossas próprias questões - isto é, essa espécie de ruído existencial, essa ininterrupta melodia interna de dúvidas sobre nós e sobre o que somos para os outros.

De que falam Husserl, Sartre e Merleau-Ponty senão, precisamente, disso? Como me vêem os outros? Que imagem - ou que construção fazem de e sobre mim, eles que, não acedendo à minha consciência, não podem senão pressupô-la e interpretá-la? E como acedo, por minha vez, como surpreendo e capturo essa imagem que os meus familiares, amigos, vizinhos, próximos ou distantes, engendram de mim?

A pessoa que se olha ao espelho vê-se a si própria. Reconhece-se: não, o espelho não me permite aceder ao que os outros vêem em mim. O espelho sou ainda eu - eu reflectido, eu para mim, não eu para os outros. Este romance de Pirandello é um exercício de humor: dirigindo-se ao leitor num pseudo-ensaio cómico e perturbador, segmentado em parágrafos curtos, o narrador descreve a sua odisseia a partir do momento em que a mulher - e depois os amigos com os quais procura confirmar - refere o facto de o seu nariz «pender para o lado direito», pormenor de que nunca se apercebera. Tal constatação desencadeará, precisamente, a fissura, a distância de si a si, a dificuldade no auto-reconhecimento, a estranheza.

A sua argumentação é implacavelmente lógica. E essa forma inatacável parece tornar irrefutáveis mesmo as suas conclusões e paradoxos mais absurdos. «Je est un autre», afiançava Rimbaud. Ou, como em Nietzsche, ninguém está mais longe do conhecimento do sujeito do que o próprio sujeito. [Ou, ainda, Comte: Não posso estar à janela a ver-me passar na rua; e por aqui me fico, para não parecer um snobe das referências]. Nesta desagregação de identidade, o sujeito, que era "um" mas, num certo sentido, se perdeu, acabou como nada - "ninguém"; mas, por isso e simultaneamente, "cem mil", numa incontrolável profusão de figuras construídas pelos seus próximos, em nenhuma das quais poderá, alguma vez, voltar a encontrar-se.

4 comentários:

sonia disse...

Não deixe de ler, O Falecido Matias Pascoal, dele. Excelente!!

josépacheco disse...

Obrigado, Sónia. Andava com esse debaixo de olho há tempos, sim... mas passou-me; voltarei a procurá-lo...

Anónimo disse...

No ano passado também descobri a genialidade de Luigi Pirandello e a multiplicidade de formas de ser em que nos podemos tornar ao longo da vida.
Se gostou de delicioso "Um, Ninguém e Cem Mil", não deixe de ler o belíssimo "O Falecido Mattia Pascal" e "O Turno".
Como dizia um antigo professor... "estamos sempre atrasados na leitura".
Cmps,

Jorge Navarro

Carolina disse...

Outro dele excelente é "assim é-se lhe parece"... Me apaixonei por Pirandello!