sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

QUE TAL QUATRO LIVROS PORTUGUESES IMPERDÍVEIS DE 2012 - EM VEZ DE DEZ, OU MESMO CINCO?

Consigo encontrar dez livros portugueses, de 2012, que tenha lido e possa recomendar, agora que estamos em mudança de ano?
A ideia, excelente, foi-me sugerida pelo meu amigo António.
O problema é que, ao longo de 2012, devo ter lido poucos livros publicados em 2012.

Mas «O Retorno», de Dulce Maria Cardoso, é um daqueles que tenho de recomendar muito vivamente; o tema do retorno, que é interessante - e carece já vivamente de historiadores e romancistas que se lhe entreguem, para além do inenarrável Magalhães - é aqui tratado com toda a sensibilidade. E se a visão é parcial, ainda bem: sinal de que se encarnou a perspectiva do jovem narrador, que não poderia ser mais ampla nem mais justa do que aquela.

Outro, naturalmente, é «O Teu Rosto Será o Último», do inesperado e magnífico João Ricardo Pedro. Não vale a pena dizer mais - o post que lhe dediquei é ainda recente.

«A Boneca de Kokoschka», de Afonso Cruz, é também um romance muito recomendável em que, ao contrário de outros da sua autoria [disseram-me, que não lhe li os anteriores...] não se perdem personagens pelo caminho da narração.

Clara Ferreira Alves compilou as suas últimas crónicas em «Estado de Guerra»: para quem, como eu, é leitor assíduo de A Pluma Caprichosa, a reunião destes textos desiguais tem um efeito perturbador. CFA escreve sempre muito bem e interpreta o mundo com uma cultura e uma inteligência ímpares, mas se é brilhante na descrição de personagens ou de situações caricaturais do nosso país, torna-se facilmente insuportável nas exaustivas narrações das suas viagens.
Não consigo chegar a 10 - queria pelo menos alcançar os 5. Falta-me um?
Bem. Não chego lá. Lamento.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

ERSKINE CALDWELL: TOBACCO ROAD



Todas as falas das personagens falantes [porque a mudez, ou a quase-mudez, é uma característica de várias outras] estão impregnadas de Deus. É o Deus todo-poderoso do Antigo Testamento: curiosamente, o Deus omnipotente não parece mais do que um homem muito idoso e muito sábio, com lacunas que as criaturas não deixam de lhe apontar. A pregadora, por exemplo, Sister Bessie, considera que talvez seja preferível deslocar-se, ela própria, a casa de Lov, a fim de explicar à jovem esposa deste  - na verdade uma criança - como deveria comportar-se com o seu marido, ao invés de esperar que Deus lhe fale. Afinal, uma mulher percebe mais de assuntos de mulheres do que um homem. E Deus, por muito omnisciente que seja, não deixa de ser um homem!

Somos postos cruamente em face dos habitantes de casebres dispersos nas imediações de uma antiga estrada de tabaco. Pertenciam a um plantador que partiu, permitindo aos seus ex-trabalhadores que nelas continuassem até ao desabamento. O tempo é o de uma crise inclemente, e estas famílias do sul dos Estados Unidos da América, sem recursos de nenhum tipo, afundam-se numa espécie de vida primitiva, onde os instintos são os únicos instrumentos de adaptação e sobrevivência. Parece uma condenação. O solo desertificado não produz, o trabalho escasseia, as famílias aglutinam-se em barracões imundos, com idosos que se agarram desesperadamente à vida, recusando-se a morrer, e filhos que se multiplicam, para no entanto desaparecer cedo: uns, de morte prematura, outros casando também prematuramente, isto é, aos doze ou aos treze anos, mas a maioria fugindo para Augusta, a cidade próxima.

Compreendo por que sempre ouvi referir este romance como o contraponto de As Vinhas da Ira: aqui, o trágico nada tem de heróico; não há uma luta prometeica contra as agruras ou por uma vida melhor, mas, pelo contrário, o abandono a uma preguiça fundamental e a uma impotência para mudanças radicais: quando muito, um excesso de sonhos impersistentes ou de projectos continuamente adiados.

Neste mundo em que a fome é uma condição perpétua, que debilita e se manifesta na companhia constante de ruídos no estômago; onde a religião é um espeto de culpa e remorso nas consciências, mas não impede que o furto seja um expediente corriqueiro; em que os pais mal conseguem recordar os nomes de todos os filhos que os deixaram, embora alimentem a esperança de que algum possa ter enriquecido, e regresse para os auxiliar; em que se tornam de uma importância crucial o tabaco de mascar [em rigor, dizem-me que se trataria de uma espécie de rapé: o termo inglês é "snuff"] ou uma roupa decente, «de estilo», com a qual possam ser enterrados (apesar de ser a mesma gente que em vida usa andrajos, calças de ganga sobre o corpo, e anda descalça, ou improvisa sapatos: a avó traz, amarrados aos pés, cascos de mula), «neste mundo», escrevia eu no início do extensíssimo parágrafo, pouco mais há a esperar.

Não vejo propriamente malfeitores; vejo este velho Jeeter, preguiçoso e cobarde, que ninguém respeita, ou vejo estas mulheres [a mãe, a avó] cujo desespero faz pegar em paus para afastar, violentamente, de um saco de nabos, o seu legítimo proprietário - um homem que palmilhara muito caminho para os ir comprar por bom preço; entretanto, a rapariga de lábio leporino já se arrastara sedutoramente até ele, para levá-lo a esquecer-se do dito saco e a deixá-lo por um momento desprotegido. No caso da rapariga, também porque à sua fome se acrescenta uma fome de sexo, própria de uma adolescente feia e indesejada. Mas que culpa têm os Lester do seu comportamento? Todos deviam saber que é errado aproximarem-se da sua cabana quando se traz alimento: os Lester, essa matilha famélica que se une, numa complexa manobra de cooperação, para furtar o que quer que acalme os roncos do estômago.

Este é o livro por mim desejado há muitos anos. O livro de que a minha mãe me falava e que eu, muitas vezes, tentei comprar - sempre em vão; não creio que esteja traduzido em português. Encomendei-o, recebi-o, por fim, e leio-o para preencher também uma fome antiga, semelhante às dos Lester. Erskine Caldwell é, aqui, absolutamente brilhante. Esta novela tem qualquer coisa de peça de teatro: a quase unidade da acção, a quase unidade de espaço (com excepção das breves e impagáveis deslocações que se fazem até à cidade de Augusta) e quase a de tempo. Ao longo de vários capítulos, narra-se o regresso de Lov, que fora comprar um saco de nabos [os "turnips"; «nabos», não é?]; a passagem por próximo da casa dos Lester, que o observavam, atentamente, há muito; e a tentativa de estes se apoderarem dos nabos. É esta primeira parte [seguida pela chegada da extraordinária pregadora, Sister Bessie, tanto para dar um sentido religioso ao arrependimento do velho pai ladrão, como para comer alguns dos nabos restantes e conseguir um marido] que serve de fio condutor, agregador de muitos pormenores, a partir dos quais nos vai sendo apresentada a história e as causas cruéis do estado presente daquelas vidas.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

JACQUES BARZUN: DA ALVORADA À DECADÊNCIA



Jacques Barzun faleceu este ano.

João Pereira Coutinho, um jovem conservador inteligente, culto e com sentido de humor, numa crónica referiu-o conjuntamente com Gore Vidal, sublinhando a morte próxima de ambos como uma drástica perda para a cultura.

Sobre Vidal, tenho pouco a dizer: infelizmente, nunca fui capaz de ler até ao fim nenhum dos seus livros. Se há autor maçudo e desinteressante, à luz das minhas tentativas sucessivamente defraudadas de me entusiasmar com o que escreveu, é este romancista norte-americano.

De Barzun, pelo contrário, lera um livro esplêndido, The House of Intellect. Meu primo recomendara-mo e ofereceu-mo, chamando a atenção para a agudeza da crítica às tendências erróneas do sistema de ensino - e isto muitos anos antes de essas tendências se terem tornado moda, e uma moda absolutamente devastadora. O pânico em relação à exigência e ao rigor, a rejeição da frustração como factor de aprendizagem e de crescimento, os ensinos "facilitadores", em suma, o «eduquês», eram já sagazmente detectados e analisados, e as suas consequências (à época, ainda não totalmente previsíveis) antecipadas com uma fundamentação persuasiva.

Mas meu primo dissera-me que, se The House of Intellect era uma livro a não perder, já o "resto" da obra da Barzun parecia dispensável, como se este se tivesse esgotado na sua obra-prima.

Li, porém, recentemente, do mesmo autor, uma história do pensamento, de 1500 até aos nossos dias, chamada Da Alvorada à Decadência; lamento discordar do meu primo: é uma obra que merece a leitura por várias ordens de razões: pela clareza do texto, antes de mais, sem pedantismos nem, por outro lado, excesso de simplicidade ou pouca substância. Pela originalidade e pelo brilho da tese que subjaz à obra - como se depreende do título, a ideia de que não assistimos a um "progresso" do pensamento, mas, pelo contrário, a uma "queda": uma decadência da qualidade, da profundidade, da riqueza intelectual, substituídas por mecanizações do raciocínio e por uma visão científica estreita, herdeira e radicalizadora do divórcio entre dois mundos culturais (as ciências e as humanidades). Finalmente, pela apresentação de pensadores pouco conhecidos, mas inovadores e criativos [Veja-se o caso de Fénelon ou de Beddoes, ou do estimulante Hazlitt], os quais, em diversas àreas [na religião, na filosofia, nas artes, nas ciências, na política], sob o olhar, muito pessoal, que Barzun nos oferece da história da cultura, teriam constituído figuras e momentos essenciais na marcha do Espírito.

Há citações, a negrito, à margem, tanto dos próprios pensadores tratados, como de comentadores, que não sublinham nem repetem a explicação, mas acrescentam algo; há uma identificação dos temas ou dos conceitos que vão surgindo no tempo, e guiando a razão; há uma desmontagem contínua e provocadora das leituras, sobre a história, que se tornaram dominantes e a história consagrou como leituras oficiais da história. Há níveis variados de reflexão, que nos interpelam, e são motivo de discordância do leitor, ou da ampliação e da reformulação dos conhecimentos que tínhamos por assentes.

E, portanto, sinto-me em condições de, relativamente a Barzun, gratamente contrapor, à descoberta que o meu primo me proporcionou, uma descoberta que este não pode ignorar. Da Alvorada à Decadência é um livro a não perder.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

AFONSO CRUZ: A BONECA DE KOKOSCHKA



Quando se fala de uma nova geração de romancistas contemporâneos portugueses, que domina a «cena» literária, ocorrem-nos invariavelmente os nomes de Gonçalo M. Tavares, de José Luís Peixoto, de João Tordo, de valter hugo mãe. Agora, bruscamente, talvez também de João Ricardo Pedro, mais jovem. Ou Dulce Cardoso. Por que há tão poucas mulheres nesta vaga?

Percebe-se, por outro lado, que os meus horrendos preconceitos não me têm permitido incluir autores que considero muito menores - e ia referir dois que, pensando bem, prefiro calar. O Ondjaki e o Jacinto Lucas Pires.

Porém, alguns nomes, ainda pouco escutados, principiam a notar-se - geralmente através de prémios. Está provado que o começo do reconhecimento depende de que se ganhe um prémio literário.
Um desses nomes é o de Afonso Cruz.
Apesar de alguma curiosidade, porque já dera com certa menção aqui, outra além, umas críticas interessantes a obras suas, não me decidira ainda a lê-lo. Li-o agora, num par de dias, porque descobri que uma das últimas aquisições da Biblioteca da minha escola fora, precisamente, A Boneca de Kokoschka.

A Boneca de Kokoschka é um livro brilhante de inventividade: uma escrita muito bela, poética, que faz lembrar o tom aforístico de um Gonçalo M. Tavares, uma incursão descontrolada e, portanto imprevisível por um mundo de referências da história contemporânea, empregando nomes de personalidades reais para as suas personagens (também à maneira de GMT), deixando-nos sempre no limiar de uma indecisão entre o que sejam os aspectos reais e os aspectos ficcionais das biografias delas, e um grafismo absolutamente delirante, que recorre ao desenho e a letras manuscritas (não posso deixar de referir: também como em GMT: veja-se a série Os Senhores...) compõem uma história maravilhosa, de articulações intrincadas e subtilíssimas, que lemos sem conseguir respirar.

Não refiro a proximidade a Gonçalo Tavares com o intuito de desmerecer Afonso Cruz - mas de sugerir que GMT criou uma voz riquíssima, de uma originalidade ímpar, que, não tendo propriamente imitadores, já influencia, já sopra subterraneamente, já insipira jovens autores capazes de levar muito longe a herança recente. É o caso.

É interessante a ideia, sobretudo [e espero que este não seja um elemento cuja antecipação perverta o prazer da leitura] de se nos narrar a forma como diversas personagens acabam indo em busca de alguém, um tal Mathias Poppa, que teria escrito um livro, publicado, na época, por uma editora obscura e marginal, Eurídice! Eurídice! E, por fim, um derradeiro exemplar do livro é encontrado -ora, a meio das páginas que estamos lendo, insere-se o livro: apresentado até graficamente como um livro dentro do livro, com capa, título, editora (a dita Eurídice! Eurídice!) e até, imediatamente a seguir, numa espécie de badana interior, uma breve referência bibliográfica ao autor: Mathias Poppa, claro, e não Afonso Cruz.

É uma obra híbrida, em diversos sentidos da palavra. A linguagem do cinema está-lhe subjacente - só perante um guião, uma sequência cinematográfica, seria possível este olhar que se vai aproximando das situações, para adiante as retomar de um outro ângulo [como em "Elephant", como em "Memento], recuando ou progredindo ao longo de uma linha temporal, sobre cujos momentos se incidem diferentes planos. O que é, de resto, uma estratégia que tende a multiplicar os fios; diria, aliás, que o pecado deste romance está precisamente na necessidade que Afonso Cruz encontra, à medida que se aproxima do fim, de explicar exaustivamente articulações, recolocar pontas soltas, retomar fios que seriam ou não coincidências - e a obra acredita que não sejam, porque todas as coincidências são simplesmente aquilo a que o observador não consegue dar um sentido que, no entanto, o teria como parte de um plano mais elevado e desconhecido.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

IRVIN D. YALOM: O PROBLEMA ESPINOSA



Yalom, psicanalista norte-americano de ascendência russa e judaica, tornou-se conhecido como autor de vários romances, vagamente históricos, acerca de figuras importantes da filosofia. O seu livro sobre Nietzsche, por exemplo, lê-se com algum interesse, bem como o seu livro sobre Schopenhauer. Em ambos, está presente o que poderíamos definir como uma «psicanálise arcaica»: antes de Freud ter estabelecido a sua teoria, filósofos como Nietzsche ou Schopenhauer, convertidos em personagens literárias, são apresentados nos seus mais íntimos debates emocionais, procurando que aflorem, à consciência, sofrimentos enquistados e inconscientes.
Em geral, os romances de Yalom seguem dois tempos - nos nossos dias, certa personagem identifica-se com o problema do filósofo em causa, é levado a ler a obra deste, e a perceber, nos textos, o processo filosófico que funciona como uma terapia, que o auxilia também.

Com "O Problema Espinosa" estamos perante o mesmo método.
Por um lado, Baruch [ou Bento] de Espinosa é o extraordinário pensador judeu que, por amor à razão e por desprezo por todos os "idola" e superstições, acaba sendo excomungado pela comunidade judaica de Amsterdão, onde se radicara.
Por outro lado, séculos após Espinosa, Rosenberg, uma figura importante do regime nacional-socialista (embora suscite sentimentos ambivalentes entre os próprios líderes nazis), descobre a importância filosófica «deste judeu». Descobre-a através de Goethe! Descobre-a através do testemunho de admiração pela filosofia de Espinosa, expressa por alguns dos expoentes da Literatura alemã, ariana. Em diários, na correspondência, referem o pensamento de Espinosa como tendo-lhes  devolvido a paz de espírito e uma inesperada intimidade com o segredo da Natureza.

É porventura verdade que, para quem não conheça Espinosa nem se interesse por filosofia, este romance possa ser inutilmente complexo: perde-se em longas discussões entre as personagens, a propósito de Deus, do judaísmo, de um radicalíssimo determinismo; mas para aqueles a quem a filosofia ilumine [sobretudo para aqueles a quem a filosofia de Espinosa interpele], a obra faz todo o sentido - reconstitui um Espinosa historicamente possível e muito interessante, até nas suas contradições. Há uma dedicação e uma penetrante compreensão deste homem, que se entregou inteiramente ao pensamento, lutando contra as paixões, em busca do conhecimento perfeito do ser perfeito, de uma visão, de uma "theoria" libertada de todos os preconceitos, mas que, na prática, não teria superado os seus próprios preconceitos. Como é natural; e um exemplo é o da sua posição retrógada acerca das mulheres.
Yalom é, pois, uma vez mais, o psicólogo subtil e profundo, o psicanalista experiente, o estudioso próximo dos homens concretos e das questões abstractas da filosofia.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ROBOT IGNORANTE

Há algo sinistro num sistema persistente, mas que não funciona.

Já vos sucedeu tentarem fazer um comentário a certo "post", num blogue, e, para que haja a certeza de que «você não é um robot» [isto faz sentido?], mostrarem-vos um conjunto de letras - umas letras ilegíveis, que terão de copiar para que o vosso comentário seja aceite?

Já, bem sei que sim.

Mas já vos aconteceu não perceberem as letras? Eu sei, elas mudam. Mas já aconteceu não perceberem o segundo conjunto? Nem o terceiro, nem o quarto? Com o «sistema» repetindo: «Não corresponde, tente de novo»?

Ter-vos-á sucedido, como a mim, desistirem à vigésima tentativa, com um palavrão e um gesto de raiva?

Das duas uma: ou o sistema é mau. Ou fica provado que sou mesmo um robot e não o sabia.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

WALTER BENJAMIN



Graças às leituras que uma amiga tem vindo a fazer para o seu doutoramento, e de que me dá regularmente conta, redescubro o meu amado Walter Benjamin.
Acredito que o meu primeiro contacto com a obra tenha sido feita através de uma tradução francesa, que comprei numa fnac, em Paris - ainda em Portugal se não sabia o que era isso de "fnac": podem, portanto, calcular os anos.
Desde o primeiro momento, para mim, Benjamin foi uma conjugação em que nenhum elemento se poderia desprezar: a figura, como um ícone, remetendo para um misto de Trotski e Chaplin, com os caracóis despenteados, os óculos redondos, de aros filiformes, o bigode: a expressiva timidez, o olhar típico e paradoxal de um observador atento e distraído; depois, o seu marxismo heterodoxo, numa altura em que o meu próprio marxismo ousava ensaiar alguns desvios na ortodoxia; finalmente, a inteligência brilhante e vasta, que acertava nas questões interessantes muitos anos antes de eles começarem a estar na ordem do dia, a sua circulação pelos assuntos da poesia e do romance, da política, da cultura, da teoria da arte ou da filosofia.
Como relativamente a Zweig, culturalmente semelhante a Benjamin em tantos aspectos - e tão dissemelhante em outros -, intimida-me e angustia-me imaginar o que poderá ter conduzido estes espíritos brilhantes a decidirem pôr termo à vida. Que a sua condição de judeus perseguidos por um regime patológico os tenha feito sofrer experiências físicas - e psicológicas, e intelectuais -, que os marcaram para sempre possa ser a resposta, nada me explica.
Mas todas as suas teses são de uma originalidade absoluta. Lê-se Benjamin com uma alegria da descoberta e da aprendizagem que, na filosofia, me parece vizinha da que Nietzsche proporciona, ou Montaigne, mas poucos mais. A mesma euforia das intuições, a iluminação breve e contagiante, o prazer do modo de expressão certo, frequentemente aforístico, a que não se pode acrescentar ou retirar o que quer que seja.
Benjamin estava esquecido. Esquece-se facilmente, como tudo o que exige trabalho e não está nas bocas do mundo. Mas permanece sempre a um passo da redescoberta, e a redescoberta dá-se com a curiosa sensação de que, de facto, só aparentemente o esqueceramos. Obrigado, Ana, por mo teres devolvido. 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

PEDRO MEXIA

A meu convite, Pedro Mexia esteve, quinta-feira, na Biblioteca da escola onde sou professor, para uma sessão em que, no suporte da sua ironia, do seu sentido de humor contagiante e do seu saber enciclopédico, nos falou de Literatura, de Poesia e de crónica.

Quando falo do saber enciclopédico de Mexia, não me limito à fórmula comum. Ele é o intelectual que oscila tranquilamente entre Tintim ou o Surfista Prateado, e Eça de Queirós ou Virginia Woolf. E já sabemos que, para nos limitarmos aos três temas eleitos, abdicámos cruelmente de outras possibilidades da conversa - o cinema, o teatro, a rádio, a psicologia, até a filosofia, ou a economia. Isto é, Pedro Mexia representa, em Portugal, o que mais se aproximaria de um homem do Renascimento.

Que os livros deste homem inteligente e culto sejam tão pouco procurados, pode até não espantar. Mas é procupante. Que as editoras optem por destruí-los - guilhotiná-los - em vez de os enviarem para bibliotecas ou escolas, é imperdoável. Mas é o que sucede: procurando pela poesia de Pedro Mexia, discreta e perfeita, fui saindo, de sucessivas livrarias, com as mãos a abanar.

Mexia não tem romance. Tem teatro, mas duvido que o achem. Tem sobretudo livros que reúnem algumas das suas crónicas mais sagazes (que o são todas elas, de resto) ou compilações dos posts dos seus blogues. Oferecem-nos momentos impagáveis de observação, teoria, sensibilidade e humor. Poesia, já só talvez pesquisando na internet - descobrindo-a pelo menos aí, ou pedindo-a emprestada às bibliotecas, que para isso servem...

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

NIETZSCHE: ESTA PERGUNTA SERIA DE UM DEUS OU DE UM DEMÓNIO?


«O maior peso. Como seria, se um dia ou uma noite um demónio imperceptivelmente se arrastasse até à tua mais isolada solidão e te dissesse: «Esta vida, tal como a vives agora e tens vivido, terás de vivê-la uma vez mais e mais vezes sem conto; e não haverá nela nada de novo, mas sim te hão-de voltar cada dor e cada prazer, e cada pensamento e suspiro, e tudo o que é indizivelmente pequeno e grande na tua vida, e tudo na mesma ordem e sequência, e de igual modo esta aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência está sempre de novo a ser virada, e tu com ela, ínfimo grão de pó da poeira»; a questão em relação a tudo e todos, sobre se "queres tu isto uma vez mais e mais vezes sem conto?" permaneceria com o maior peso sobre as tuas acções! Ou então como terias de te sentir bem em relação a ti próprio. Não te lançarias ao chão, rangendo os dentes e amaldiçoando o demónio que assim falava? Ou experimentaste alguma vez um portentoso instante, em que lhe responderias: «Tu és um deus e eu nunca ouvi nada de mais divino!» [...]»

Nietzsche, A Gaia Ciência    

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

LIVROS QUE TEREI DE LER [mas não estão traduzidos e não tenho conseguido encomendar no original]

1. Sylvie, de Gérard de Nerval; (elogiadíssimo por Umberto Eco, que lhe dedicou uma tese; considerado uma verdadeira revolução literária - sobretudo se nos reportarmos à época da sua criação -, é uma influência maior de Proust)

2. Tobacco Road, de Erskine Caldwell (de que a minha mãe me falava tanto: espécie de contraponto sarcástico a Vinhas da Ira...)

3. John Ruskin (apesar de gentis contributos, dos meus leitores, sobre como chegar à sua obra, o certo é que ainda não consegui lê-lo. Outra influência de Proust)

4. Henrique IV, de Luigi Pirandello (considerada, por Bloom - o Harold, não o Allan - uma obra nos píncaros do génio.)

domingo, 19 de agosto de 2012

AINDA SOBRE MIDDLEMARCH



A minha amiga Andy, sob efeito do entusiasmo que, ao longo de uma tarde inteira, me fez falar obcecadamente acerca de Middlemarch, decidiu dar início à leitura da obra.
À noite - nessa noite ou noutra, sinto-me incapaz de precisar - vinha frustrada.
O estilo parecia-lhe "old-fashioned" [Andy, esposa de meu incontornável primo, é norte-americana]; na comparação com Jane Austen, George Eliot soava-lhe pouco convincente.
Ralhei-lhe pela comparação. Eliot é Eliot. Pedi-lhe que não desistisse.
Hoje, tinha um mail, que me enviou do Algarve: está - como eu esperava - a gostar imenso de Middlemarch.
Explicava-me a razão das comparações: embrenhando-se em território novo, precisa de uma referência - provavelmente com características semelhantes, de época, cultura, género ou outras - para saber o que está a perder e o que está a ganhar, para saber o que pedir e como progredir.
Afirma que as personagens de Eliot são muito mais profundas, extremamente bem trabalhadas, carregadas de ângulos e subtilezas - «quase», escreve, «como em Proust»; rematando, porém: «But Proust is still the best».

A tudo o que tenha já referido sobre Eliot, gostaria de acrescentar este pormenor. Observem a qualidade com que a autora pega naquilo a que chama, em dado ponto, «o recanto perturbador da consciência»; atentem na maneira como, em redor da previsível proximidade da morte do chantagista, o chantageado, que está a sós com ele, e a quem a sua morte conviria, e que pode ou não cumprir a prescrição do médico, ou dar-lhe a beber o álcool que lhe será fatal, não sabe realmente o que o move; até que ponto os seus actos são deliberados, e culpados, ou devidos a uma suspeita série de inadvertências e esquecimentos: há fronteiras tão ténues, a auto-consciência tem tantos alçapões e espelhos...; e observem, nos diálogos, a laboração do "equívoco": o leitor sabe [é um exemplo] o que Doroteia pensa e quer, o leitor sabe o que Will pensa e quer, o leitor sabe que eles se amam [embora Doroteia não entenda que o que sente é amor, senão muito tarde] e, portanto, é com alguma inquietação que seguimos a conversa em que se enganam completamente, só porque nenhum dos dois pode ler o outro à transparência; nenhum deles pode senão "interpretar" palavras que, mesmo que sinceras, nunca dizem tudo e acabam sempre sugerindo possibilidades diferentes, e até opostas às que o emissor pretenderia que se compreendesse.

E aqui, sobretudo aqui, Eliot é do melhor que tenho lido.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

GEORGE ELIOT: MIDDLEMARCH



Middlemarch foi recentemente reeditado em português - porventura pela Relógio d'Àgua, mas não estou certo.
Pensava há muito ler este romance; vê-lo exposto nas livrarias, volumoso, apetecível, convidativo, pôs-me em estado de caça, como um vampiro captando o odor de uma jovem de bom sangue.
Um pormenor: a novel edição custa 30 Euros.

Não discuto se é caro, se as editoras são empresas geridas por glutões, se é justo para o leitor, se, pelo contrário, não há preço que pague um livro. Ou se ou se. A minha questão é de natureza diversa: pessoalmente, não posso dar-me ao luxo de desembolsar 30 Euros por nenhum livro, mesmo sabendo que para mim não se trata realmente de um luxo mas de um bem de primeiríssima necessidade. Assim, se este blogue de um leitor voraz mas esmagado pela crise, pode contribuir para que os seus seguidores sejam postos perante algumas pistas que os conduzam aonde e a como ler o que queiram gastando menos, então eis o que fiz. Nada de transcendente, aliás: dirigi-me à Biblioteca Municipal de Oeiras. Middlemarch não está à vista, mas no depósito encontra-se a tradução extraordinária, dos anos 50 ou 60, que me introduz na força deste romance escrito por uma mulher que assinava com um pseudónimo masculino.
Nos grandes escritores britânicos do século XIX, como James [porque, para os efeitos que importam, considero Henry James um escritor culturalmente britânico; e por alguma razão acabou por se naturalizar inglês] ou Hardy, notamos um vínculo vivíssimo, um ar de família, que dificilmente se analisaria, mas tem que ver com a inteligência irónica dos diálogos, um certo gosto pela boutade, a perfeição no descrever de lugares ou caracteres, a exposição do ridículo em que se revelam as inflexíveis hierarquias sociais britânicas ou o trágico de sentimentos que explodem, contrariando e desafiando, romanticamente, essas hierarquias. Lendo Middlemarch, descobrimos, encantados, onde reside um dos fundadores, uma das raízes próximas  desse "tom" subtil, que vai descrevendo, vai narrando e, simultaneamente, reflectindo acerca das pessoas e dos actos.

"Middlemarch" é o nome de uma pequena cidade de província. Em torno das personagens centrais de Middlemarch Town, as famílias de prestígio, com os seus renhidos e em geral inconsequentes conflitos por influência política ou social, as suas filhas ou filhos casadoiros, os eclesiastas de religiões rivais, o grupo de médicos antigos, agastados pela presença de um doutor jovem, recém-vindo, as reuniões de salão nas casas importantes, George Eliot cria uma história em que se conjugam, necessariamente, diversas histórias e sub-histórias, nenhuma das quais é menor em interesse. Fá-lo com aquela noção do "todo" complexo, tão cara à literatura do século XIX: como se erguesse uma monadologia em que cada mónada é uma obra completa e fechada em si mesma, mas de um ajustamento rigoroso à estrutura em que se completa.

É um romance sobre o eterno equívoco entre gerações, e sobre o eterno equívoco a que se chamou amor. É, como em Karenina ou Bovary, ou na Luisinha do Primo Basílio, um romance acerca das virtudes nefastas dos casamentos: e, naturalmente, sobre esses fogos fátuos que são as paixões interditas, aparecendo inopinadamente para atiçar o lado inconformado de todos [quase sempre: todas] os que se confrontam com a realidade quotidiana, medíocre e sem chama, do que, um dia, parecera o casamento ideal.

Há uma preocupação com o estilo que nunca é fatigante (como ocorre, por vezes, em Henry James); uma impressionante sageza de como suspender uma personagem, ou uma situação ou uma trama, para retomar outras, e como, mais adiante, regressar às que nos tinham deixado saudades ou em cuidado; e há, sobretudo, a voz do narrador, que nos encanta e de quem nos tornamos imediatamente cúmplices: esse narrador assexuado, mas que tão bem conhece os homens e as mulheres, omnisciente, de certa forma, mas não divino, porque se engana e retrocede - como quando, num delicioso capítulo, principia a falar de Doroteia e, de súbito, se interrompe para se interrogar: Mas por que estamos constantemente a falar sobre Doroteia, como se não houvesse nada a dizer sobre o senhor seu marido? E toma-o, então, como centro da sua narração ao longo do capítulo.

Middlemarch é um romance imprescindível. Faz parte de um clube restrito. Poderíamos nunca descobri-lo, e talvez nem todos o amem como eu o amo já. Mas faz parte de um clube restrito e altamente selectivo: é uma dessas obras que, mais tarde ou mais cedo, terão de ser lidas.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

NOEL ROSA: CONVERSA DE BOTEQUIM


Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

ANDRÉ GIDE: JOURNAL



Meu avô lia livros em francês.
Eram uns volumes da Gallimard, que ora lhe via entre as mãos, ora pousados em mesinhas de cabeceira, do formato e da espessura certos, com as capas que, quando não forradas, deixavam ver os títulos e os nomes de autores que, naturalmente, me fisgavam o interesse desde então: Pascal, Proust, Alain.

Sobre Proust, estamos conversados: quando, muito mais tarde, principiei a lê-lo com intenção e possibilidade de chegar ao fim, percebi que nunca mais lhe preferiria nenhuma outra obra na vida; acerca de Alain, não estamos minimamente conversados: continuo à procura dos volumes dos seus Propos; tento, periodicamente, encomendar o primeiro, ou o segundo ou qualquer um, ansioso por compreender o fascínio que a filosofia leve, mas não superficial, fragmentária e perspicaz, de um professor de província [ou estarei totalmente equivocado?] poderia ter exercido sobre o meu cosmopolita avô.

Comprei e venho lendo, por estes tempos, o Journal, de André Gide: não o diário na íntegra, que terá milhares de páginas, mas páginas sabiamente escolhidas, e convenientemente apresentadas, de forma a penetrarmos no espírito de Gide, como se entrássemos em sua casa. Porque Gide é particularmente acolhedor: e, falando do seu árduo treino de piano, da sua escrita, da sua inquietação perante a dificuldade, em certas fases, que essa escrita lhe custa, ou da sua fé e das suas crises ou das suas leituras [interessantíssima a referência a uma "constelação" de afinidades, de que fariam parte Nietzsche, Dostoievski e Blake] e, sobretudo, das suas conversas, senta-nos à sua mesa, viaja connosco na carruagem que nos faz ver, aproxima-se no seu génio e na sua fragilidade. Às vezes, com o pequeno livro nas mãos, sinto-me regressado à infância: tornei-me, de certa forma, o meu avô: este livro, que sublinho, que cheiro e temo estar lendo demasiado depressa, arriscando-me a concluí-lo de um momento para o outro, faz parte daquela "constelação" de livros a que a imagem do avô me estará para sempre associada.

Relativamente a Gide, mantinha, até agora, uma reserva tensa. Custava-me que fosse um dos responsáveis - aliás, parece que o principal - por que a obra de Proust não tivesse sido inicialmente publicada; custava-me a leitura que fez de "À la Recherche", tratando-a como a série interminável de descrições de bailes, nos salões aristocráticos de Paris. Lendo o seu diário, entendo-o um pouco melhor. Percebe-se que Gide é penetrante, e que tem sempre razão nas suas reflexões - isto é, pelo menos uma certa razão, mesmo nos casos em que o tempo viria mostrar que, no essencial, a sua visão estava errada. Há sempre qualquer coisa de subtil e profundo que ele "capta"; saber se essa "captação subtil e profunda" é o importante, o que há-de contar, isso depende mais do porvir, do sentido do porvir, ou do que a História, na sua parte de acaso, acabar por distinguir...

Tudo o que Gide diz a respeito de Proust, nomeadamente da sua relação enganadora com a homossexualidade, é absolutamente correcto. Que o acuse de, na sua obra, tratar falsamente a homossexualidade, expondo-a num retrato que guarda dela unicamente o cómico e o sórdido, transferindo toda a beleza e inocência para as relações heterossexuais, é indiscutível. Que Proust tem de ser lido para além disso, porém, no sentido em que a sua obra é inesgotável e infinitamente superior a esse aspecto, é uma evidência que André Gide recusou. Eu diria que a sua homossexualidade, assim confrontada, não lhe possibilitou ser um leitor total...

domingo, 29 de julho de 2012

GLENWAY WESCOTT: O FALCÃO PEREGRINO


Li-o, sob o estado de graça proporcionado pelo facto de haver sido um livro recomendado por um leitor de primeira qualidade: Pedro Mexia.
Gosto muito de Pedro Mexia, poeta e ensaísta, cinéfilo e radialista; procuro-lhe os livros, as crónicas, oiço religiosamente o programa em que, na TSF, colabora com Carlos Vaz Marques e o mais que brilhante Ricardo Araújo Pereira.

O livro em que PM me aconselhava um outro livro é a compilação dos textos do seu blogue, "Estado Civil". Chama-se precisamente "Estado Civil" e merece, também, uma palavra a que um dia me não furtarei. Furto-me hoje, para falar do tal romance que ele refere, aí, com uma paixão contagiante.

Não conhecia "O Falcão Peregrino", nem conhecia o seu autor, Wescott, da geração de Fitzgerald.
"O Falcão Paregrino" é um romance breve: ou uma novela longa?
Não importa. Importa reconhecer a mestria com que, na extensão justa, como num poema em que nada pode ser acrescentado ou suprimido, o autor vai desenvolvendo uma trama de relações que se cruzam e, no arco de uma tarde, acabam por revelar segredos, tensões que se ocultavam, intimidades que se mantinham sob papéis estabelecidos. Algo no género de "Quem tem Medo de Virgínia Woolf'?", que é um dos meus filmes predilectos: um casal visita um outro casal. [No "Falcão", o casal que recebe é um casal de circunstância, uma vez que se trata do narrador e de uma amiga, que ele próprio visitava, tal como o casal que entra depois em cena está, também, de visita].

Os visitantes são intensos e dramáticos. Ele, de uma comicidade e à-vontade que mascaram raivas e ciúmes longamente recalcados, ela, a proprietária do falcão, aristocrática e histriónica, absorvida pelo falcão que seria, ali, o protagonista dominante, simbólico, prisioneiro altivo, a própria figura de um instinto perverso, indomado - mas, por isso mesmo, frequentemente desadequado e ridículo no seu encarceramento.

Enquanto, na sala, um drama se desenrola na sua linha febril, «lá para dentro» [na cozinha] outras personagens vivem uma linha dramática paralela e quase subterrânea, de que por fugazes momentos nos chegam sinais. [O cozinheiro e a criada residentes, espanhóis, e o "chauffeur" dos visitantes.]

Mas nos desenlaces das duas linhas, que nunca compreenderemos muito bem, ou compreenderemos de forma diferente porque cada leitor construirá, daquela história, uma história pessoal, uma interpretação possível, culmina uma narração contida mas não linear, uma intensificação de segredos que perpassam e de histórias sob a história, que não são contadas e, no entanto, marcam aquelas personagens, e as suas relações, e os seus actos.

O génio está na contenção. Na forma de "simbolizar" sem reduzir nem fugir à descrição de uma realidade plausível. De certa forma, na beleza da linguagem. Na capacidade de reunir tanto em tão pouco, de modo a sugerir e a quase revelar, deixando, no entanto, tanto por revelar. O génio está, até, na simplicidade do que tem inúmeras leituras, e camadas, e cavernas. Como pode este homem ser praticamente um desconhecido no meio de uma geração tão marcante de escritores norte-americanos?  Porque era pior que os demais? Porque os seus romances não acertaram no gosto do público da época?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

COLLEEN MCCULLOUGH: PÁSSAROS FERIDOS



Lembram-se de Richard Chamberlain? Foi o "Dr. Kildare". Mais tarde, provavelmente nos anos oitenta, representava o papel de Padre Ralph de Bricassart na sua veloz subida pelos patamares da hierarquia da igreja católica, apostólica, romana. A série televisiva em causa chamava-se Pássaros Feridos.

Talvez por causa de Chamberlain, que era um canastrão, ou por força da inevitável analogia com outras séries norte-americanas exibidas pela mesma altura, todas elas demoradas sagas que se moviam sob a ideia fixa de alguma família poderosa e conflituosa, nunca o romance Pássaros Feridos me suscitou a menor curiosidade. Apesar de o ter comprado, há anos. Principiei a lê-lo no outro dia tão-só porque ali estava ele, em alguma estante remota; e porque (é verdade), em tempos de crise, tomei a sábia decisão de comprar menos e "reler" mais ou, alternativamente - foi o que aconteceu - descobrir obras que, por isto ou por aquilo, fora deixando para trás.

Pássaros Feridos narra uma história que desperta ecos de muitos romances de que gostei. Não o digo para o diminuir, como se se tratasse da maçada de andar a tropeçar, página a página,  no "déjà-vu"; digo-o para o enaltecer: o facto de beber em outras fontes (e que fontes!) não significa aqui senão que Colleen McCullough teve o anseio de escrever um clássico. O seu modelo é certamente reconhecível: mas é notável como, buscando, para as suas ideias ou para as suas personagens, algumas das referências mais belas e mais intensas da literatura contemporânea, constrói um romance de uma pujança e de uma autenticidade que não deixam partir o leitor sem se cravarem fundamente.

A primeira das grandes obras para que esta remete é Lolita.  Aí encontra a substância do amor obsessivo de um homem maduro por uma criança. É o rasgão com o "politicamente correcto", a ousadia de tocar no inaceitável, não o tornando aceitável mas compreendendo-o, sempre no limiar do pavor do pecado; ainda mais porque se fala de um padre, isto é, de uma pessoa para quem a ideia de pecado não é desprezível.
Outra das grandes obras seria O Monte dos Vendavais: pela personagem atormentada, o filho rebelde e renegado, com o seu fervor de vingança, o seu desamor envolvendo um amor incompreendido e impossível; ou pelo magnífico tema - dificílimo de tratar - de um "falso casamento": um casamento de conveniência, que corroerá os que o escolheram como hipótese de esquecer o amor impossível. Mas vejo ali, também, evidentemente, E Tudo o Vento Levou: a mesma grandeza de espaços de que se erguerá uma Nação (no caso de Pássaros Feridos, a Austrália, no outro, os EUA), e o mesmo tipo de relações tumultuosas e equívocas, no âmbito de uma família que procura apoiar a filha de certo modo rebelde, mas também dirigi-la, manipulá-la.

É um romance vagaroso e vigoroso. Sem tempos mortos nem, o que me parece ainda mais difícil, momentos precipitadamente resolvidos. Cada nova perturbação, ou escolha, desenvolve-se num rumo suplementar, um fio mais, que a autora segue, sem o apressar, mas não perdendo de vista uma totalidade magistralmente edificada.

terça-feira, 12 de junho de 2012

GIL DUARTE & ANA CRISTINA MARQUES. ZEN: HISTÓRIA DAS MINHAS VIDAS

Podem ver a capa aqui na margem esquerda do Blogue.
É a última criança produzida, em co-autoria (como todas as crianças, aliás), por mim e pela Ana Cristina. Sou o escritor da história de Zen, o gato, e Cristina, mais do que a excelente ilustradora, é a impressionante autora da capa, da paginação, de todos os contactos que permitiram que o livro exista como objecto físico.

Quanto dinheiro se venha a obter em vendas, integralmente reverterá para a Causa dos Gatos [e para a Casa dos Gatos que é a GV].

Tem graça, neste projecto, que certa vez eu tenha dito à Cristina: «Odeio livros sobre animais». Estávamos numa livraria e folheávamos uma coisa chamada "Marley"; ou seria "O Filósofo e o Lobo"? Ou aquele outro que já não me lembro como se chama? É que uma coisa não tem que ver com outra: gostar muito de animais não há-de significar, por força, gostar muito de livros sobre os ditos. Mas, bom, contraditoriamente, "Zen" é já o segundo. [Lembram-se de "Mira-Lata"?]

Para o comprarem? Para o encomendarem? Não sei. O livro escapou-me, nunca me pertenceu - mas, também, nenhum livro pertence ao seu autor, a não ser vagamente durante o tempo em que está sendo escrito. Mas hei-de pedir um "link" que aí vos conduza...

segunda-feira, 11 de junho de 2012

DON DELILLO: COSMÓPOLIS

Cosmópolis é um romance de que tenho ouvido falar muito, suponho até que por causa do filme de Cronenberg, que levou a uma reedição da obra pela Relógio d'Água.

Por alguma razão, DeLillo nunca terá sido um autor em que eu reparasse. Duas ou três incursões por livros seus, comprados em saldo, resultaram em frustrantes e inaceitáveis desistências. E já que enveredei pelo desusado caminho da sinceridade, acrescento esta pérola: não tinha sequer ouvido falar do filme, nem estava sob a influência dos conselhos de Adolfo Luxúria Canibal (por exemplo) quando trouxe Cosmópolis da Feira do Livro, simplesmente porque se encontrava a um preço muito recomendável.

O tema é de uma simplicidade atraente. Eric Parker, um jovem implacável, extremamente rico e poderoso, percorre as ruas de Nova Iorque porque decidiu ir cortar o cabelo. Mas na imensidão caótica das ruas nova-iorquinas, assiste, teme ou é levado a interagir com diversas peripécias. Don DeLillo elabora uma narrativa filosófica, perturbadora, por vezes desgastante mas, de novo, subitamente empolgante, saltando entre o interior da Limusina, onde se respira um ambiente controlado - e em busca de um controle total, sinalizado por ecrãs, pelo médico que observa o jovem Parker, por teóricos, de vária ordem, que com ele dialogam - e o exterior, onde tudo é choque e imprevisibilidade [a ameaça de morte a Parker, o cortejo do Presidente da República, o funeral de um cantor rap, a disseminação, por várias ruas e artérias, de manifestações anti-globalização].

A escrita é intensa e muito bela. Confesso: não o esperava. Cada período tem de ler-se com o vagar de quem lê poesia, de quem se deleita no prazer da forma, tanto ou mais do que na descoberta da história. Como num cruzamento feliz entre Em Busca do Tempo Perdido (percebe-se que Proust é um autor caro a Don DeLillo) e Nova-Iorque Fora de Horas, Cosmópolis é, no entanto, um texto muito desigual. Por vezes, parece esperar-nos pacientemente: somos porventura nós, leitores, que nos atrasamos, ou não comparecemos ao encontro; nesses momentos, teremos de suspender e recomeçar mais tarde. Outras vezes, o encantamento das palavras leva-nos com elas, sucedem-se as surpresas, há "teorizações" que nos furam o espírito, sínteses brilhantes de ironia e cepticismo.

Nos contemporâneos norte-americanos procura-se necessariamente uma alegoria social. Cosmópolis é uma alegoria: a cidade como crise; a reflexão sobre o fundamento reduzido à busca de um padrão económico; a ida ao barbeiro como odisseia.

terça-feira, 29 de maio de 2012

GOGOL: ALMAS MORTAS

Não sei muito bem por que razão o tradutor e prefaciador de Almas Mortas, na belíssima edição da Estampa, sentiria necessidade de tratar Gogol como um escritor menor na literatura russa. Nem sei porque lhe há-de parecer que Almas Mortas é, unicamente, o nascer do sol, sem o qual, concede-se, o sol não poderia atingir o zénite [Tolstoi, Dostoievski].

Mais do que um dos iniciadores do realismo [com as suas descrições de personagens cujas interacções, entre si e com o mundo histórico e cultural a que pertencem, reconstitui, com tanta força, aquela Rússia do século XIX, feudal, burocrática, militar e religiosa], o que me interessa em Gogol é a sua veia satírica, um humor ferino, um talento para a caricatura. Se faz sentido defini-la assim, trata-se de uma "caricatura realista": porque imagino uma Rússia em que aquelas personagens grotescas fossem perfeitamente possíveis, com as suas "grandes pencas", a sua velhice assexuada, uma avareza extrema ou uma generosidade tonta, as suas cerimónias, os seus intróitos, os seus salamaleques, os infindáveis percursos da burocracia e a sempiterna marca militar, em pinturas de guerra, ou de grandes generais russos, decorando as paredes.

É um poema (como o denomina o próprio Gogol) acerca de um homem que compra, a proprietários vizinhos, "Almas Mortas": "Almas" sendo o nome por que eram designados os servos pertencentes a cada propriedade; e os servos falecidos, isto é, as "Almas Mortas" [ainda sujeitas porém a um determinado imposto] sendo aquelas que, por alguma secreto móbil, interessam ao comprador em causa. É estranho não se perceber como este texto prefigura, brilhantemente, algumas das incursões contemporâneas por uma certa realidade cómica e sinistra, desde O Processo ou Berlin Alexanderplätz até ao surpreendente Viagem à Índia.     

sábado, 19 de maio de 2012

P.D. JAMES: MORTE NO TRIBUNAL

Vou decepcionar alguns dos meus leitores.
Penso que Agatha Christie é uma das mais produtivas escritoras de romance policial; numa certa perspectiva, é, sem dúvida, a mais interessante: as suas personagens são extraordinárias, as intrigas muito bem construídas. Miss Marple é deliciosa, Poirot, insuperável. Então?! O que falha em Christie será, se quiserem, a dimensão literária.

Não lhe pedimos isso. Tendemos a considerar que não faz falta. E não faz. Exigimos-lhes um assassinato, e lá está ele, exigimos-lhe que o criminoso permaneça invisível enquanto possível, e não o descobrimos, exigimos-lhe que o detective vá sondando e revelando os mecanismos da verdade, no seu raciocínio surpreendentemente ágil, e é o que se nos oferece. Em comboios ou em iates, muitas vezes numa Inglaterra pacata e rural, ou na turbulenta Londres, ou em longínquas paragens. Por que haveríamos de querer algo que não fosse exactamente isto?

Apercebemo-nos unicamente do que falta, quando lemos um romance de P. D. James. Porque somos colocados perante uma história que não poderia não ser policial, mas em que, simultaneamente, esse carácter policial se torna uma dimensão, apenas, entre outras diversas. É elaborada como uma riquíssima trama de personagens com densidade psicológica, histórias de vida difíceis e interessantes, no contexto de problemas sociais e éticos que captam a atenção inteligente do leitor. Como fazer essa ligação sem que a densidade psicológica - e literária - seja uma quebra do ritmo policial: esta é a verdadeira questão. Como não abrandar o interesse na solução do crime, ao mesmo tempo que se aprofunda cada personalidade, cada relação e o todo da situação: esta é, numa outra fórmula, afinal a mesma pergunta.

E, num romance desta natureza, pouco mais há a dizer. Assistimos ao encontro do cadáver: uma advogada competente mas extremamente crítica e pouco amada; conhecemos a filha, com quem viveu desde sempre uma relação sem amor nem compreensão, tempestuosa, o choque de figuras firmes, que escondem tantos complexos e fragilidades; conhecemos o namorado da rapariga, que a advogada defendera mas desprezara, e provavelmente considerava culpado da morte da tia; o ex-amante e o ex-marido, ou o grupo de advogados, imerso numa conturbada crise de sucessão: pretextos para a reflexão sobre o envelhecimento e o receio de envelhecer, as invejas e os ressentimentos. Tudo material para o trabalho de um paradoxal inspector-poeta [poeta publicado, aliás], de estranho nome (Dalgliesh, não é?), que vai lendo os caracteres, naquela sua leitura imbuída de sensibilidade e mordacidade.  O resto é o romance a que nos entregamos, recomendado a quem não procure, num policial, somente a simplicidade das geniais deduções.

domingo, 6 de maio de 2012

ANTÓNIO BRITO: SAGAL

Infinitas razões podem justificar o interesse que temos na leitura de um certo livro.
Às vezes, nem escolhemos as razões. O livro escolhe-nos e, à medida que o vamos lendo, as razões vão-se-nos apresentando.

Não seria capaz, pois, de estabelecer, antecipadamente, dois ou três motivos únicos que tivessem de presidir à minha selecção; os romances policiais procuram-me por isto, os de ficção científica por aquilo, os fantásticos, os de terror, as tragédias, as comédias, as tragicomédias - por não sei quê. As biografias, as auto-biografias, os diários, por outras coisas. E, no meio das minhas tentativas, só tenho memória de nunca ter conseguido ler um romance até ao fim - Ullisses, de James Joyce.

Aprecio literatura de guerra? A resposta certa tem de ser: à primeira vista, não; não existe uma tentação, nem sequer uma motivação. Não me "procuram"...

E, no entanto, fui levado a ler, recentemente, dois interessantes romances sobre a guerra colonial. Até ao Fim,  do meu amigo António Vasconcelos [e de que eu próprio fui, na Biblioteca da minha escola, o apresentador]; não vale a pena por enquanto adiantar muito mais a propósito dessa história sobre um grupo de fuzileiros, lançado no mato com a missão de resgatar prisioneiros a uma coluna de "inimigos"; em plena selva, sem contactos com o exterior, apercebem-se, por vagas e raras comunicações via rádio, que alguma coisa aconteceu em Portugal. Uma revolução, provavelmente, mas com que contornos? De esquerda? De direita? Serão os "inimigos" ainda inimigos?

Leio, agora, Sagal.
Por que me interessou inicialmente Sagal? Porque topei uma referência convincente: a criança abandonada numa caixa de Margarina Vaqueiro, diante de um bordel, e que fora educada pelo grupo de prostitutas; a infância, a adolescência difícil, na Casa Pia, e sempre com ligações a um certo bas-fond, a perseguição e a fuga em frente, para o exército. É uma história de acção: "Sagal" é, ele próprio,  uma espécie de herói e simultaneamente de anti-herói, um homem de acção que aluga a sua perícia e o seu potencial mortífero a quem pague mais. Segue-se, num certo sentido, como se veria um filme de Sylvester Stallone. Somos espicaçados pela força da história, mesmo que depois nos pareça que a devemos criticar, intelectual, cultural ou politicamente. Não estou hoje a fazer uma declaração de amor pelo cinema-Stallone; estou simplesmente a dizer que, nos filmes que em geral vejo, e na razão porque às vezes me apetece ver certos filmes, há estranhas razões que a razão desconhece, há uma superficialidade imatura que precisa de se consolar com tiros e explosões...

Sagal dá-me isso, de certa forma. Mas também um pouco mais: o quê? É duvidoso; possivelmente, uma certa dimensão histórica, que remete para o passado colonial, a memória do exército português em África, o testemunho de um certo tempo e de uma ideia de civilização. Leio uma história bem construída, que recupera um passado ainda por resolver, tal como muitas das histórias de acção norte-americanas procuram recuperar o tempo e o espaço da guerra do Vietname. Na sua ambição, é um romance que nos questiona a nós próprios. Aquele racismo e aquele reaccionarismo [aliás, absolutamente primário: veja-se a descrição implacável das personagens de uma esquerda "folclórica", oportunistas, sem higiene e preguiçosas; veja-se a da Lisboa de 77, entre panfletos e sujidade, comissões de trabalhadores, conspirações e greves...], aquele racismo e aquele reaccionarismo serão os que informam a visão do autor, ou são as referências "naturais" simplesmente do narrador, isto é, de uma personagem que representa a visão que seria, necessariamente, a de um homem daquele tempo, naquele meio?

Mas o romance é, porventura, ainda um pouco mais ambicioso do que isto, e oiço, até, falar dele como de um exemplo de literatura exigente e profunda. Apontam Sagal como texto um literário em sentido forte. «Muito bem escrito», dizia-se. Discordo. Pode haver certa graça nessa voz que cruza o português literário e a expressão coloquial, quase oral, de um narrador soldado: os palavrões, as frases de macho, as interjeições básicas. Mas não me basta: algo, nesse cruzamento, está manchado por uma insuficiência estilística, uma hesitação entre o que é literatura e o que é um modo de falar de que o autor não se libertou ao entrar no domínio na escrita. Demasiadas frases feitas e lugares-comuns, que nem sempre parecem deliberados; estranho que a propósito de um outro livro do autor, Lídia Jorge usasse palavras como «um testemunho cheio de força e muitíssimo bem escrito»; em todo o caso, procurados ou não, deixam-nos com o desconforto de estarmos ao que nos soa como uma habilidade menor, uma escrita-quase...

quinta-feira, 3 de maio de 2012

BRANQUINHO DA FONSECA: O BARÃO


O pretexto é simples: entrando na Biblioteca de São Domingos de Rana, deparo com os cartazes que anunciam uma exposição sobre o escritor Branquinho da Fonseca.

Branquinho da Fonseca escreveu um romance, ou uma novela, se levarmos em conta a extensão (a qual não é a de um conto nem, propriamente ainda, a de um romance), que me pertubou o sono. Não tendo voltado a lê-la desde há mais de vinte anos, recordo-a, todavia, com uma estranha precisão, o que não é dizer pouco.

A escrita é contida, quer dizer, evita uma espécie de vertigem poética; contudo, não evita a beleza nem a originalidade. O que é curioso, porque mostra o meio-termo interessante, entre os autores que se embrenham no saborear da linguagem, esquecidos quase de que havia qualquer coisa a narrar, ou seja, uma história [ocorre-me o exemplo de José Luís Peixoto, embora eu goste de JLP], e aqueles que fazem da secura um modo de escrita, como se a história dispensasse qualquer retórica [e ocorre-me, entre os de hoje, um outro exemplo, que também não desprezo: João Tordo]: e esse meio-termo está em Branquinho da Fonseca, como em Cardoso Pires ou em algum Carlos de Oliveira; o da beleza que reside num acto de contenção mas não de despojamento, numa busca da "palavra certa" que seria, na sua exactidão, a mais bonita e, de algum modo e paradoxalmente, também a mais inesperada.

O Barão é uma novela que me apetece denominar neo-gótica, pela criação de um ambiente sinistro, todo envolto em enigmáticas sombras, e onde, ao invés de Drácula, somos postos em face do proprietário fascinante e misterioso de um título, terras, um castelo. É a reconstituição do tema do hóspede, que, sendo recebido por quem lhe dá conforto, calor, que comer e beber, e que dormir, o trava na antecâmara de alguma história antiga, um mistério adivinhado, um fascínio terrífico, e sublime, e pavoroso.

Branquinho da Fonseca anda arredado - mas José Cardoso Pires e Carlos de Oliveira também, e são certamente do melhor em que a literatura portuguesa contemporânea se realizou.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

UMBERTO ECO: HISTÓRIA DO FEIO

Por causa de quem tenha percebido que eu não gostaria de Umberto Eco, devido a um "post" em que me insurgia pelo facto de, numa conferência, ter sido ele o indesejável revelador do assassino em certo romance de Agatha Christie (o extraordinário O Assassinato de Roger Ackroyd), sinto-me no dever de desfazer o equívoco. Eco é um escritor maior. Do texto de reflexão filosófica ao de história de filosofia medieval, dos ensaios sobre estética às conferências sobre literatura, dos artigos de observação do quotidiano aos romances de grande fôlego, Umberto Eco é um devorador que merece ser devorado.

Em filosofia, de que sou um professor inábil, entro agora no domínio da experiência estética - e, para interessar alunos para os quais todas as distinções abstractas ou subtis são penosas, recupero um livro que me ofereceram há vários anos, mas a que nunca deixei de regressar, e sempre completamente seduzido. Não, não falo de História do Belo. Falo de História do Feio.

Porque o feio, como precisamente o belo, tem uma história: feita de gostos que se foram adaptando e transformando, repelências que pareciam imediatas, naturais e universais até descobrirmos que são, em outras culturas, movimentos de estima e apreço. O livro é maravilhoso. Desejei-o, folheei-o e contemplei-o, em livrarias, muitas vezes, até ter a sorte de o receber um dia como prenda. Com a beleza de imagens da fealdade e da sua representação ao longo dos séculos, ou em diversas civilizações, com excertos de textos - contos, ensaios - de muitos autores, mas, sobretudo, com a abordagem do próprio Eco, complexa e profunda, polémica e convincente, erudita e estimulante, a História do Feio é, paradoxalmente, um livro de uma perturbadora beleza.

terça-feira, 24 de abril de 2012

ANDREI NÉVI: PETERSBURGO



Anunciei, um dia, em um post, que tropeçara num autor russo que não conhecia. "Tropeçara", aliás, é literal: numa biblioteca, cheguei a chocar contra uma prateleira em que divulgavam a obra. Levei-a comigo. [Vá-se lá saber porquê. A capa? A referência, na contracapa, a este paradoxal Andrei Névi? O cheiro da alma russa? Ou, propriamente, "Petersburgo"?]

Andrei Névi era um aristocrata louco, enfant terrible et gatê, desajustado. Foi um desses intelectuais descontentes, que acreditaram ver, na revolução russa, um movimento contra o seu tédio, o seu niilismo de jovem rebelde, a sua saudade de futuro, o seu desejo de felicidade e liberdade. A obra da sua vida, escrita e muitas vezes rescrita, incompreendida, é precisamente este Petersburgo, de que Trotski, entre o fascínio e o peso da ideologia, afirmava, não sem razão: a perfeição do estilo, o rigor extremo da forma, como expressão de uma visão decadente e pessimista.

O texto é revolucionário: escrito de um modo perturbadoramente fragmentado, com reticências e travessões que separam abruptamente as ideias numa mesma frase, com hesitações que lançam o leitor numa espécie de vertigem e de incómodo, narra o complexo de relações entre um pai "geométrico" - que percepciona a realidade numa neurótica geometria: tudo lhe são figuras tridimensinais, a escada, os prédios, as ruas -, seu filho, vivendo entre uma espécie de amor-ódio pelo progenitor, uma paixão frustrada - e ridícula - por uma mulher casada e uma adesão pouco convicta ao movimento anarquista que o suga e o aproveita, uma mãe ausente que se torna subitamente presente, revolucionários que vão girando em torno do projecto de utilização de uma bomba.

Se é um romance fácil? Longe disso. As quebras e os cruzamentos complicam-se numa linguagem que é, ela própria, uma linguagem fracturada, como numa catedral em que os desvios, as transgressões e as soluções de continuidade ganham tanta importância, na visão do conjunto, como os arcos, as ligações e as continuidades. Todas as falhas são, paradoxalmente, planeadas com uma impressionante precisão. E, à maneira do "romance russo" [Tolstoi, por exemplo], os percursos individuais, as vidas concretas acabam conjugando-se numa ideia de um todo, que é a Rússia, São Petersburgo, uma época, uma revolução germinando já nas entranhas...

terça-feira, 17 de abril de 2012

DOIS CONTOS QUE LI NÃO SEI JÁ QUANDO

Lembro-me de ser miúdo e ter lido, em dois números diferentes de alguma revista, dois contos que me impressionaram.
Posto isto, não sei que revista era; e precisemos: não sei se li um conto em um número e outro em outro, nem sequer se se tratava, de facto, da "mesma" revista; e, já agora, também não garanto que fosse miúdo, ou quão miúdo seria. Na memória, vejo-me bem pequeno. Mas a memória é uma fonte de enganos e, no meio do nevoeiro, não ressaltam senão estas histórias, com toda a nitidez.

Conto-os telegraficamente:

Em um deles, narrava-se como um homem cometera um assalto grandioso. Levou muito dinheiro e escondeu-o. Tinha um sonho e infinda paciência. Suspeitaram dele, prenderam-no. Fizeram perguntas, torturaram-no. Mantinha-se, porém, em silêncio, sempre em nome do seu sonho, o qual teria de esperar. Fizeram-no passar fome, impediram-no de dormir. Perdeu a mulher, raptaram-lhe os filhos. Ameaçavam-no constantemente. A sua resposta era o silêncio: esperaria que se esquecessem e o deixassem. Esperaria o tempo que fosse preciso, sofreria o que tivesse de sofrer. Envelheceu. Vivia só, com fome, com frio - e ao fim de todo esse tempo, num raro momento de felicidade no todo da sua vida de adulto, foi desenterrar o dinheiro. E descobriu que aquelas notas estavam fora de circulação.

No outro conto, tratava-se de um [jovem] casal enamorado. Sem dinheiro, a jovem possuía algo de que se orgulhava: o seu longo e invejado cabelo; o jovem, por sua vez, era proprietário de um relógio em prata, que gostava de mirar [apesar de lhe faltar uma corrente a condizer]. No Natal, a mulher sacrificou o objecto da sua vaidade - cortou e vendeu o cabelo, com o fito de comprar a corrente em prata, lindíssima, devida ao relógio do esposo.
Acontece que a prenda deste, era um caríssimo enfeite para o cabelo dela. «Deixa lá», respondia-lhe a mulher, «há-de voltar a crescer!»
E esperava ansiosamente que ele desembrulhasse a sua preciosa corrente:- o que ele fez, para confessar que, para comprar o enfeite, tivera de vender o relógio.

E estes dois contos nunca me largaram na vida...

quinta-feira, 12 de abril de 2012

JOÃO RICARDO PEDRO: O TEU ROSTO SERÁ O ÚLTIMO






Há que falar com toda a sinceridade: comecei a leitura desta obra, com as expectativas manchadas pelo pecado radical do preconceito. Não me agradava o mito do jovem engenheiro que, subitamente lançado no desemprego, com tempo de sobra, desata, pela primeira vez na vida, a escrever umas coisas. Não o faz para dar voz a uma urgência de alma, a uma vocação profunda, a um gosto, sequer - fá-lo porque tem muito tempo e, já agora... O resto é bem conhecido: o romance ganhou o Prémio Leya, disseram-se dele exageros tão insuportáveis como: «Nunca um primeiro romance foi tão intenso», o autor foi capa do Expresso, de olhos nostálgicos e barba por fazer; entrevistaram-no; exibem-no.

Admito que neste preconceito houvesse alguns grãos de inveja. Ironizo, ou então antecipo previsíveis interpretações. Mas uma coisa é certa: não foi certamente a inveja que me impediu de, principiando a ler o romance de João Ricardo Pedro, perceber quase de imediato que se trata de um texto magnífico. Muito bem escrito, revelando aquele prazer da linguagem que caracteriza o melhor da literatura portuguesa, narra uma história a que nos prendemos pela surpresa e pelo afecto.

Um crítico chamava a atenção para a quase autonomia de cada um dos capítulos, como se as mesmas personagens fossem sendo retratadas em peças breves, descontínuas, como miniaturas ou como contos; mas isso é conversa fiada. Ao dizê-lo, arriscamo-nos, na minha óptica, a perder de vista o essencial. E o essencial é que, nessa aparente descontinuidade, nessa "autonomia" de cada um de vários contos, se ocultam linhas invisíveis, secretos nexos que só a partir de um certo ponto começam a manifestar-se, mostrando uma construção que tudo suporta desde o início e a cada passo. Mais do que isso, atentemos na precisão e complexidade dessas linhas, que solucionam problemas e esclarecem perguntas, sem peripécias forçadas nem coincidências abruptas. E mais ainda do que isso, atentemos em como nem mesmo essas linhas tudo solucionam, deixando em aberto questões que não conseguiremos esclarecer, mas que poderemos interpretar a nosso bel-prazer.

Para mim, há diversos pontos altos ao longo da narrativa [o episódio de início, com o aparecimento de um rapaz que perde o olho e a quem o olho de vidro devolve um rosto e uma alegria; ou o da prova de que os ciclistas nem precisam de sair da bicicleta para mijar; ou o do aparecimento do Índio; ou do esperma do Índio no sofá...], e um ponto máximo: o do surgimento de uma pintora sem perna que, na sala de um museu, em que dispôs o seu material, começa a pintar, reproduzindo, numa tela, em ponto grande, a imagem de uma outra mulher, também sem perna, de um quadro célebre. A imagem de uma mulher sem perna no seio de uma multidão variadíssima, ou seja, numa pintura em que ela estaria longe de ser o centro, a não ser, como acontece, que a isolássemos e todo o quadro, como por magia, passasse a ser lido a partir dessa figura.

É um livro cujas maravilhas não têm conta, quer no conteúdo, pela beleza e intensidade de cada uma dessas miniaturas, quer pelas linhas que as unem, quer na forma, por causa de uma escrita originalíssima, de raros saber e sabor. No caso, João R. Pedro faz, com a enumeração, sempre inesperada, quase ilógica, mas muito bela sempre, o mesmo tipo de revolução, no exercício do narrar, que Saramago fez a partir da pontuação. E nada disto me parece pouco.

terça-feira, 10 de abril de 2012

DULCE MARIA CARDOSO: O RETORNO












Tenho procurado a crítica, lida em algum blogue, ao romance O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Queria fazer a minha própria análise em contraponto. Mas já se percebeu: pouco daquilo que eu programe vem a cumprir-se. Perdi o blogue de vista. Numa aturada navegação, ainda me esforcei por tropeçar no referido post, mas não sei já onde esteja.



O Retorno é um retrato implacável do último dia de uma família portuguesa em Angola - e, depois, da sua dramática integração no destino: à noite tomarão o avião que os deverá transportar à metrópole. O pai e a mãe serão "retornados", mas, de algum modo, os filhos hão-de ser "desenraizados", porque não "tornam" a lugar algum e, para eles, a metrópole não tem a substância da memória, e sim a dos sonhos e a dos mitos - as raparigas que fazem brincos de cerejas, para começar pela frase com que, precisamente, o romance inicia; mas quem tenha passado a sua infância em África, sabe bem em que consistem essas imagens de um inverno com neve, cachecóis e luvas de lã, ou protectores de ouvidos, que não conhecíamos senão das ilustrações dos livros de leitura, e contudo preenchiam os nossos sonhos e a nossa ideia de Lisboa, da metrópole, da Europa.


Lembro alguns dos senãos apontados ao livro. Alguém dizia - porventura no post do blogue já mencionado - que não podíamos considerar O Retorno um livro "decisivo" acerca, precisamente, do retorno dos portugueses provenientes de África; que, afirmá-lo, só revela até que ponto nos encontramos em face de uma assustadora carência de literatura sobre esse tema. Pensando bem, é verdade: estamos perante uma notória carência de literatura de ficção sobre o movimento de retorno nos anos setenta; mas isso não significa que este se não trate de um romance "decisivo": é-o, até porque, justamente, pouco mais há. Mas não só. É-o, porque transmite uma vivência, uma maneira de estar, reconstitui a ideologia e a linguagem do colonialismo. É-o, porque o faz, tantos anos volvidos, sem atenuar a crueza da experiência.









O que nos conduz a uma segunda crítica: ao que me dizem, os Angolanos - alguns Angolanos - encaram o romance com desagrado, acusando-o de racista. Ninguém fica bem neste retrato; mas se há racismo, ele é certamente o de uma visão de época e de grupo: os colonos viam os indígenas como "os pretos", referiam-se-lhes obviamente assim e tratavam-nos, desde sempre, com o desdém da raça colonizadora; por outro lado, mais tarde, no processo da independência, militantes dos movimentos triunfantes, no meio de guerras entre si [MPLA contra UNITA contra FNLA] terão inegavelmente olhado para os brancos como o inimigo a ser perseguido, humilhado, torturado, morto ou expulso.


Portanto, O Retorno está muito longe de ser um livro "politicamente correcto". Maravilhoso, esse aspecto. Numa terceira crítica, que também li, é dito que a visão do narrador soa pouco convincente. Que toda aquela segunda parte dificilmente poderia ter sido escrita por ele. Discordo. Por quem mais, se não por ele, poderia ter sido relatada a chegada à "metrópole", a decepção na descoberta de que afinal o frio não tem fascínio, as ruelas são estreitas e as meninas não usam brincos de cerejas,ou a incompreensão dos portugueses de primeira, que não viram com bons olhos a invasão de portugueses de segunda, os quais lhes emporcalhavam os hotéis e disputavam empregos, carregando a insuportável arrogância de quem viu outros horizontes e viveu de outra forma?



O Retorno surpreendeu-me. Reavivou feridas recalcadas. Reabriu experiências esquecidas ou que me envergonhei de assumir. Rescreveu - de um ponto de vista certamente comprometido e injusto, mas incontornável - um passado próximo, da História portuguesa, em que ninguém toca e que a ninguém agrada. Falou-me, sem complexos, de algo tão simples como isto: não há progresso sem dor, nada que se ganhe sem que algo se perca pelo caminho. É uma obra absolutamente extraordinária.

sábado, 7 de abril de 2012

AGATHA CHRISTIE: O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD





Um bom romance policial deve ler-se pelo menos duas vezes.

Uma primeira, espontaneamente, sem defesas prévias (tirando as que não conseguimos descartar por completo), tentando vagamente fixar alguns indícios que nos permitam descobrir, o assassino, primeiro do que o detective-protagonista; mas se se trata de um bom romance, o que se espera é que nos enganemos: por leitores inteligentes que sejamos, por leitores experimentados que nos consideremos.

Por isso, tem de haver uma segunda leitura: aquela em que tentamos perceber os truques que o mágico escondeu na manga, os fios invisíveis que nos escaparam na primeira vez. Como é que ele fez aquilo, como nos enganou, onde nos fez tropeçar, que falsas pistas semeou.

Umberto Eco, por quem a minha admiração não tem limites, cometeu um erro crasso. Em certa conferência, de resto brilhante, em que usava o livro de Agatha Christie como um exemplo de mestria e rigor na construção, acabou falando de mais. A conferência era acerca do conceito de narrador, e, naturalmente, em O Assassinato de Roger Ackroyd, o segredo vital, ou mortal, reside numa certa forma de narrar; infelizmente, Eco não foi capaz de apresentar a sua tese acerca do romance sem, despudoradamente, revelar o assassino.

Parti, pois, para o livro de Agatha Christie sabendo de antemão quem era o criminoso. Ter-me-á faltado, então, a leitura inocente que é indispensável na fruição de qualquer policial. Mas, mesmo assim, devo dizer que este romance é soberbo; e a leitura advertida que fiz valeu bem a pena.

Lembro-me de haver ouvido descrever Christie como sendo uma autora manhosa, que arranca os seus assassinos praticamente do nada, tendo "partilhado" [palavra da moda] muito poucos indícios com o leitor: fazendo, portanto, jogo sujo. Pode ser. Mas não é certamente o caso, nesta história em que se confundem duas lógicas, e tudo depende de sermos capazes de as separar: uma lógica das aparências, e uma lógica subterrânea, a de Poirot, que nos vai mostrando que nem todos os "dados adquiridos" estão provados; nem tudo o que se assume imediatamente como óbvio foi de facto visto ou ouvido -mas simplesmente presumido.

E presumimos tanto; quando escutámos uma voz por detrás de uma porta fechada partimos do princípio de que alguém estava a falar com alguém. Quando vimos uma pessoa com a mão sobre a maçaneta da porta do gabinete, partimos do princípio de que essa pessoa estava a sair do gabinete, etc. etc.

Na dúvida metódica, cartesiana, em relação aos dados dos sentidos, Poirot torna-se, nesta obra-prima de Agatha Christie, um verdadeiro filósofo, que nos ensina a olhar para a realidade uma segunda vez. Há que pensar sem acreditar excessivamente no que vimos - ou no que julgamos que significa tudo o que fomos percepcionando...

terça-feira, 3 de abril de 2012

DOS LIVROS QUE ME OCUPAM DURANTE ESTE MEU SILÊNCIO

O meu silêncio em matéria de blogue não significa coisa alguma. Nada de ilações. Continuo de boa saúde, lendo muito, e não desisti do prazer segundo que é partilhar, precisamente, o prazer primeiro do que venho lendo.

Posto isto, acontece que um desagradável desentendimento com a empresa que nem me vou dar ao trabalho de nomear, a Zon, me tem privado de internet.

Entretanto, descobri um magnífico autor russo que me escapara totalmente; voltei ao excelente O Assassinato de Roger Ackroyd, da papisa do romance policial, seguindo uma referência de Umberto Eco, que me alerta para a mestria da autora; mais do que tudo, estou a ler - encantado, diga-se já - O Retorno, de uma premiada autora portuguesa em cujo nome, de momento, hesito. E porque o romance me parece tão conseguido, gostaria de o comentar, usando como contraponto a opinião de um blogue também recentemente descoberto por mim - graças à minha leitora Carla: obrigado, Carla, por tudo -, mas em que o romance em causa foi pouco apreciado.

É o que tenciono fazer nos próximos tempos. Com ou sem Zon. Não: sem Zon!

Me aguardem!

domingo, 19 de fevereiro de 2012

MÁRIO DE CARVALHO: QUANDO O DIABO REZA


Se lerem, no "i" deste fim-de-semana, uma série de respostas que Mário de Carvalho dispara contra as perguntas de um inquérito sobre o seu modo de escrever, perceberão melhor tudo quanto eu possa a seguir dizer-vos: notem a mordacidade à flor da pele, um humor ferino e o talento extraordinário para a desconstrução e para o jogo de palavras.

O inquérito era feito a propósito de Quando o Diabo Reza. Eu sei bem o que a minha amiga São pensaria do romance: em síntese, que não contém amor; não no sentido pacóvio de que lhe faltaria ser uma história de amor, como se não houvesse outras hipóteses, mas no sentido de que a visão do autor não revela um pingo de carinho pelas próprias personagens, nem as redime, caricaturando-as em todos os podres e ridículos, como se estivessem sempre de cuecas em público. Não estou de acordo. Falta à minha amiga, pelo menos em matéria de romance, o gosto da ironia, do cepticismo e da caricatura. A São exige, de uma história, personagens amáveis - leia-se: que possam ser amadas -, e receio que essa seja a menor das preocupações de Mário de Carvalho.

E no entanto, o que ele nos dá é algo absolutamente impagável. Para já, um outro tipo de amor, que se vê na forma como cultiva a língua portuguesa. É o amor que o faz procurar palavras e construções frásicas desusadas; um texto de Mário de Carvalho carece sempre, por isso, de uma leitura atenta, lenta, erótica. Ao mesmo tempo, compraz-se [como Dickens] na reconstituição de modos típicos do falar. Ele há o falar de um tendeiro que vende "Hugo Boss" e "Chanel" de feira; ele há o de uma mãe rabugenta, entre as sessões de certa seita fanática e a telenovela, que segue também religiosamente; ele há um seu filho que, em conluio com amigos [nada menos do que uma espécie de vendedor da banha da cobra e uma prostituta], planeia um golpe de mestre; e vão cinco pessoas, em torno dos quais nos é exposto o rosto de uma certa Lisboa de esquemas e fugas, misérias e expedientes. A outra face do romance, põe-nos perante um punhado de representantes de um outro nível social. São as vítimas do plano mencionado: aquele pai já velho, certamente muito rico, mas com o dinheiro misteriosamente aferrolhado no Banco, e aquelas filhas que lhe espreitam ansiosamente a morte. Cada uma delas tem, por sua vez, o indispensável empecilho: Ester presa a um marido que ela não ama e a não ama, Beatriz servindo-se de uma mulher a dias ucraniana que será sempre, e para todos os efeitos, "a russa".

Destas pessoas emanam e circulam os sonhos impossíveis, a desconfiança e o maquiavelismo barato, de tal modo que as "vítimas" são, afinal, os eticamente menos escrupulosos. Com estes ingredientes é-nos servido um mundo melancólico e rasteiro, em plena crise, sem amor, mas imperdível, que, de algum modo, funciona como nova crónica dos Bons Malandros: a minha amiga São não a apreciaria, mas eu leio-a com um prazer amargo: por que diabo todo o chocolate haveria de ser doce?

PS: Impossível não chamar a atenção para a lindíssima e luxuosa edição da Tinta-da-China: capa dura, em roxo (ou violeta?), a ilustração, o excelente papel, com uma fita de marcar, o cheiro... Porque ele há livros e livros!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

LUIGI PIRANDELLO: UM, NINGUÉM E CEM MIL


De Pirandello [venho eu de corda ao pescoço confessar], não conhecia senão a célebre peça em que seis personagens demandam o Autor.

Foi Harold Bloom que, no seu injusto e genial livro, Génio, me fez pensar sobre o que andaria porventura perdendo. Para Bloom, Luigi Pirandello é um dos 100 génios da literatura universal, juntamente com Pessoa, Eça e Saramago. A sua obra maior seria Henrique IV, que não li e tenho procurado por bibliotecas. Mas descubro, entretanto, Um, Ninguém e Cem mil. É magnífico.

Pirandello é, como muitos autores do seu tempo (caso de Fernando Pessoa, seu contemporâneo), um escritor que experimenta, contraria os padrões clássicos e, nesse processo, acaba transformando o acto e o rosto da literatura. A ironia com que distancia as personagens de si próprias, permitindo-lhes reconhecerem-se como personagens - e revoltarem-se contra o destino - é o seu leitmotiv. A fissura, portanto, de si a si. Esta adquire, aqui, inesperados efeitos e um alcance filosófico profundos, continuamente desmontados, aliás, pela auto-ironia. Trata-se de questões que não podemos levar a sério, visto que o narrador as conduz ao extremo, revelando-se, pois, um louco em pleno delírio; mas que, paradoxalmente, não podemos deixar de levar a sério: se contidas na forma da nossa normalidade, que as não deixa extravasar, elas são as nossas próprias questões - isto é, essa espécie de ruído existencial, essa ininterrupta melodia interna de dúvidas sobre nós e sobre o que somos para os outros.

De que falam Husserl, Sartre e Merleau-Ponty senão, precisamente, disso? Como me vêem os outros? Que imagem - ou que construção fazem de e sobre mim, eles que, não acedendo à minha consciência, não podem senão pressupô-la e interpretá-la? E como acedo, por minha vez, como surpreendo e capturo essa imagem que os meus familiares, amigos, vizinhos, próximos ou distantes, engendram de mim?

A pessoa que se olha ao espelho vê-se a si própria. Reconhece-se: não, o espelho não me permite aceder ao que os outros vêem em mim. O espelho sou ainda eu - eu reflectido, eu para mim, não eu para os outros. Este romance de Pirandello é um exercício de humor: dirigindo-se ao leitor num pseudo-ensaio cómico e perturbador, segmentado em parágrafos curtos, o narrador descreve a sua odisseia a partir do momento em que a mulher - e depois os amigos com os quais procura confirmar - refere o facto de o seu nariz «pender para o lado direito», pormenor de que nunca se apercebera. Tal constatação desencadeará, precisamente, a fissura, a distância de si a si, a dificuldade no auto-reconhecimento, a estranheza.

A sua argumentação é implacavelmente lógica. E essa forma inatacável parece tornar irrefutáveis mesmo as suas conclusões e paradoxos mais absurdos. «Je est un autre», afiançava Rimbaud. Ou, como em Nietzsche, ninguém está mais longe do conhecimento do sujeito do que o próprio sujeito. [Ou, ainda, Comte: Não posso estar à janela a ver-me passar na rua; e por aqui me fico, para não parecer um snobe das referências]. Nesta desagregação de identidade, o sujeito, que era "um" mas, num certo sentido, se perdeu, acabou como nada - "ninguém"; mas, por isso e simultaneamente, "cem mil", numa incontrolável profusão de figuras construídas pelos seus próximos, em nenhuma das quais poderá, alguma vez, voltar a encontrar-se.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

MARIO VARGAS LLOSA: TRAVESSURAS DA MENINA MÁ

Parecerá estranho que, sendo eu um admirador da obra de Vargas Llosa - desde há muito, ou seja, para o que importa, desde antes de o terem nobelizado -, nunca tenha tido a oportunidade ou a curiosidade de ler um dos seus romances mais interessantes, Travessuras da Menina Má. Leio-o agora: não é tarde de mais.

Há um fio neste romance: a própria "menina má". Apresentada logo no primeiro capítulo, ela é, desde miúda, uma rapariga que procura integrar-se e ser bem sucedida através do embuste. É o fio porque, ao longo do tempo, a chileninha vai desaparecendo, e reaparecendo sob uma nova forma, sob, digamos, um outro avatar, inesperado, improvável, fascinante. Para o narrador, porém, tudo recomeça a cada reencontro: se a menina má transforma, de cada vez, a sua identidade, o que subjaz permanentemente em todos os momentos desta evocação, o que nunca realmente muda, é a paixão desenfreada deste rapaz, depois jovem, por fim homem maduro, por ela; esse amor doentio e obcecado, contra o qual luta, mas sempre em vão.

Uma pergunta do domínio da ética: será a menina má realmente uma "menina má"? Bem. O título introduz essa ambiguidade e justifica a questão. Ao nível da maldade, não falamos de "travessuras", mas de malignidades, malevolências, maldades. A travessura comporta um elemento de inocência e de infantilidade. A paixão que o narrador por ela nutre predispõe-no, é claro, para uma espécie de perdão antecipado. Há todavia qualquer coisa de efectivamente terrível, indesculpável e pérfido nesta espécie de louva-a-deus; esta mulher que usa os homens como instrumentos tolos para alcançar os seus objectivos, e os cospe na maior das misérias e do sofrimento quando deixam de lhe servir. Mas, simultaneamente, compreendemo-la: à sua visão egocentrista, à sua ironia em relação a todo o compromisso, ao seu desprezo, à sua ausência de amor. É uma "menina má" profundamente humana e sofredora, é uma "menina má" carente e frágil, uma falsa dura, e nessa capacidade de penetrar no fundo dessa imensa fragilidade reside um dos méritos maiores deste romance que recusa julgar - que prefere amar.

Mas se a menina má é o fio, cujos aparecimentos e reaparecimentos conferem a unidade da história, não menos interessante é o modo como o romance vai extrapolando desse fio para outras esferas e para outras personagens, oferecendo-nos um retrato do Peru, de França e de Inglaterra [Paris e de Londres dos anos sessenta e princípios dos anos setenta] ou até do Japão ou Espanha: os guerrilheiros, os existencialistas, os hippies, os gentlemen e as ladies, os tenebrosos Fukuda, numa reconstituição deliciosa de um mundo em transformação e crescimento.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

CHARLES DICKENS: GRANDES ESPERANÇAS


Dickens é, penso eu, um autor que todos conhecem de nome mas praticamente ninguém leu. Conhece-se-lhe vagamente a obra sob a forma de uns quantos títulos "incontornáveis" e algumas personagens que devieram ícones literários, ou são referidas como caracteres-tipo da psicologia; tem-se a ideia geral de que há sempre órfãos muito infelizes, e pessoas extremamente mesquinhas que os exploram e maltratam. Há filmes que vêm tornar mais nítidos, no nosso horizonte mental, esses dois ou três traços. Não há Natal, por exemplo, em que alguma televisão não exiba o pavor de Mr. Scrooge ante os três fantasmas que o levam em visita turística.

A primeira surpresa na imagem oficial de Dickens surge com a tradução para português, já não muito recente, de Os Cadernos Póstumos de Mr. Pickwick, esse concentrado de humor e observação, a que já aqui me dediquei. A outra surpresa, pelo menos para mim, é a descoberta de Grandes Esperanças, a que cheguei por via de um outro livro.

Grandes Esperanças tem aquele tom folhetinesco, típico de época; aquelas personagens improváveis que conservam, do seu passado, um profundo e terrível desejo de vingança (o qual executam através de qualquer plano maquiavélico, que o leitor não pode senão ir compreendendo muito vagarosa e ansiosamente, página a página); contém um lado de aventura, ao jeito de A Ilha do Tesouro, que empolga e encanta: veja-se, logo de início, a série de encontros de Pip com os foragidos, e suas dramáticas consequências; há personagens malévolas e personagens de uma generosidade e de uma candura sublimes. Mas em todas estas facetas, articuladas numa história complexa, à volta de uma segredo que iremos perseguindo, a sensibilidade de Dickens consegue expor mundos interiores que nos são comuns, e em que nos reconhecemos bem: o das nossas próprias lutas, o da culpabilidade (sob cujo signo nos relacionamos e convivemos com o próximo: o caso de Pip e Joe é exemplar para compreendermos algo como o amor que se tem por uma pessoa que o merece, e a injusta vergonha que, socialmente, a sua presença faz sentir).

Grandes Esperanças é um romance que nos mostra o lado mais fácil da obra de Dickens - um certo maniqueísmo, um desenrolar vertiginoso, mistérios que mantêm um permanente "suspense", um ror de coincidências que explicam, por fim, o inexplicável; isto é: o aspecto folhetinesco - e o mais profundo e complexo: os indesejáveis mas compreensíveis sentimentos humanos, o amor que não entende os sinais ambíguos ou contraditórios, a formação de um adulto a partir dos fragmentos dolorosos da criança e do jovem. Grandes Esperanças é um romance perene: alguns dos melhores romances perenes, aliás, foram, como este, escritos no século XIX.

domingo, 29 de janeiro de 2012

TOMASI DI LAMPEDUSA: SHAKESPEARE


A Teorema edita, de Lampedusa, um livro intitulado Shakespeare: é um capítulo de um seu Curso de Literatura Inglesa.
Porque Lampedusa é Lampedusa [de O Leopardo: não vale a pena acrescentar seja o que for] e porque Shakespeare é Shakespeare, eis um livro para o qual já comecei a juntar dinheiro.
No jornal i fala-se, a propósito desta obra, em erudição e sentido de humor. Não era necessário.
A partir do momento em que li: há um "Giuseppe Tomasi de Lampedusa" acerca de "William Shakespeare", já me tinha rendido.