domingo, 19 de fevereiro de 2012

MÁRIO DE CARVALHO: QUANDO O DIABO REZA


Se lerem, no "i" deste fim-de-semana, uma série de respostas que Mário de Carvalho dispara contra as perguntas de um inquérito sobre o seu modo de escrever, perceberão melhor tudo quanto eu possa a seguir dizer-vos: notem a mordacidade à flor da pele, um humor ferino e o talento extraordinário para a desconstrução e para o jogo de palavras.

O inquérito era feito a propósito de Quando o Diabo Reza. Eu sei bem o que a minha amiga São pensaria do romance: em síntese, que não contém amor; não no sentido pacóvio de que lhe faltaria ser uma história de amor, como se não houvesse outras hipóteses, mas no sentido de que a visão do autor não revela um pingo de carinho pelas próprias personagens, nem as redime, caricaturando-as em todos os podres e ridículos, como se estivessem sempre de cuecas em público. Não estou de acordo. Falta à minha amiga, pelo menos em matéria de romance, o gosto da ironia, do cepticismo e da caricatura. A São exige, de uma história, personagens amáveis - leia-se: que possam ser amadas -, e receio que essa seja a menor das preocupações de Mário de Carvalho.

E no entanto, o que ele nos dá é algo absolutamente impagável. Para já, um outro tipo de amor, que se vê na forma como cultiva a língua portuguesa. É o amor que o faz procurar palavras e construções frásicas desusadas; um texto de Mário de Carvalho carece sempre, por isso, de uma leitura atenta, lenta, erótica. Ao mesmo tempo, compraz-se [como Dickens] na reconstituição de modos típicos do falar. Ele há o falar de um tendeiro que vende "Hugo Boss" e "Chanel" de feira; ele há o de uma mãe rabugenta, entre as sessões de certa seita fanática e a telenovela, que segue também religiosamente; ele há um seu filho que, em conluio com amigos [nada menos do que uma espécie de vendedor da banha da cobra e uma prostituta], planeia um golpe de mestre; e vão cinco pessoas, em torno dos quais nos é exposto o rosto de uma certa Lisboa de esquemas e fugas, misérias e expedientes. A outra face do romance, põe-nos perante um punhado de representantes de um outro nível social. São as vítimas do plano mencionado: aquele pai já velho, certamente muito rico, mas com o dinheiro misteriosamente aferrolhado no Banco, e aquelas filhas que lhe espreitam ansiosamente a morte. Cada uma delas tem, por sua vez, o indispensável empecilho: Ester presa a um marido que ela não ama e a não ama, Beatriz servindo-se de uma mulher a dias ucraniana que será sempre, e para todos os efeitos, "a russa".

Destas pessoas emanam e circulam os sonhos impossíveis, a desconfiança e o maquiavelismo barato, de tal modo que as "vítimas" são, afinal, os eticamente menos escrupulosos. Com estes ingredientes é-nos servido um mundo melancólico e rasteiro, em plena crise, sem amor, mas imperdível, que, de algum modo, funciona como nova crónica dos Bons Malandros: a minha amiga São não a apreciaria, mas eu leio-a com um prazer amargo: por que diabo todo o chocolate haveria de ser doce?

PS: Impossível não chamar a atenção para a lindíssima e luxuosa edição da Tinta-da-China: capa dura, em roxo (ou violeta?), a ilustração, o excelente papel, com uma fita de marcar, o cheiro... Porque ele há livros e livros!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

LUIGI PIRANDELLO: UM, NINGUÉM E CEM MIL


De Pirandello [venho eu de corda ao pescoço confessar], não conhecia senão a célebre peça em que seis personagens demandam o Autor.

Foi Harold Bloom que, no seu injusto e genial livro, Génio, me fez pensar sobre o que andaria porventura perdendo. Para Bloom, Luigi Pirandello é um dos 100 génios da literatura universal, juntamente com Pessoa, Eça e Saramago. A sua obra maior seria Henrique IV, que não li e tenho procurado por bibliotecas. Mas descubro, entretanto, Um, Ninguém e Cem mil. É magnífico.

Pirandello é, como muitos autores do seu tempo (caso de Fernando Pessoa, seu contemporâneo), um escritor que experimenta, contraria os padrões clássicos e, nesse processo, acaba transformando o acto e o rosto da literatura. A ironia com que distancia as personagens de si próprias, permitindo-lhes reconhecerem-se como personagens - e revoltarem-se contra o destino - é o seu leitmotiv. A fissura, portanto, de si a si. Esta adquire, aqui, inesperados efeitos e um alcance filosófico profundos, continuamente desmontados, aliás, pela auto-ironia. Trata-se de questões que não podemos levar a sério, visto que o narrador as conduz ao extremo, revelando-se, pois, um louco em pleno delírio; mas que, paradoxalmente, não podemos deixar de levar a sério: se contidas na forma da nossa normalidade, que as não deixa extravasar, elas são as nossas próprias questões - isto é, essa espécie de ruído existencial, essa ininterrupta melodia interna de dúvidas sobre nós e sobre o que somos para os outros.

De que falam Husserl, Sartre e Merleau-Ponty senão, precisamente, disso? Como me vêem os outros? Que imagem - ou que construção fazem de e sobre mim, eles que, não acedendo à minha consciência, não podem senão pressupô-la e interpretá-la? E como acedo, por minha vez, como surpreendo e capturo essa imagem que os meus familiares, amigos, vizinhos, próximos ou distantes, engendram de mim?

A pessoa que se olha ao espelho vê-se a si própria. Reconhece-se: não, o espelho não me permite aceder ao que os outros vêem em mim. O espelho sou ainda eu - eu reflectido, eu para mim, não eu para os outros. Este romance de Pirandello é um exercício de humor: dirigindo-se ao leitor num pseudo-ensaio cómico e perturbador, segmentado em parágrafos curtos, o narrador descreve a sua odisseia a partir do momento em que a mulher - e depois os amigos com os quais procura confirmar - refere o facto de o seu nariz «pender para o lado direito», pormenor de que nunca se apercebera. Tal constatação desencadeará, precisamente, a fissura, a distância de si a si, a dificuldade no auto-reconhecimento, a estranheza.

A sua argumentação é implacavelmente lógica. E essa forma inatacável parece tornar irrefutáveis mesmo as suas conclusões e paradoxos mais absurdos. «Je est un autre», afiançava Rimbaud. Ou, como em Nietzsche, ninguém está mais longe do conhecimento do sujeito do que o próprio sujeito. [Ou, ainda, Comte: Não posso estar à janela a ver-me passar na rua; e por aqui me fico, para não parecer um snobe das referências]. Nesta desagregação de identidade, o sujeito, que era "um" mas, num certo sentido, se perdeu, acabou como nada - "ninguém"; mas, por isso e simultaneamente, "cem mil", numa incontrolável profusão de figuras construídas pelos seus próximos, em nenhuma das quais poderá, alguma vez, voltar a encontrar-se.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

MARIO VARGAS LLOSA: TRAVESSURAS DA MENINA MÁ

Parecerá estranho que, sendo eu um admirador da obra de Vargas Llosa - desde há muito, ou seja, para o que importa, desde antes de o terem nobelizado -, nunca tenha tido a oportunidade ou a curiosidade de ler um dos seus romances mais interessantes, Travessuras da Menina Má. Leio-o agora: não é tarde de mais.

Há um fio neste romance: a própria "menina má". Apresentada logo no primeiro capítulo, ela é, desde miúda, uma rapariga que procura integrar-se e ser bem sucedida através do embuste. É o fio porque, ao longo do tempo, a chileninha vai desaparecendo, e reaparecendo sob uma nova forma, sob, digamos, um outro avatar, inesperado, improvável, fascinante. Para o narrador, porém, tudo recomeça a cada reencontro: se a menina má transforma, de cada vez, a sua identidade, o que subjaz permanentemente em todos os momentos desta evocação, o que nunca realmente muda, é a paixão desenfreada deste rapaz, depois jovem, por fim homem maduro, por ela; esse amor doentio e obcecado, contra o qual luta, mas sempre em vão.

Uma pergunta do domínio da ética: será a menina má realmente uma "menina má"? Bem. O título introduz essa ambiguidade e justifica a questão. Ao nível da maldade, não falamos de "travessuras", mas de malignidades, malevolências, maldades. A travessura comporta um elemento de inocência e de infantilidade. A paixão que o narrador por ela nutre predispõe-no, é claro, para uma espécie de perdão antecipado. Há todavia qualquer coisa de efectivamente terrível, indesculpável e pérfido nesta espécie de louva-a-deus; esta mulher que usa os homens como instrumentos tolos para alcançar os seus objectivos, e os cospe na maior das misérias e do sofrimento quando deixam de lhe servir. Mas, simultaneamente, compreendemo-la: à sua visão egocentrista, à sua ironia em relação a todo o compromisso, ao seu desprezo, à sua ausência de amor. É uma "menina má" profundamente humana e sofredora, é uma "menina má" carente e frágil, uma falsa dura, e nessa capacidade de penetrar no fundo dessa imensa fragilidade reside um dos méritos maiores deste romance que recusa julgar - que prefere amar.

Mas se a menina má é o fio, cujos aparecimentos e reaparecimentos conferem a unidade da história, não menos interessante é o modo como o romance vai extrapolando desse fio para outras esferas e para outras personagens, oferecendo-nos um retrato do Peru, de França e de Inglaterra [Paris e de Londres dos anos sessenta e princípios dos anos setenta] ou até do Japão ou Espanha: os guerrilheiros, os existencialistas, os hippies, os gentlemen e as ladies, os tenebrosos Fukuda, numa reconstituição deliciosa de um mundo em transformação e crescimento.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

CHARLES DICKENS: GRANDES ESPERANÇAS


Dickens é, penso eu, um autor que todos conhecem de nome mas praticamente ninguém leu. Conhece-se-lhe vagamente a obra sob a forma de uns quantos títulos "incontornáveis" e algumas personagens que devieram ícones literários, ou são referidas como caracteres-tipo da psicologia; tem-se a ideia geral de que há sempre órfãos muito infelizes, e pessoas extremamente mesquinhas que os exploram e maltratam. Há filmes que vêm tornar mais nítidos, no nosso horizonte mental, esses dois ou três traços. Não há Natal, por exemplo, em que alguma televisão não exiba o pavor de Mr. Scrooge ante os três fantasmas que o levam em visita turística.

A primeira surpresa na imagem oficial de Dickens surge com a tradução para português, já não muito recente, de Os Cadernos Póstumos de Mr. Pickwick, esse concentrado de humor e observação, a que já aqui me dediquei. A outra surpresa, pelo menos para mim, é a descoberta de Grandes Esperanças, a que cheguei por via de um outro livro.

Grandes Esperanças tem aquele tom folhetinesco, típico de época; aquelas personagens improváveis que conservam, do seu passado, um profundo e terrível desejo de vingança (o qual executam através de qualquer plano maquiavélico, que o leitor não pode senão ir compreendendo muito vagarosa e ansiosamente, página a página); contém um lado de aventura, ao jeito de A Ilha do Tesouro, que empolga e encanta: veja-se, logo de início, a série de encontros de Pip com os foragidos, e suas dramáticas consequências; há personagens malévolas e personagens de uma generosidade e de uma candura sublimes. Mas em todas estas facetas, articuladas numa história complexa, à volta de uma segredo que iremos perseguindo, a sensibilidade de Dickens consegue expor mundos interiores que nos são comuns, e em que nos reconhecemos bem: o das nossas próprias lutas, o da culpabilidade (sob cujo signo nos relacionamos e convivemos com o próximo: o caso de Pip e Joe é exemplar para compreendermos algo como o amor que se tem por uma pessoa que o merece, e a injusta vergonha que, socialmente, a sua presença faz sentir).

Grandes Esperanças é um romance que nos mostra o lado mais fácil da obra de Dickens - um certo maniqueísmo, um desenrolar vertiginoso, mistérios que mantêm um permanente "suspense", um ror de coincidências que explicam, por fim, o inexplicável; isto é: o aspecto folhetinesco - e o mais profundo e complexo: os indesejáveis mas compreensíveis sentimentos humanos, o amor que não entende os sinais ambíguos ou contraditórios, a formação de um adulto a partir dos fragmentos dolorosos da criança e do jovem. Grandes Esperanças é um romance perene: alguns dos melhores romances perenes, aliás, foram, como este, escritos no século XIX.